sábado, 27 de agosto de 2016


Leituras poéticas entre mar e céu
André Andrade Pereira


Lendo o livro de Rita Loureiro Graça
Pele-a-pele, aforismos de uma poesia do cotidiano: o por aí afora da vida.
Editora Chiado, 2016

“Eu sou pássaro-árvore, minhas raízes estão aqui
Na minha casa interior e minhas asas,
Abertas para o temporal do mundo.
Vou e fico, num mesmo segundo.
Apresentação

Tive a alegria de conhecer pessoalmente essa escritora no ambiente mágico de Piracanga. Depois de alguns encontros onde não disfarcei meu interesse em conhecer aquela linda jovem compenetrada em seu lap top mas que, igualmente, sabia se fazer presente na alegria do sorriso em cada troca de olhar, depois de falarmos dos mistérios da temporalidade de se viver ali em Piracanga, eis que a jovem começa a citar Jorge Luis Borges e outros poetas  interessantes até que, finalmente, ela revela que escreveu um livro de poesias. Fomos até sua casa e ela me vendeu um exemplar com uma belíssima dedicatória de presente. Então a minha própria poesia renasceu lendo página a página de seu livro.

A maioria dos seus poemas são encantados, tem o dom da iniciação. Enquanto lia, sentia o universo de Rita, um universo calmo, altamente perceptivo e sensível, contemplativo até; a dose certa entre a descrição do mundo de fora, com a imensidade do mundo de dentro... e ali, imediatamente, minhas percepções igualmente se abriam e me convidavam a ver e sentir o mundo a minha volta, um mundo eternamente novo, apesar de o mesmo de sempre.

O milagre que andei procurando ao longo da minha vida de aventureiro apaixonado pelos inícios: como me encantar permanentemente com o mundo da rotina, do cotidiano? Rita, neste livro, nos inicia nessa arte. E, assim, aprendiz, resolvi ler com mais vagar seus aforismos e poemas, comecei a mandar alguns deles para um grupo de amigos do Rio, pelo telefone celular. Então, uma amiga pediu que eu comprasse um exemplar para ela também. Fiquei feliz porque teria a chance de encontrar Rita de novo e comentar sobre alguns poemas dela. Só que nesse meio tempo, machuquei meu pé jogando vôlei (quem me conhece sabe que de cada três partidas, eu me machuco três vezes) e fiquei em casa de repouso. Mas Gabi, companheira amada, junto com nossa filha foram até a casa dela. Rita ia entregar a ela mas como nenhuma das duas sabia o nome da amiga para a dedicatória, minha mulher disse para Rita ir lá em casa, levar o livro e aproveitar para me visitar. Na verdade, nessa terra de magia, Gabi também usou suas artimanhas e conseguiu atrair a escritora para tomar um chá com a gente lá em casa e nos inspirar um pouco mais. E foi uma maravilhosa oportunidade de ouvi-la contar um pouco mais das histórias por trás dos seus escritos, e entrarmos na dimensão poética da vida que acontece a cada segundo. Entre um chá e outro, ela foi presenteada pela presença divina de nossa filhinha, sem saber que tudo era um grande plano do Destino para nos tornarmos amigos. É assim a vida de pessoas que estão abertas a ver a luz das pessoas. Depois ela me contou sobre terapia homeopática e outros mistérios que ainda pretendo me iniciar. De tudo, crescia a vontade de escrever minha leitura de seus textos (uma interpretação, uma análise crítica, uma re-criação?), para incentivar mais e mais leitores, de modo que pudessem sentir esse aroma, ter esse gosto e vivienciar, na pele, o universo de Rita e de si mesmos. E agora, um pouco do meu também.

Primeira Impressões

Fiquei muito impactado com seu trabalho logo no início, nos primeiros poemas e aforismos.
O livro começa assim:

“Nós vivemos para conquistar nossas saudades”.

E logo mais a frente encontrei um poeminha singelo chamado “Inocência”:

“Tinha uma tristeza
Morando em mim,
Fiz dela passarinho
Retirei seu ninho
E voou como um querubim...”

