terça-feira, 31 de maio de 2016

A não-ação como ação política. O que é?



"O sábio age sem nada fazer e ensina sem nada dizer."

Essa palavras paradoxais do Tao Te Ching intrigaram muita gente ao longo dos séculos.

É a sabedora da ação pela não-ação.

Aparentemente sugere o abandono do mundo, deixar as coisas como estão; evoca o silêncio e seu poder de ensinar as inutilidades da agitação humana em sua eterna luta contra as mudanças da vida.

Tudo muda.Tudo tem um fluxo natural. O mundo é a eterna dinâmica entre as forças Yin e Yang... sofrem aqueles que tentam controlar seu movimento. Sábio é aquele que não interfere. Que adere ao fluxo.

Daí já se pode perceber o sentido oculto do pensamento chinês.

Uma ação sintonizada com o movimento natural do mundo, uma ação que acontece na conexão com o Tao.

Penso no surfista que desce a onda... há nele um movimento que é todo em sintonia com o movimento da onda. Ele precisa perceber, sentir, aprender mesmo o movimento do mar e ter a sabedoria de acompanhar esse movimento, incluir a força do mar no cálculo do seu movimento... e assim, sentindo o mar, ele flui... e quanto mais sabe da onda, mais livre são seus movimentos... quem vê de fora percebe a harmonia entre o surfista e o mar... seu movimento parece sem esforço... mas todo seu esforço e concentração estão em manter seu equilíbrio em harmonia com o movimento da onda. Assim os pássaros planam, as brancas nuvens percorrem o céu e o bambu dança com o vento, as marés acompanham a lua, o rio segue seu curso montanha abaixo, as folhas caem das árvores, a vida brota do solo, os bebês choram com fome, as crianças brincam com suas imaginações... assim, diz-se na linguagem do livro chinês, o homem sábio conduz sua vida.

Não é uma completa inação. Mas uma ação sábia.

A sabedoria repousa na profunda percepção do sentido da vida, na conexão com seu fluxo.

Quando o homem não escuta esse sentido, ele se atropela. E assim o faz quando segue seu desejo de poder e riqueza, ou quando é movido pelo medo.

A crise da civilização que vemos hoje vem da desconexão com o sentido natural da vida. Ela é marcada pelos excessos.As consequencias colhemos em nossos dramas sociais, em nossos desafios ecológicos e no mal-estar emocional.

Por isso, podemos dizer que o verdadeiro sentido da ação no mundo precisa nascer da interioridade. O movimento revolucionário, capaz de mover-nos para uma revolução civilizatória, começa com a escuta silenciosa de si mesmo e da reconexão com o sentido natural da vida.

A não-ação é a ação não egóica. Profundamente amorosa, a ação que não tem nenhum vestígio de interesse pessoal:

"Parir e nutrir,
ter sem possuir,
agir sem expectativas,
conduzir e não tentar controlar:
Essa é a suprema virtude."

Despojado do desejo de ter e poder, o homem pode ser o que é. Retomar sua naturalidade.
Assim, sem desejar ser líder, ele se torna exemplo. E o mundo começa a seguir seu curso.

Olhando para nosso mundo hoje, vemos os desequilíbrios expressos nas desigualdades econômicas, na destruição da vida, na violência contra os mais fracos, no ódio da intolerância... o caos sempre tem origem na pretensão de saber mais, ter mais, ser mais que o outro.

Todos acabam se tornando vítimas de um sistema desequilibrado onde dificilmente a pessoa consegue encontrar um trabalho em sintonia com seu propósito de vida. E o mundo vai mal quando as pessoas não realizam aquilo para o qual vieram realizar. Isso se torna um ciclo vicioso, uma catástrofe. Temos menos artistas do que deveríamos e temos mais burocratas do que precisamos. Paga-se pouco ou quase nada para trabalhos essenciais, como um lixeiro ou professor de música, e paga-se muito por trabalhos inúteis como o especulador do mercado de dinheiro, ou de terra.

Mas percebe-se também uma guinada para um outro mundo possível. Ela é quase imperceptível. Ela é silenciosa, não se anuncia nas grandes redes de comunicação. Está nas atitudes e escolhas de pessoas que estão se tornando mestres de si mesmas. Uma atitude de estranhamento diante do sistema e de sua propaganda oficial. Uma silenciosa mudança de consciência que se expressa em atitudes cujo centro é a nova civilização que virá. Uma outra civilização... sugere o sonho humano... com centralidade no coração, na escuta da vida, harmonia com a natureza... despojada das ambições do ego, centrada no amor, na reverência a tudo que é vivo.

Já tem muita gente ensaiando esse novo tempo. É como um curso invisível. O mundo segue para frente, mas há um deslocamento para outra direção... e a consciência humana está se deslocando, se descolando do sentido visível do velho mundo. Para onde vamos? É difícil descrever como será o mundo quando cada um se tornar mestre de si mesmo, autêntica e verdadeiramente livres.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Amor e Utopia


Desgastada nos meios sociais a palavra utopia, assim como a palavra revolução, precisa voltar ao vocabulário comum nesses tempos de descontentamento generalizado com a política e as estruturas de poder hegemônico.

Há uma falência moral do sistema político-econômico que se acumula há mais de um século.

O socialismo, que nasceu da utopia comunista, foi a tentativa de construção de um modelo alternativo. Mas ninguém tem dúvidas de que ele se perverteu na mesma competição industrialista, na destruição da natureza e na corrupção das elites tanto quanto seu rival capitalista.

Mas as pessoas continuam sonhando com um mundo melhor.
E esse sonho é legítimo porque nasce de uma experiência.

A utopia nasce da experiência de amor.

O amor se acende na pessoa e se derrama.
Um amor pela vida, uma sensação de plenitude de sentido de viver, uma alegria interior, uma sensação incrível de bem estar, de felicidade.
Então, a pessoa olha para o mundo, as pessoas tristes, as relações humanas que eram para ser amorosas estão deterioradas, cinzas, dominadas pela desconfiança, pelo medo, pela dor... a pessoa que viveu o amor, olha para esse mundo e diz: precisa mudar!

A utopia nasce da felicidade. Porém uma felicidade provisória, que é abafada pelas estruturas do mundo, assim como a poesia é abafada pela rotina. O poeta, porém, vive em outro mundo... o mundo da poesia, do encantamento, vendo beleza, onde o cotidiano vê coisas sem vida. É uma vida solitária. O poeta sofre a cegueira de seus vizinhos. A incompreensão. E alguns poetas sonham em transformar o mundo, num mundo de poesia. Assim é o revolucionário. A revolução nasce da poesia assim como a utopia nasce do amor.

