terça-feira, 8 de junho de 2010

"Não, o abrigo aqui não dá"

Aconteceu ontem no Centro Espírita na Rua, aqui no Flamengo, Rio de Janeiro.
Tivemos uma conversa com dois companheiros, vou tentar transcrevê-la.

- Puxa irmãos, muito obrigado. Que Deus abençoe o trabalho de vocês, a família de vocês. Assim que puder eu venho aqui visitar vocês.
- Mas que venha a passeio.
- Sim, venho como turista.
Sr. José estava a caminho da rodoviária, ia pegar o ônibus de volta para sua cidade natal: Juiz de Fora. Com as doações dos amigos, o grupo conseguiu R$40,00, o suficiente para tirá-lo da rua.
- Me conta, irmão, onde você vai ficar em Juiz de Fora? - perguntei.
- Lá eu fico no abrigo da prefeitura.
- Ah é? Então você lá também não tem casa?
- Não, desde que meus pais morreram, ficamos só eu e meu irmão. Meu irmão está doente e eu estou desempregado. Aí tivemos que ir pra rua.
- E como é o abrigo lá?
- É bom. Fica no centro, então dá pra gente conseguir uns biscates.
- Ah, entendi.
E então fiz duas perguntas que estavam coçando na minha língua:
- Mas porque você veio pro Rio?
- Pra tentar um trabalho. Vim a pé. Levei quatro dias pra chegar. Vim com um amigo mas ele se perdeu nas drogas. Fiquei mais de dois meses e graças a Deus estou voltando. Rua não é vida pra ninguém.
- E aqui você não foi procurar um abrigo?
- Não, abrigo aqui não dá. É muito longe. O que a gente vai fazer lá em Santa Cruz? Aqui no centro a gente cata lata, papelão, ajuda a descarregar um caminhão, faz uma entrega, a gente precisa trabalhar, né irmão?
O Sr José estava certo. Depois de transferirem a Central de Recepção, que era na Praça da Bandeira, para a Ilha do Governador, a Prefeitura abriu uma outra central, agora mais longe ainda: em Santa Cruz.
Foi quando surgiu a vez do Sr Alberto falar.
- Pois é irmão, eu fui levado pra lá.
- Levado pra lá? Como? - perguntei já esperando a notícia.
- Ué, os guardas passam de madrugada, jogam água, spray de pimenta, batem na gente e nos colocam na Kombi. Me levaram pra lá. Quando a gente chega lá, vê que está superlotado e nos dizem: você não é obrigado a ficar.
- ...
- Não é obrigado a ficar?! Mas pra onde a gente vai irmão? Lá onde está o abrigo tem a milícia de um lado, o tráfico de outro... Eu, graças a Deus, consegui chegar aqui, a pé.
Nesse momento olhamos para o pé do nosso companheiro. Estava cheio de bolhas, mosquitos nas feridas, inchado e descalço.
Pra completar, hoje, manhã de terça-feira, na reunião do Fórum Permanente sobre População Adulta em Situação de Rua, tivemos a notícia de que os órgãos de Direitos Humanos já receberam cartas alertando para a violência que está sendo cometida por funcionários desse mesmo abrigo.

E dói-nos ouvir tudo isso e poder fazer tão pouco.
A sociedade está calada. A imprensa não dá essas notícias. Seres humanos sendo tratados como lixo.
Estamos comemorando a vitória do bem sobre o apartheid racial na África do Sul.
Olhamos para o passado mundial e vemos a vitória do bem sobre o nazismo e o fascismo. Olhamos para o passado no Brasil e vemos que o governo de Carlos Lacerda jogou pessoas no Rio Guandu sob o argumento de limpeza da cidade (veja o filme "Topografia de um Desnudo")
E aí a gente olha pro presente, e vê a ilustrada e vanguardeira sociedade carioca em silêncio diante da violência que estão realizando todos os dias.
Spray de pimenta? Cacetetes as 3hs da manhã? Se já não bastasse o frio...
Será que esses governantes não pararam pra pensar que o pai deles pode ter uma crise psíquica, uma amnésia, e ir morar na rua sem se lembrar de nada? Será que Deus vai ter que fazer isso para mostrar a eles que essas pessoas são seres humanos comuns?
Me lembro de Madre Teresa dizer que ali, disfarçado, bem sujo e mal-cheiroso, estava o Mestre Jesus.
Lembro de Dom Helder Câmara dizer que tinha encontrado com Jesus, ali, na calçada, pedindo uns trocados.
Senhor, tende piedade de nós.
E eu te digo, aquilo que disseste ao Pai, quando estavas pregado na "Santa Cruz":
Senhor, perdoa-os, eles não sabem o que fazem. E eles também não sabem a quem fazem.

5 comentários:

  1. Abrigo agora virou "depósito de gente". Ótima reflexão amigo.. Fique com Deus.

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  2. Triste, esta é a situação real da população de rua na cidade do Rio de Janeiro. De um lado a dor da calçada e de outro a falta de humanidade dos abrigos. Até quando? Até onde?

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  3. Obrigada André pelos seus textos.
    Você me ensina a ser uma pessoa melhor.

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  4. esta é a realidade de quem vive a esparença de uma conscientização politico social, de que o capitalismo é quem produz esta miséria e pobreza, e que joga cidadãos nas ruas à margem da verdade e justiça social.

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  5. sou fundador da UGRV uniaõ global resgatando vidas, e trabalho atualmente como educador social na central de triagem , sinto -me como se de certa forma estivesse sendo coninvente com tanta injustiça ? coloco-me a disposição para ajudar no que for possivel ( 21-83283442 )antonio viana

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