E um outro aforismo que me revelou um pouco do espírito da sua poesia:

“Sabe quando tem um buraco no meio do seu ser? O meu virou uma janela.”

Três momentos de seu livro. A saudade, a tristeza, o vazio. Três dores. Uma poesia que está às voltas com o sentimento humano. E com os processos do viver. Rita tem a maturidade dos espíritos fortes, capazes de encarar a própria dor. E faz da poesia sua alquimia, seu caminho de transformação, de sabedoria, de estar em paz com a própria vida, de estar em paz com as leis da vida. Com profundidade e leveza, nasce o bom humor e as soluções que só se encontra na sabedoria das crianças inocentes ou nos sábios anciãos. Talvez seja esse o seu recurso poético, manter a magia, o encantamento da infância. Rita retorna a infância e faz essa alquimia. Saudade ao invés de chorada e sofrida, se torna motivo de conquista, de impulso de vida. A tristeza se torna um passarinho que voa como um querubim. E mais tarde veremos como o tema do voo aparece numa poesia que igualmente ama a terra e as raízes bem fincadas no solo (da infância?). O vazio, ou melhor, o buraco no meio do ser, ao invés de lugar para se afundar, se tornou janela, ou seja, foi através da dor que seus horizontes se ampliaram, convidando-a ao voo do viver.

Essa foi a Rita com quem comecei a entrar em contato através dos seus poemas.

O tempo da poesia

“Se cada ato meu não pode ser poético então nada mais vale a pena.”
Ler a poesia de Rita é se convidar a entrar num outro ritmo, numa outra relação com o tempo. Um tempo de contemplação, de percepção sutil das coisas. É preciso parar e respirar, deixar tudo de lado e se concentrar para mergulhar com ela em seu mundo. Um mundo interior em constante relação com os elementos naturais que vão surgindo em seus textos, o mar, as árvores, o sol, a lua, as estrelas, a chuva, seu manjericão na varanda, as frutas com que se delicia, a sombra das árvores de sua infância, a presença humana do amigo na varanda, a luz que entra pelas janelas, a areia da praia, a porta velha de madeira da casa, o mar e as areias.

Acompanhar sua poesia é entrar numa outra atmosfera perceptiva, um estado alerta, atento, o que faz parecer uma leitura espiritual de meditação, de percepção de todas as coisas ao redor e, ao mesmo tempo, a percepção da interioridade. (Quem sabe a interioridade das coisas seja a sua grande busca?) Mesmo nas coisas mais ínfimas do cotidiano. Tudo em constante comunicação entre o ser de dentro e o de fora.

Com uma habilidade misteriosa de despertar empatia, ler seus poemas, seus aforismos, é compartilhar desses sentimentos, suas alegrias, seus êxtases, suas saudades, suas raivas, seus desejos e paixões repentinas, sua descoberta do feminino, e a suavidade do seu amor, sim, o amor é o tema mais presente, um amor misterioso, cujo objeto ora é um humano, ora um pé de manjericão, ora o pai, mas o que predomina mesmo é o amor puro, o amor verbo sem objeto definido, e quando o objeto aparece, aparece mais ao final do poema, pois o tema é sempre ela mesma “Andarilha de si mesma”, em sua abertura amorosa pelo mundo, essa constante aventura de quem descobriu que “casa mesmo é dentro da gente”, seu amor é esse estado de alma: de gozo pelo mundo, que exige esse outro tempo, o tempo poético, o tempo do sentir...

É nesse outro tempo que Rita vive e elabora sua poesia. E, por vezes, se pergunta (e nos denuncia) sobre a vida corrida do mundo:

“Tem horas que me pergunto sobre a pressa. Vivemosandamoscomemosolhamoslemos na pressa instantânea das criaturas dos calçadões apinhados das grandes cidades, nem mesmo nos olhamos direito, ao outro então, mal sobra espaço. Moramos empilhados em apartamentos verticais  imensos e nem conhecemos nossos vizinhos de cimabaixoladofrente (...) Progressão em aritmética, somam-se, subtraem-se, mas não amam-se, não trocam, não destrocam, não permitem.”