Olhando nosso mundo hoje sinto que há dois movimentos que são necessários.
O primeiro é o cultivo desse mundo novo que virá, a possibilidade de vivê-lo como antecipação. Apesar da dureza do cotidiano, viver poeticamente. Hoje, ele é feito nas micro-relações, nas redes de amigos, uma nova mentalidade centrada no autoconhecimento, na não violência, na ecologia profunda. Há muitas pessoas vivendo isso. Posso dizer que é uma experiência de conexão com o todo, que valoriza a sincronicidade, a conexão com o coração, com o sentimento de amor universal, respeito a si e ao próximo, transparência nas relações, tolerância e valorização das diferenças, o aprendizado do diálogo com escuta atenta, etc.

Isso é real. É concreto. Mas não é para todos. Sinto que há ainda entre nós o grande apartheid social, a cidade partida, e creio que um belo passo seja quebrar esse muro com ações e encontros humanos mais inclusivos. Assim, as pequenas redes que experimentam essa nova filosofia de vida, por não ousar fazer as mudanças estruturais se vê pressionada o tempo todo por uma estrutura de poder calcada em valores muito ultrapassados.

Há uma ideia defendida por esse novo paradigma de que, quando houver uma grande quantidade de pessoas vivendo-o em si mesmos, o sistema hegemônico terá de ceder e as pessoas que hoje vivem a ilusão do sistema serão levadas por contágio a vivenciar a nova era. Será um salto quântico societal. Portanto, há aqui esperanças...

Ao lado desse movimento, há o segundo, que é quando o poeta, além de ver a beleza, faz poesia crítica, poesia denúncia, poesia de protesto. É o movimento profético, que denuncia as estruturas injustas e busca, estrategicamente quebrar o sistema, minar suas forças. Eis que surge a militância política, as pessoas nas instituições que vão fazendo alterações legais e concretas segundo às exigência dos novos valores emergentes. O combate a corrupção bem que pode ser um movimento desses. Os boicotes a certas empresas é outro. As mudanças nos ambientes institucionais... são pequenas batalhas que vai se ganhando no dia a dia.

E assim vai se preparando o dia da grande virada. Quero crer que temos aprendizado suficiente para fazermos essa transformação sem derramamento de sangue. Pelas vias da não-violência, pelo contágio do amor. Essa é a grande poesia da revolução que esperamos... Pois a economia do amor, não pode ser imposta às custas de ódio. Creio que não estamos distantes. Em enquanto isso, façamos a nossa poética diária, e sejamos felizes aqui e agora, ao lado das pessoas com que tomamos café da manhã...  (mas claro, se puder, convide para o café alguém que não pode pagar em retribuição, como ensinou um revolucionário utópico do passado...)

sábado, 28 de maio de 2016

Revolução e Amor



Creio na revolução do amor. Um mundo de amor em substituição ao mundo do ódio e ao mundo da indiferença.
Penso que uma revolução política, hoje, seja filha do sentimento de amor ao humano.
Lendo sobre ética em Emmanuel Lévinas, percebo o sentido de responsabilidade diante de todas as misérias e sofrimentos existentes no mundo.
Surge a exigência de Justiça. Justiça como filha do amor, da preocupação pelo não padecimento do outro.
Daí surge o dilema ético entre a violência revolucionária e a violência da omissão ante a injustiça diária de um sistema que é brutalmente genocida.

Lembro que um pastor protestante, Dietrich Bonhoeffer, participou da resistência alemã anti-nazista e da trama que planejava matar Hitler. A justificativa era que numa carroça desgovernada, galopando para o abismo, alguém tem que ter a coragem de atirar no cavalo. Uma de suas frases era: é melhor fazer um mal do que ser mal.

A violência revolucionária integra o caos necessário entre uma ordem antiga e uma nova ordem.

Diante da evolução das mentalidades, surgem novas exigências, novos patamares éticos mínimos. As novas gerações já não aceitam mais a estrutura opressora que herdaram das antigas gerações. A nova geração começa a viver uma nova ordem em suas relações cotidianas. É uma ordem paralela. Independente dos centros de poder e do sistema hegemônico. Essa é a fase de preparação, é o cultivo do que será quando a ordem hegemônica ruir. Na medida em que essa ordem paralela começa a se expandir e começa a sofrer com a opressão do sistema hegemônico, surgem os questionamentos, aumenta a consciência das contradições do sistema vigente, seu descompasso com a realidade... e então surge a rebelião que faz desmoronar todo o sistema vigente.

A história mostra esses saltos evolutivos de uma estrutura política para outra. Carlos Marx mostrou que na base das revoluções burguesas (como a francesa, por exemplo) estava o interesse econômico dessa classe social emergente não contemplada no sistema feudal. E daí nasceu o capitalismo. Marx também profetizou o fim do capitalismo a partir de uma tomada de consciência dos oprimidos que buscariam a libertação para implantar uma economia sem patrões, onde cada um se desenvolveria plenamente em suas capacidades e talentos, com direito a tempo livre (o ócio criativo). Uma economia da abundância, da emancipação, da potência humana. Na "Ideologia alemã" ele descreve essa sociedade que denominou comunismo.

Inspirados nessa leitura, os movimentos socialistas fizeram história. O mundo ficou dividido entre os dois grandes sistemas durante o século XX. Apesar da inspiração ética vimos que o movimento se perverteu e os estados socialistas não trouxeram a sonhada emancipação humana, mas uma corrida competitiva nas mesmas bases industrialistas do capitalismo, com a mesma ferocidade da produção de armas, e com o mesmo descaso com a natureza. "Em nome da revolução"... foi uma bela desculpa para a nova exploração das massas.

O fim da União Soviética trouxe a expansão do capitalismo ao que se chama economia global, com o poder centrado nas grandes corporações globais, no mercado financeiro internacional, que mantém a exclusão social a nível local, e sustenta as elites locais como aquelas que se alinham à cartilha do poder central, o pensamento único.

Então podemos dizer que hoje o sistema dominante tem matriz global com sedes de controle espalhadas por todas as localidades. Poderes locais que funcionam às custas do dinheiro global, ou seja, um sistema pervertido em sua essência, uma corrupção sistêmica, onde o cinismo e o egoísmo são a moeda política corrente. Democracia é só o disfarce ideológico da verdadeira aristocracia do dinheiro.

Todavia, a contra-corrente, a contra-cultura, não morreu (nunca morreria porque é do humano a poesia, a bondade, o sonho, a inocência). Filha do amor, a contra-cultura clama por justiça e cria, nos espaços, uma rede de relações cuja centralidade se opõe ao sistema perverso. São as redes de solidariedade, as criativas formas de convívio e cultivo da amizade, da cultura, da saúde, da espiritualidade... que preconizam o amor como resistência do humano enquanto humano, se confrontando a perversidade do sistema.

Nos séculos XVIII e XIX, as revoluções burguesas derrubaram o feudalismo.
No século XX foram as revoluções socialistas que fizeram frente ao capitalismo.
No século XXI... há uma revolução espiritual em curso. São valores espirituais básicos que deixam o humano mais humano. Mais amoroso, tolerante, paciente, compassivo, alegre... são bens infinitos da vida, a eterna busca por liberdade, que independem em absoluto do sistema político vigente. Nesse paradigma espiritual, mesmo na prisão posso ser livre, pois a verdadeira prisão é a da mente. Ou seja, uma revolução espiritual que está despertando o potencial humano para a sua inteireza e, assim, para a amorização das relações.

O confronto com o sistema dominante pode ser adiado, mas será inevitável.

Quem acende a luz do amor dentro de si não pode se deixar guiar por um sistema tão sombrio e tão pouco compassivo diante da dor do ser humano. O sistema centrado no lucro não tem medidas quando, por exemplo, faz testes químicos em pessoas pobres. Isso vai se tornando inaceitável para as novas gerações. Os braços de poder da economia global, os governos corruptos das localidades, e a mídia local, começarão a ser derrubados pelas novas gerações que vão aprendendo a importância de ser intolerante com o que é intolerável.

A nova sociedade, a nova ordem, já vem sendo ensaiada nos contextos locais. O paradigma da inclusão, do convívio com as diferenças, vai sendo gestado em periferias, ecovilas, escolas... há um aprendizado do viver que vai expandindo a consciência humana e dando clareza do cinzento sistema global... um sistema velho e feio ante a beleza do colorido da existência humana, da vontade de amar.

Pessoalmente me dá gosto quando os movimentos de protesto são ensaios do que virá, movimentos pacíficos, alegres, criativos... pois acho que depois de Gandhi já se provou a força da não violência e depois dos hippies já se pode conciliar protestos com prazer... afinal, os meios levam aos fins...

O momento revolucionário, seja quando for, trará o caos, mas a ordem que se implantará depois, será essa que se ensaia... tenho motivos para ser otimista. Não será uma vida fácil. No novo paradigma, a interioridade é a terra principal de cultivo da nova riqueza. E depois de removidas tantas sombras cá fora, novas sombras de dentro ainda hão de ser enfrentadas. Será o fim do capitalismo, mas não o fim da aventura humana, que criará novas estruturas e surgirão certamente novos desafios aos nossos filhos. Mas algo misterioso e místico me sopra aos ouvidos que valerá a pena enfrentar esse desconhecido.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Conhecimento da linguagem da criação



Quando orava no fundo do meu coração, tudo que me cercava surgia sob seu aspecto mais encantador: as árvores, a grama, os pássaros, a terra, o ar, a luz, todos pareciam dizer que existiam para o homem, que davam testemunho do amor de Deus pelo homem; tudo orava, tudo cantava glória a Deus! Compreendi assim, o que a filocalia chama de "conhecimento da linguagem da criação" e percebi como é possível conversar com as criaturas de Deus.
Trecho do livro Relatos de um peregrino russo. Anônimo do século XIX.

domingo, 22 de maio de 2016

ESPIRITISMO E POLÍTICA


Minha vivência de política e espiritualidade

Desde criança aprendi a gostar de política. Acompanhar as eleições, partidos, discursos, programas eleitorais... o corpo a corpo na rua, convencer as pessoas a votar na esquerda já era uma prática que eu fazia feliz aos 10 anos de idade. Uma inspiração dos meus pais professores, sempre indignados com as desigualdades sociais e o desgoverno dos governos. Então, sempre fui de oposição à estrutura política que herdamos historicamente no Brasil. Colonização, escravidão, elitismo, coronelismo, ditadura, censura, perseguições políticas, mídia, faziam parte do meu vocabulário desde criança.

Cresci com o sonho de mudar o mundo. Olhava a vida social ao meu redor e não me conformava com tanta desigualdade de oportunidade. O filho da empregada e eu... por que tanta diferença? E os meninos de famílias ricas? Achava tudo muito errado... e o pior era perceber o baixo grau de consciência política das pessoas. Aceitavam a realidade sem vontade de mudar... deixavam-se enganar pela mídia e deixavam-se dominar pela ideologia do opressor. Acho que desde cedo fui marcado por Paulo Freire e tentava alfabetizar as empregadas lá de casa. E eu não conseguia entender como uma pessoa pobre chamava um desempregado de vagabundo... outra coisa que me era muito estranha: para mim o discurso do Lula e do Brizola faziam tanto sentido que me arrepiavam, me faziam sonhar com as mudanças... se todos ouvissem esses discursos o mundo ia ser melhor, eu pensava... mas aí, lembro de uma empregada lá de casa me dizer: “não vou votar no Brizola não, eu entendo tudo que ele fala”. É a velha lógica do doutor, doutor é quem fala difícil, e quem fala difícil é competente. Quem fala igual ao povo é igual a mim e eu não sou ninguém. Uma autodesqualificação completa. Então uma das questões da pouca consciência política tem a ver com a falta de autoestima do povo. Num país colonizado, bom é o que vem de fora.

Eu lá com meus delírios infantis sonhava em ser presidente da república, ou um senador, deputado... as pessoas diziam que eu ia acabar fazendo direito... Sempre achei que a igualdade era algo muito natural, todos somos iguais, não deveria haver tanta desigualdade socioeconômica. E achava que meus amigos que defendiam a desigualdade por mérito eram grandes hipócritas que defendiam seus lugares privilegiados na sociedade. Isso era uma coisa óbvia para mim, e se tinha uma missão na vida reservada para mim era ajudar a fazer a revolução que implantasse a justiça social, tirando o poder das elites, tal como fizeram os revolucionários que derrubaram as aristocracias feudais. A queda da Bastilha... quantos filmes sobre a revolução francesa eu alugava na locadora! Outro tema que me fascinava era a tragédia do holocausto... a injustiça absurda e o sofrimento silencioso dos judeus nas filas geladas rumo aos campos de concentração. Assisti muitos filmes e séries sobre isso. Nós gravávamos e eu assistia várias vezes. O sofrimento do povo me tocava profundamente, a maldade e as conspirações políticas dos líderes, da propaganda nazista, e também os personagens da resistência, humanos, que tentavam salvar vidas... tudo isso me emocionava e uma das coisas que mais me tocava era: são tantos judeus diante de alguns poucos nazistas armados... por que eles não se revoltam? por que andam calados nessa fila que vai levá-los à morte? se se unissem... que política é essa que tanto os enfraqueceu e lhes tirou a capacidade de lutar? além disso, me perguntava: por que tanto ódio? Comecei a entender também que o Terror se alimenta de homens fracos, que se orgulham do pouco poder que se lhes dá. Comecei a olhar a minha volta e entender que muitos dos meus amigos e sua personalidade elitista, que toda essa mentalidade conservadora que me cerca, que me fazia parecer o único diferente, o único que pensa em direitos iguais, que todo esse povo-massa de manobra é um prato cheio para um regime nazista... e dava graças a Deus pelo Brasil ser um país onde as coisas eram mais brandas (pelo menos aos meus olhos infantis).