O mesmo vazio de sensibilidade diante das coisas é o vazio de afeto e de encontro. Creio que Rita expressa a angústia humana da falta do amor num mundo de relações superficiais. Rita busca o amor.

“Se existe algo, este algo é passível de amor”

E como já sabe que o amor nasce de dentro... eis o seu caminho.Vive radicalmente uma busca de si mesma, que é uma busca pelo viver a partir de si mesma:  “Eu me recuso a não ser-me”

“Me perdoem, mas não posso ignorar a urgência de ser-me (...) não tenho mais para onde ir, a não ser para dentro.”

Palavra é barro, poesia é arquitetura: assim se faz a casa interior de Rita

“Se é nas saias da poesia que eu me escondo, é somente nela que eu consigo contar a verdade” diz ela no poema Toca.

E assim, recolhe-se e acolhe a propria solidão como algo bom.

“Tudo para mim tem um sentido íntimo que não precisa ser expresso, é uma paz minha, sentida e que transborda nas coisas que eu faço”

E aprende nesse mundo interior a lidar com tudo que lá existe incluindo o medo:

“O medo? Ele está lá sussurrando. Sempre esteve.”

 e a própria sombra:

“Abraço minha sombra, deixo que ela chore porque selvagem é o vento que assopra e anima o ser.”

Rita descobre através da poesia esse caminho da mestre de si mesma. O tema do medo já apareceu no poema “Gente” onde ela diz:

 “Não é possível lutar contra o medo, contra a escuridão, mas é possível amar e acender a luz: simples, difícil e corajoso.”

E em “Medo assumido” Rita faz sua poesia do cotidiano de um jeito bem humorado

“Quer saber? Se o Medo resolveu alugar uma água furtada no meu telhado e morar lá, que seja um inquilino muito bem vindo, pague as contas em dia e faça silêncio. Porque eu... estou morando no andar de baixo (...) o nome dele vem na conta de luz, vejo ele subir e descer as escadas do saguão quando vai tomar café da manhã. Tenho que viver ali, todos os dias com a rotina dele e com a minha.”

E completa:

“Nós dois nos ajustamos bem”.

E na solidão encontra uma relação íntima com o mundo natural, e a paisagem interior, a arquitetura interior, é repleta de elementos da natureza:

“Tem dias... em que se escorre... no estar só (...) chove e é de mim que as gotas se fazem a oceano livre, inundo o quarto com o meu ser... sou. E o mundo me é, piso nas poças pelas ruas de mim, aspiro essências de terra e ando descalça pelo vento.”

Poesia que acontece no corpo, na pele.

“Quero carne e não palavras, quero olhos e não visões, quero o suor real e não o perfume ilusório”

Dentro de si Rita descobre o prazer. E é o prazer, especialmente o prazer na pele, o que vai lhe reconectar ao mundo, ao Outro. E nesse caminho andam juntos o seu tempo poético, sua interioridade, o universo do sentimento, e um sentir que é próprio do corpo, que lhe conecta com os elementos da  natureza, e o desejo de um romance com um humano que esteja à altura de entrar nessa vinculação de profundidade, que é seu alimento.

 Entra em destaque na sua poética a pele.  Antiplatônica assumida, o amor em Rita acontece na pele, no sentir as coisas, e sentir com as mãos, com a boca, as coisas que “escorrem”, sorver os cheiros, muito mais do que com os olhos... Rita é carnal em sua poesia, ao mesmo tempo que misteriosamente suave e transcendente...  e a sua arte alquímica, seu laboratório, é a mistura sui generis da língua portuguesa com um conhecimento místico dos elementos da natureza. Com a língua ela produz inversões de sentido, paradoxos, absurdos, fantasias e neologismos que nos surpreendem e nos reconectam com seu modo próprio de ver o mundo natural, as coisas e suas cores... a Verdade se torna verde, a tristeza se torna passarinho e depois voa como querubim... conhecer os pés é adentrá-los na terra, a sinceridade é como os raios da noite que vêm com o sussurro da lua e, por vezes, Rita se perde no branco...  sua poesia é uma busca de comunhão com a natureza... sua meta talvez seja o silêncio, o absoluto, o simples, que é uma vida bem aventurada e sem palavras que a expresse...  Um mistério, sim.