Um dia eu soube que o meu avô por parte de pai havia sido um fazendeiro que explorava os funcionários da fazenda através da vendinha que ele mantinha dentro da propriedade. O camponês comprava ali produtos mais caros que na cidade, anotava no caderninho e fazia dívida. Quando queria ir embora tinha muita dívida e tinha que trabalhar mais. Uma opressão esperta e malvada semelhante ao poder feudal, praticada em larga escala, coisa que descobri através das novelas do Benedito Ruy Barbosa.

Depois soube que meu avô foi à falência e então não tive muita raiva dele, mas saber disso foi duro para mim. Mas ao mesmo tempo reforçou minha vontade de transformar essa história. Eu não queria fazer o mesmo que ele. Pelo contrário, me admiravam as histórias de socialistas, pessoas generosas, cooperativistas... era esse pensamento de esquerda que eu me afinava.

Na adolescência fui muito marcado por meus primos que estudavam economia e eu queria entender melhor o que eles estavam falando... porque a conversa deles era sempre muito politizada. E aí o câmbio e os juros, o PIB, tudo aquilo tinha muito a ver com desemprego, desigualdade, crescimento, geopolítica e o cenário de dominação internacional que parecia explicar grande parte de nossa história econômica de colônia de exploração. Então ao invés de fazer história ou ciências sociais fui fazer economia, já que eu também gostava de matemática. Chegando lá encontrei colegas que pensavam parecido e tinham uma pergunta em comum: se há tanta riqueza no mundo, porque tanta pobreza? Como dividir melhor a riqueza? Minha turma foi muito boa. Acho que ainda hoje tem gente espalhada por aí que continua com a mesma vontade de mudar as coisas. Que continua se indignando com a desigualdade e a loucura do sistema que se retroalimenta da exploração dos mais fracos.

Foi no final da faculdade e no início do mestrado em Ciência Política que a espiritualidade começou a despertar em mim. Algumas pessoas defendem a tese de que quando a gente descrê da política, do mundo dos homens, começa a se interessar por religião, pelo mundo dos espíritos... pode ser, mas como não sou meu psicólogo, o que posso dizer é que o meu despertar espiritual foi uma grande descoberta, foi como achar um baú de tesouro, uma experiência muito abundante de prazer, de êxtase e de certeza na presença desse algo mais que me visitava durante as orações. E foi através do espiritismo que isso despertou e por ali eu caminhei estudando e vivenciando as emoções da fé.

Comecei a admirar Jesus, conhecer suas histórias, suas mensagens... no movimento espírita valoriza-se muito a figura de pessoas cujas histórias também me tocavam tais como Francisco de Assis, Madre Teresa e Gandhi. Então foi uma grande junção entre a minha sensibilidade humana com a questão da igualdade e todo esse movimento espiritual que também se volta para os excluídos... Jesus foi crucificado não à toa... sua mensagem abalava de tal maneira as estruturas de poder da época que não suportaram que ele continuasse vivo. O mesmo que aconteceu com Sócrates na Grécia. Suas histórias, sábios rejeitados pelo povo, parece que se repetem a cada século... e o poder continua crucificando inocentes em suas guerras e em seu genocídio silencioso que é a produção sistemática da miséria. E o povo-massa parece sempre apoiar o poder e rejeitar os sábios.

Alguns grupos espiritualistas acreditam mesmo que espiritualidade é para uma elite, que o povo vai continuar como manada,vivendo na ilusão para sempre. O Gurdjeff era um sujeito que defendia isso. Pode ser. Mas o que me encantou com Kardec foi a sua chama democrática. Abrir os segredos da espiritualidade a todas as pessoas. A mediunidade explicada, o acesso ao sagrado é igual para todos. O espiritismo é um movimento anti-institucional por natureza. Não tem sacerdotes religiosos, não tem exploração financeira, não tem dogmas... tem a pesquisa do mundo espiritual feita livremente, com inteligência. Fiquei encantado com Kardec. E quando você lê o Livro dos Espíritos encontra uma série de discussões políticas em que a visão espiritual se alinha ao uma concepção progressista: a igualdade de gênero, a igualdade social, a igualdade racial, a visão de que o homem é um ser social e é responsável pelo destino coletivo... tudo me levou a perceber que se tratava de uma espécie de socialismo espiritualista. Fiquei maravilhado em ver essa leitura em livros do professor Herculano Pires (O Reino, por exemplo), e da Cleusa Colombo, chamado Ideias Sociais Espíritas, e depois tive contato com os congressos de Peadagogia Espírita e os livros da editora Comenius e todo o movimento que a Dora Incontri faz. Então comecei a sonhar com a transformação social novamente, através dos óculos espíritas. Ou seja, a espiritualidade, longe de me afastar da política me levava de novo a ela. É dever do espírita defender o mais fraco na sociedade, mudar as instituições que fomentam a divisão, ou seja, construir uma nova institucionalidade social, não mais regidas pelo egoísmo e pela competição, não mais essa que transforma homens e natureza em mercadorias, mas uma economia centrada no amor, no trabalho recompensado por fazer sentido existencial e coletivo e na gratuidade, o que tem tudo a ver com o sonho comunista que por sua vez se inspirou lá na comunidade dos primeiros seguidores de Jesus.

Então eu continuei de esquerda, ou seja, sonhando em mudar o mundo, dividir a riqueza, ver a justiça correr como um rio caudaloso (como sonhava Luther King), mas é claro que não podia concordar com meus amigos que defendiam uma luta armada. Pois aprendi com o movimento da não-violência (Tolstoi, Gandhi, Luther King, Dom Hélder Câmara, Chico Mendes, e relativamente também o Nelson Mandela) que os meios são o princípio do fim. Ou seja, há que se ter uma coerência em todo o caminho. Se quero o mundo de amor, preciso que a mudança venha do amor. Sem violência, ainda que com resistência ativa, criativa, poética... sonhei com a revolução dos cravos em Portugal, lembrei das flores que vencem canhões na música do Geraldo Vandré que se tornou símbolo na luta contra a ditadura no Brasil... são as formas de luta que sintonizam com o cultivo do amor e da paz interior, da criação de relações amorosas. Uma radicalidade ética... longe das incoerências de tantos companheiros mesmo da esquerda que muitas vezes têm práticas que atropelam aquele que pensa diferente, em nome do poder. A intenção pode até ser boa, mas o que a espiritualidade me ensinou é que a gente sempre colhe os frutos do que planta.  Então tem que ter essa coerência.

É claro que se você lê o que eu acabei de falar sobre Kardec e vai olhar o que se fala nos centros espíritas, vai ver que tem uma grande diferença. Assim como Jesus não criou o Cristianismo e seus templos de pedra (Jesus ensinou na praia, no barco, no monte, sob as árvores e na casa das pessoas), Kardec não imaginava o que iam fazer de suas pesquisas... tanta institucionalidade, uma religião criada para defender o seu discurso interno, mais uma conversão de uma religião institucional para outra religião institucional... o espírito aberto e grandioso de Kardec não tinha nada a ver com isso... ele pesquisava o fenômeno espiritual junto com pessoas de diferentes religiões e não achava que as pessoas deveriam se converter a uma outra religião. O espiritismo bem compreendido seria fonte de transformação das pessoas pois, olhando a vida sob a perspectiva de muitas reencarnações, a tendência é ter mais desapego, menos guerra pela matéria tão transitória. Sob a ótica da reencarnação, trazemos padrões muito antigos que nos trazem a um ciclo de sofrimento e dor... e é preciso sair desse padrão antigo e começar algo novo, a caridade... que é pura doação e fruição de um amor que se interessa em fazer o outro desenvolver o seu pleno potencial humano. Mas isso tudo não significava fundar uma religião, bastava um grupo de estudos.

Mas os centros espíritas estão aí, assim como as outras religiões, divulgando seu paradigma. E foi  graças a esse trabalho, que também tem seu lugar, que fui beneficiado e sou muito grato por poder abrir comportas tão amplas do meu mundo interior e começar a aprender a me conectar com a fonte da vida. E eu me considero agraciado por ter encontrado um centro espírita pequeno e acolhedor, com relações de cuidado, de carinho, que acho que tem a ver com a forma como as almas superiores se cuidam, e que me apoiou em todos os meus movimentos inclusive quando fui estudar sobre o próprio espiritismo através de uma universidade pública no meu doutorado.

No entanto, os centros espíritas, em geral, enquanto pregam e estudam seu paradigma acabam, assim como todas as instituições, se esquecendo da sua relação com o mundo lá fora. Então nós vivemos, no ocidente, num sistema que é um verdadeiro genocídio silencioso e isso não é tema de pesquisa e de trabalho nos centros espíritas. É óbvio, pelo menos para mim, que quando você lê os livros de Kardec, que fala da evolução das sociedades, que fala que os homens precisam se livrar dos apegos, que condena a exploração dos outros seres humanos, que defende a igualdade social como lei divina que precisa ser reestabelecida pelos homens em sua evolução, é óbvio que o espiritismo defende uma sociedade que é incompatível com a sociedade capitalista. Mas as pessoas vão ao centro, fazem e recebem o serviço religioso e continuam passivamente em suas vidas, escravizadas pelo sistema sem perspectiva de mudança. Aí me parece que há um silenciamento covarde. Assim como o padre na cidade do interior abençoando o prefeito que é dono da grande fazenda que explora todo mundo. Mas Jesus foi expulso do templo, desagradou os poderosos... que espécie de revivescência do evangelho é essa?!
“Não, mas a gente não fala de política”. Como não?

Não acho que seja coerente com Kardec a criação de um partido, uma bancada espírita no congresso, como se os espíritas fossem mais iluminados do que outras pessoas. Mas acho coerente que haja uma cultura espírita que mantenha uma mentalidade progressista, uma consciência humanista da política. Creio haver um consenso mínimo quando se trata de tragédias humanitárias. O espiritismo condena a escravidão. Seus livros chegaram ao Brasil escravocrata e incentivou o movimento abolicionista. Começou bem. O espiritismo condena a exploração do mais fraco pelo mais poderoso. O movimento espírita é imenso no Brasil hoje. E essas pessoas não hão de ficar indignadas ante a aliança dos bancos com o poder político dos antigos coronéis que ainda dominam o nosso Congresso? Isso para dar um exemplo que é bem atual.

Do ponto de vista da pesquisa acho que minha vida percorre a mesma pergunta: como o discurso conservador consegue dominar os dominados apesar de todas as circunstâncias? Que tipo de embotamento na cabeça das pessoas que mesmo diante da obra de Kardec, continuam conservadoras na política. Se eu leio Rousseau ou Marx, e gosto, e sigo, eu me torno um revolucionário. Ora, se eu leio Kardec tem um mundo de opressões que precisam ser combatidas nesse mundo, tem uma garantia de qualidade de vida para todos que preciso defender, como uma política social universalista, por exemplo, e a gente encontra espíritas que vão ser contra um governo que queira ampliar a política social... a não ser que as pessoas não leiam Kardec. Ou a chave de leitura já está dominada por interpretações que as cegam. Como os cristãos fizeram com a Bíblia. Que transformam afirmações metafóricas em verdades científicas e verdades morais em metáforas. “Deus criou o mundo em 7 dias”, uma verdade cheia de símbolo que eles querem transformar em ciência. “Vai, vende tudo o que tem, dá aos pobres e me segue”, uma recomendação ética muito precisa... qual cristão segue literalmente a Bíblia aqui?

Ou ainda, falta mesmo é mais clareza política, entender como as coisas funcionam, perceber a perversidade sistêmica, a maldade que está por trás de pessoas elegantes, cheirosas e gentis que se mantém nas secretarias dos governos, ou na acessoria de parlamentares... e que na prática escusa estão ajudando a corromper o sistema todo. Ou, no caso da educação, a gentil e amorosa diretora de uma escola pública que tem uma prática pedagógica abominável há séculos por todos os pensadores da educação. Ou seja, falta pensamento critico. E se o espírita vai ao centro, estudar a mesma coisa toda semana, e quando ouve falar em transformação pessoal está fechado em sua neurose pensando nos seus microproblemas psicológicos... falta derrubar as paredes do centro, olhar as tragédias, as nossas sombras coletivas que vão revelar muito das nossas sombras individuais. Nossa falta de amor, de afeto, de liberdade já que vivemos em uma sociedade absolutamente repressora.