“Minha poesia me traz para o corpo.” É assim como uma sensibilidade grande demais, quase insuportável, que encontra expressão em palavras e encarna na pele em levezas e sutilezas... e é exatamente através do corpo que ela entra em contato com o mundo, uma relação sensorial. Onde até mesmo acordar de manhã, passa pelos sentidos:

“frestas de luz filtradas na poeira do cobertor em suspensão. Cheiro de café acabado de fazer”. Assim começa uma manhã preguiçosa na cama. “Toco a realidade áspera da torrada com a ponta dos dedos e sinto o seu gosto.” Sensorialidade que a convence de que “É caso de viver.”

O que é o ser humano? Essa gente-poema “vê, come,cheira, saboreia, toca e no seu sexto sentido, o mais belo de todos, faz poemas.” E assim o ser humano sabe do mundo pelos sentidos:
“Vem em mim o estado próprio das coisas e dos seres de não serem. E tudo aquilo que antes eu conhecia, agora desconheço, e por assim ser: toco, sinto, cheiro e como. Saboreio em cada pedaço o prato inteiro.
- Me vê um cafezinho por favor?”

 “Gente-poema sabe sentir o mundo porque é mundo e isso é tudo e isso é só.” Ou seja, o conhecer é um processo que ocorre por simpatia, por comunhão, semelhante que percebe semelhante. Só posso conhecer o mundo por ser, eu mesmo, mundo, em outras palavras, corpo.

A própria angústia e o desejo de liberdade passa pela relação com o corpo:

Acordar “como se tivesse a roupa costurada no corpo, e tudo que quero é o lapso de a arrancar com costuras e botões e tudo... e me ver assim, honesta, nua – Desfeita.”

 O corpo é sobretudo a pele, que dá título ao livro, lugar de carícias, de carinho, lugar onde “escorre afeto sincero”, uma mulher que valoriza “os olhos que temos nas mãos”... Entretanto, por vezes o corpo é prisão, é a pele que sufoca, quando sente que precisa romper... “irromper pelo mundo, romper minha pele, rasgar num resgate íntimo a minha sensibilidade...”  E então o corpo se aprofunda e seu caminho é seguir as “veias solitárias e humanas”, aqui, corpo é já o pulsar das veias, são as tripas que se tornam coração, é o que lhe dá inteireza. E do corpo nasce também o “cordão angelical” de uma poesia que endelicadece a vida... uma espiritualidade que acontece a partir do sentir do corpo.

Notamos em seus textos um corpo inteiro, muito atento, perceptivo, meditativo. E foi o que me aconteceu à medida que ia lendo, ia inspirando em mim mesmo a percepção das coisas ao meu redor e me senti mais centrado, mais meditativo.

Ouvidos atentos, Rita define sua poética como diurna, do cotidiano, essa atenção desperta para os sons que se transformam em matéria prima para criar e sentir-se no mundo, viva, namorando as coisas, sentindo sua alma. Em muitos momentos Rita faz declarações de amor ao cotidiano: poesia é “ter os olhos de Ver o desconhecido no cotidiano.”

“Quero agora é que o dia brote das minhas mãos e que a noite venha mansa como tem de vir, que música nenhuma ouço, só o barulho da rua, do vento nos vidros e dos vizinhos a lavar a varanda. É de cotidiano que nasce minha arte, é de dia que engravido, pois arte mesmo é aquela que não tem hora nem lugar, não conhece tempo ou destempo ela vem e assim como o sol na manhã cinzenta traz alguma cor pro verde. É de verdar que minha arte respira: verde de folha nova, verdade que namora em baixo do pé de pitanga. É de pássaro desperto que vive minha alma.”