O ser humano é belo, rico em potencial de maravilhamento com a vida e com o mundo. O brilho do olhar de um ser humano é a hierofania que se revela todas as manhãs diante de cada um de nós, na pessoa com quem tomamos café da manhã (aprendi hoje isso com Pedro Toro, na aula de biodanza)... no olhar daqueles com quem almoçamos. Olhar o outro e ver a presença do mistério. Se encantar, com o assombro da eterna novidade da existência, dos passarinhos que vêm bebericar o néctar das flores do jardim. Deus não está restrito aos templos... está também no ritual da vida cotidiana, está no raio de sol, no brilho da lua, e em toda parte, é o todo, do qual sou todo também. A experiência do sagrado vivifica, ressuscita. Ela é a experiência suprema do amor que nos faz tremer de medo ante o inesperado. O amor é o que mais nos fascina e o que mais nos atemoriza. E é fonte de nossas maiores alegrias e de nossas maiores dores.  Assim é o sagrado, porque o amor é sagrado. Ter coragem e olhar com olhos de amor, encantar-se com a vida. Olhar, olhar, olhar, contemplação... (contém “placer”, em espanhol), ter prazer em simplesmente ver a vida, e sentir-se vivo. Creio que Jesus era um ser com olhar amoroso que via a presença do mistério e, por isso, se fazia presença... ao ser humano é feito o convite de segui-lo nesse gesto de amorosidade, de olhar a vida com esses outros olhos... olhos de curiosa magia ante o novo.

Espiritualidade, para mim, hoje, que fui muito influenciado, nos últimos anos, por diversas práticas de meditação, por vivências corporais como a biodanza, tem a ver com presença no agora... com um ir além da experiência linear do tempo e tocar, no instante mesmo - um instante poético – a beleza, a transcendência, e é uma experiência de encanto e de vida, uma experiência de eternidade.  Ficaria eternamente abraçado a essa pessoa que amo... o tempo parece não passar. E olho o tronco das árvores e o brilho do sol nas folhas... e eles me transportam para o transcendente e amoroso espaço do agora eterno. E o amor que começo a sentir... e então olho para a humanidade e vejo tantos horrores... e consigo ver nisso tudo uma tremenda falta de amor. Desde bebês... falta amor, cuidado, afeto, presença (porque são tantas presenças ausentes que se detectam nos consultórios de psicanálise ao longo da vida). E tem um potencial imenso dentro da gente, mas a gente aprendeu a reprimir os potenciais para viver nessa sociedade que aplaude o desamor... que incentiva só a apreensão intelectual das coisas, deixando de lado o afetivo, o lúdico... o bebê olha a árvore, a flor e o beija-flor... o que ele vê? se eu não estou enganado ele vê a presença de Deus em beleza. Aí, vem um adulto  que está seco em sua espiritualidade e se apressa em dar os nomes: árvore, flor, passarinho... e diz as cores, orgulhoso por estar ensinando... mas o essencial que a criança está vendo, que já está invisível ao adulto... e que não tem nome... com o tempo a criança vai substituindo o essencial pelo nome dado pelo adulto (é o que Platão quis dizer na alegoria da caverna) e vai repetindo o comportamento dos adultos... e perde a essência. E uma sociedade doente como a nossa, adoece as crianças... e depois vende remédio para transtorno de comportamento.

Mas se falta resgatar essa fonte perdida do amor, dos mistérios, desses conteúdos que reprimimos ao longo da vida... há que se ter uma política contracultural que nos ajude a florescer esse instinto originário do humano, que é gregário, que é amoroso com a espécie, que inclui e que sente prazer em estar com o outro. A enfermidade instalada em nós, nos faz querer distância do outro, o que gera mais e mais invisibilidade, insensibilidade e carência afetiva por todos os lados e guerra, competição, individualismo, isso é a nossa doença, é importante que se diga, porque o status quo naturaliza a enfermidade e criminaliza os poetas... Que ferramenta temos à disposição para realizar essa alquimia?

Eu pessoalmente fui buscar fora dos centros espíritas. Para mim, foi importante essa busca fora. Porque do ponto de vista da corporeidade, a reprodução da repressão que vigora na sociedade também acontece nas instituições espíritas. O corpo como lugar do pecado e todas as fantasias de culpa religiosa associada ao prazer também estão presentes nos centros, salvo exceções com quem me interessa dialogar. E negar o corpo é negar a vida, que é negar a potência máxima da manifestação de Deus no cosmos.

Não estou defendendo que os centros espíritas se tornem centros holísticos de cura, com terapias corporais. Podem continuar sendo locais de divulgação da doutrina espírita. Mas quero compartilhar que há, no mundo, uma série de práticas saudáveis, e que são espiritualizantes, e conheço muitos espíritas de mente aberta que estão nessas buscas (yoga, biodanza, meditação, danças sagradas,rituais xamânicos, artes marciais, etc), que vão além da dimensão intelectual e que acho que são importantes para essa alquimia humana, para o desabrochar da percepção do sagrado e da vivência do amor, por remexer nos conteúdos reprimidos da sombra nossa de cada dia. E que o estudo intelectual dá consciência, mas não traz o fogo da transformação, que os momentos difíceis da vida trazem, mas que podem também ser acessados por práticas terapêuticas sérias, que o ocidente conheceu depois de Kardec. O século XX mostrou que a Razão não dá conta da inteireza humana e a sombra das guerras e das atrocidades humanas mostrou o que ocorre quando o ser humano não ilumina a sua inteireza... O homem que se esforça para domar suas más inclinações... normalmente fica mais neurótico... imagino que Kardec hoje concordaria com as descobertas das ciências psíquicas e daria outra definição sobre o verdadeiro espírita.

Acho que uma pessoa que frequenta muito um espaço só, que repete o mesmo discurso e estuda a mesma coisa... acho que ela está com medo da vida, com medo do contato com o diferente, com medo de se descobrir diferente também. E digo isso porque a patologia do comportamento religioso, o fanatismo, se alimenta desse tipo de prática, ensimesmada, sem diálogo, sem abertura de horizontes e, principalmente, sem contato com o outro. Isso é, no mínimo, alienante. Um lugar de conforto... tal como uma gaiola encarpetada.  

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Acima de tudo, orar...



Assim, o Apóstolo Paulo coloca a oração acima de tudo: "Antes de tudo, exorto a que se façam orações." O cristão deve fazer muitas boas obras, mas a obra da oração está acima de todas as outras, pois, sem ela, nada de bom pode acontecer. 

Sem a oração frequente é impossível achar a via que nos leva ao Senhor, é impossível conhecer a verdade, crucificar a carne com suas paixões e desejos, ter o coração iluminado pela luz do Cristo e unir-se a Ele. É impossível acender a luz do Cristo em seu coração ou tornar-se um bem aventurado, unido a Deus. Nada disso pode acontecer sem a oração contínua. 

A perfeição de nossa oração não está em nosso poder, pois o Apóstolo Paulo diz: "Porque não sabemos o que havemos de pedir como convém" (Rm 8,26). 

O único poder que nos foi deixado foi o de orar frequentemente, como meio para chegarmos à pureza da oração que é a mãe de todo bem espiritual. 

Conquiste a mãe e terás uma descendência, disse Santo Isaac o Sírio, ensinando que é preciso primeiro adquirir a oração para depois colocar em prática todas as outras virtudes. Mas aqueles que não são familiares à prática e aos ensinamentos misteriosos dos Padres conhecem mas essas questões e pouco falam a respeito.

Trecho do livro: Relatos de um peregrino Russo. Anônimo do século XIX

domingo, 15 de maio de 2016

A oração vem antes...



Não me surpreende que você não tenha compreendido a profundidade do ato de orar e que você não tenha conseguido aprender como chegar a essa atividade perpétua. Na verdade, muito é preconizado sobre a oração e existem a esse respeito diversas obras que foram escritas recentemente, mas todos os julgamentos de seus autores estão baseados na especulação intelectual, nos conceitos da razão natural e não na experiência alimentada pela ação. Eles falam mais sobre os atributos da oração do que sobre a sua essência. Um pode explicar muito bem por que devemos orar; outro fala do poder e dos efeitos benéficos da oração; um terceiro, das condições necessárias para bem realizar a prece, ou seja, é preciso ter zelo, atenção, calor, do coração, pureza de espírito, humildade, arrependimento para realmente podermos começar a orar. Mas raramente encontramos pregadores contemporâneos que falem sobre o que é a oração e como podemos aprender a orar - essas questões essenciais e fundamentais -, pois essas questões são mais difíceis de serem dadas do que todas suas explicações; elas pedem não um saber escolar, mas um conhecimento místico. E, o que é ainda mais triste, essa sabedoria elementar e vã faz com que meçamos Deus através de medidas humanas. Muitos cometem um grande erro ao pensar que os meios preparatórios e as boas ações engendram a oração, quando, na verdade, a própria oração é a fonte das obras e das virtudes. Eles confundem os frutos ou as consequencias da oração com os meios para chegar até ela, diminuindo assim sua força. É um ponto de vista completamente oposto ao da Escritura: "Antes de tudo, exorto a que se façam orações, pedidos, súplicas e ações de graças por todos os homens" (1Tm 2,1)

Trecho do livro: Relatos de um peregrino Russo. Anônimo do século XIX.

Orai sem cessar


Há cerca de um ano ouvi, durante a liturgia, o mandamento do Apóstolo que diz: Orai sem cessar. Sem saber o que fazer para compreender essas palavras, eu apliquei-me à leitura da Bíblia. E lá também em muitas passagens, encontrei esse mandamento de Deus: é preciso orar sem cessar, sempre, em todos os lugares, em todos os momentos, não apenas durante os trabalhos quotidianos ou quando estamos despertos mas até mesmo durante o sono: "Durmo, todavia meu coração está vigilante." (Ct 5,2). Fiquei muito surpreso ao ouvir estas palavras e não consegui entender como é possível realizar tal coisa, nem quais são os meios para alcançar esse estado. Senti despertar em mim um violento desejo e curiosidade dia ou noite essas palavras não me saem mais do espírito. Foi assim que comecei a frequentar as igrejas - ouvi vários sermões sobre a oração, mas apesar deles serem belos sermões, eu não consegui aprender a orar incessantemente. Todos esses sermões falam sobre a preparação à oração ou sobre seus frutos, sem ensinar como orar sem cessar, nem o que isso significa. Li a Bíblia frequentemente e lá reencontrei essas palavras; no entanto ainda não alcancei a compreensão que desejo. Desde essa época sinto-me inquieto e incerto.
Trecho do livro Relatos de um peregrino Russo. Anônimo do século XIX.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Café da manhã com moradores de rua

Meu amigo Felipe me perguntou o que fazemos Café da manhã com moradores de rua. Resolvi escrever um texto pessoal explicando.
Segunda-feira, acordo de manhã, tomo um café da manhã correndo, saio pela rua e um pouco antes das 7:30 chego na Praia do Flamengo. Bem ali debaixo de umas árvores há uma grande concentração de pessoas. Umas 100 pessoas sentadas em círculo aguardam o amanhecer e o café da manhã: café com leite, chocolate quente, café puro, iogurte, refresco, enfim, uma bebida a escolha e um pão com manteiga e uma broa de milho. Sentam-se num grande banco de concreto num formato de meia lua e a outra parte do grupo em pé ou sentada no chão mesmo. Todos aguardam o início da distribuição dos alimentos. No centro da roda, o grupo de voluntários vai chegando. Pessoas derramando bom dia, apertos de mão, sorrisos. Fazem uma oração, combinam os últimos acertos da distribuição e se voltam para o grupo grande, convidam todos a darem-se as mãos e todos, numa grande roda, lembram-se de agradecer e pedir a Deus por seus sonhos e projetos de vida e, à Divina Mãe, bênçãos que os protejam dos perigos da rua. Ao final do Pai Nosso e da Ave Maria, todos em uníssono repetem três vezes o que se tornou a senha do grupo: “Que haja paz, que haja saúde, que haja felicidade!” Então começa a distribuição dos alimentos ao som dos pássaros que circulam pelas árvores, do bom humor e das palavras de otimismo dos voluntários que despertam sorrisos e alegria junto com o saciar de uma fome que dói no corpo e no coração das pessoas que moram nas ruas do Rio de Janeiro. Nesse momento, mais pessoas foram chegando e já somos cerca de 150. Todo o alimento é distribuído e, quando dá, acontece o famoso “repeteco”... durante a distribuição algumas pessoas leem mensagens de pequenos livros, um a um, outros distribuem algumas roupas, outros dão um encaminhamento para corte gratuito de cabelo, outros colocam um pouco de ração no chão quando há algum cachorro no grupo... as pessoas vão indo embora e, ao final, faz-se uma roda de conversa e oração e, então, as pessoas sentam para receber “o passe”, uma oração individual com imposição de mãos que alguns voluntários espíritas e reikianos gostam de oferecer. De todos os trabalhos com moradores de rua que já vi, sinto que o nosso diferencial é o fato de que ao ar livre o pessoal fica mais à vontade (são mais eles mesmos) e há um clima de alegria, tranquilidade e respeito mútuo no ambiente.
Eu procuro trazer um pouco dessa harmonia com a ajuda de um violão. Gosto de tocar violão e cantar com alegria olhando nos olhos dos meus companheiros de estrada que, nesse momento da vida, passam por um momento muito complexo: ausência de casa, emprego, família, amigos, ausência de esperança e de confiança na sociedade em que vivem. A grande maioria das pessoas que vivem na rua estão lidando de maneira muito dura com uma necessidade de buscar a sobrevivência num ciclo de poucas horas... como conseguir obter a próxima refeição?... e, para mim, a grande dor é viver num clima mental de abandono, de desconfiança e violência, de solidão e pouca crença em si mesmo e num amanhã melhor. Então olho para a minha vida e para a sociedade em que vivemos, penso na Globalização, nas desigualdades que se tornaram parte do jogo, mas penso sobretudo na insensibilidade que se instala na gente. O outro se torna invisível. Falta afeto, falta contato, falta-nos o estabelecimento de vínculos calorosos, amorosos... e isso acontece em todas as classes sociais. Uma sociedade dopada, um ser humano mutilado em seu potencial amoroso. E olho para o que acontece aqui às segundas de manhã e percebo que é um espaço de resistência... olhar no olho, apertar as mãos dessas pessoas, falar de esperança, ouvir suas histórias de vida... e perceber que somos muito parecidos, e que qualquer pessoa pode um dia ter de ir viver na rua (é um acidente passível a qualquer pessoa) e contar com a precariedade dos serviços públicos que são na verdade contraproducentes para esse público (os abrigos são terríveis, a polícia os violenta e leva seus documentos para dias depois cobrar pelos documentos, um cinismo típico dos piores regimes políticos, sofrem preconceitos nos hospitais e postos de saúde e sofrem com o estigma social de mendigo, sujo, louco). Uma depressão grave, uma crise familiar (tal como uma traição amorosa), uma surto psicótico, ser vitima de um assalto longe de sua cidade, o falecimento de seus familiares, ter de fugir dos conflitos armados de comunidades, são causas que levam muitas pessoas às ruas e à estereotipia de um lugar social da mendicância e da vagabundagem. E uma vez na rua, ela os abraça, encontram vínculos solidários entre os próprios companheiros, encontram toda a precariedade nos serviços sociais que deveriam ajudá-los e entram num círculo vicioso. Os dias passam e quando se vê, já se está há anos, décadas, longe do seu destino, distante de seus propósitos de vida. Nessa hora, precisa chegar uma mão amiga. Forças vitais que as ajudem a se levantar, que pelo menos alimente a esperança em recomeçar. E, ouvindo histórias, a gente percebe que há uma construção de vida que se dá ali mesmo na rua, e que não necessariamente a melhor coisa do mundo seja “retirá-lo da rua”. Então creio que ali precisamos construir simplesmente um espaço de acolhida e respeito pelo outro como igual, um ser humano digno de existir tanto quanto eu, tanto quanto cada um de nós.
Alguns nos acusam de assistencialismo. Eu digo que é um trabalho humanitário. Ora, as pessoas precisam de assistência. Em todas as áreas da vida. O Estado não chega para essas pessoas. E quando chega, salvo raras exceções, chega com violência e não assistência. Foi da janela de sua casa em Botafogo, que Betinho viu um homem revirando o lixo em busca de comida e resolver lançar a campanha contra a fome, na década de 90. Para mim é como visitar um país devastado pela guerra, um campo de refugiados, ou mesmo cuidar de crianças que foram usadas como guerrilheiros numa guerra civil. Não posso condenar essas vítimas, preciso acolhê-las. É o mesmo sintoma de uma tragédia humanitária, uma tragédia da qual fazemos parte. Só que ela acontece dia a dia debaixo de nossos narizes, em meio a grande cidade e enquanto a vida normal acontece. No entanto, a própria vida normal é doente, neurótica, infeliz. Trabalha-se por um sistema enlouquecido e, no geral, as pessoas não são felizes em seu trabalhos, não realizam seus sentidos de vida. Então ir à rua, olhar nos olhos dessas pessoas, é para mim de um enorme sentido existencial, um sentido que pude encontrar até hoje, que me ajuda a não delirar num mundo particular de minha atual classe social, me ajuda a ter consciência da partição social de nossas cidades, me ajuda a ser mais humano, mais completo. E ali vou recolhendo histórias, vou tecendo um tipo de vínculo que creio seja para a eternidade. Se, no passado, nós guerreamos tanto, é hora de nos unirmos em causas mais amorosas. Temos a força dos antigos guerreiros adormecida em nós. Quando começarmos a utilizar essa força num sentido amoroso e inclusivo, longe dos narcóticos da sociedade de consumo, vamos ter mais tempo uns para os outros e construir um lugar mais feliz de viver. Acredito na inocência do meu coração e do coração dos voluntários que vão a esse trabalho. Nós acreditamos em coisas simples como dar bom dia, olhar nos olhos, dar as mãos e nos voltarmos juntos para Deus. Aliás, o grupo é composto por pessoas que seguem religiões diferentes, espíritas, católicos, umbandistas, evangélicos, pessoas ligadas às tradições de meditação, e mesmo pessoas sem religião alguma, todas movidas pelo amor ao ser humano. Fazer roda, rezar em conjunto, foram hábitos que fomos integrando ao trabalho por pedido das próprias pessoas que moram nas ruas e gostam de orar, e sentem nessa ajuda a presença do que para elas é expresso como presença divina. Eu pessoalmente creio nesse divino humano que somos e na presença que somos uns para os outros. Para mim é muito transformador, cada semana receber essa presença humana lá. Sinto que nosso trabalho vai se expandir, especialmente nessa possibilidade de ampliar o tempo de convívio, de troca, de escuta. Já temos o projeto de meditação e yoga, estamos pensando num projeto de esporte com futebol, enfim, depois de 10 anos é hora de crescer um pouco mais.