Do sensorial ao êxtase místico

“Que a oração seja verbo e encontre o ser no corpo”

No poema “pássaro-chuva” o leitor pode acompanhar o itinerário desse modo de ser poético de Rita... é algo que acontece de repente, quando a gente se deixa invadir pela dimensão poética à nossa volta. Gosto de pensar que foi assim com Rita nesse dia em que ela desce a rua para tomar banho de chuva e depois é presenteada pelo sol que se torna doce... a sutileza de Rita está na forma como se sentiu convidada a esse banho de chuva.

Primeiro o som da chuva que:  “tanto na minha cabeça que ouvir a chuva forte não foi um convite, foi um apelo.”

Depois o desenho das gotas de chuva numa descrição belíssima e econômica em palavras: “Olhar para a porta velha de madeira vendo as gotas desenharem os degraus, pulando, subindo e descendo. Caminhando, a água vai pela rua enladeirada, e eu desço junto.”

Creio que o mérito da Rita, assim como em todo o viver poético, está no olhar receptivo. É como uma virada de chave interna. Num momento, o mundo cotidiano, sem graça, monótono, superficial... um olhar prosaico. De repente, algo vira a chave... percepção poética. Nesse dia, parece que foi o som da chuva... fico imaginando... a pessoa em seus afazeres, de repente se dá esse tempo de ir ouvir a chuva, e dali a visão das gotinhas, e então a vontade de sair de casa e então a chuva lhe cai sobre o corpo:

“sinto as gotas de chuva lavarem meu suor, gosto de sal”
E então a relação vai ficando mais e mais dionisíaca, o prazer sensorial, a pele entre em cena, o corpo inteiro vai entrando nesse erotismo: “eu me perco, chupo ao lábios e sorvo cada gota...”

Então a surpresa com o fim da chuva, e a abertura de si para sentir o sol:  “a chuva para e o sol fica doce.”

Com a chuva, diz ela, “meu coração se aquietou e foi ninado pela sua música de milhares de gotas”

Uma experiência que, por fim, é uma mística da totalidade: “se sou uma gota só eu já não sei... naquele momento fui todas.”

Do som ao olhar, do olhar ao andar e sentir na pele, daí a entrega, o prazer, e o perder-se no todo... o arroubo místico, um arrebatamento, um êxtase de comunhão, de ser um com todos os pingos de chuva, um conhecer propriamente a chuva...

E ali está a sutileza de nossa poetiza: a chuva que ninou seu coração.

Voar por ter os pés na terra

“Eu sou pássaro-árvore, minhas raízes estão aqui
Na minha casa interior e minhas asas,
Abertas para o temporal do mundo.
Vou e fico, num mesmo segundo.

No poema que escolhemos para epígrafe desse texto, ela se define esse pássaro-árvore. Sua ligação com a terra, onde finca seus pés. Talvez seja todo esse terreno onde reencontra em si mesma seu pai, sua mãe, sua infância, suas saudades, seu cheiro de casa de avó e sombras de árvores velhas, sua interioridade silenciosa e atenta... de outra parte suas asas abertas para a aventura, suas ousadias, suas viagens, suas rupturas de pele, sua abertura para os riscos do amor, do gozo, sua quebra de paradigmas... e tudo isso, esse ir e esse ficar, ocorrem num mesmo segundo. Essa é a Rita inteira, asas ao céu e pés bem fincados na terra... o que lhe permite ir além dos próprios pássaros.

“Árvore com raiz, voa mais que pássaro com asa. Tem terra pra onde voltar e topo pra ver o primeiro sol tocar nas folhas.”

E assim sua sabedoria de vida:
“Compasso de caminhar com um pé no caminho e o outro no vento.”

A intensidade

“Eu sou isso. Essa não conciliação das possibilidades...”

E, alguns momentos seus poemas falam das sutilezas etéreas, em outros momentos há espaço para uma intensidade quente, um fogo interno, um permitir-se a loucura, que é o que a torna uma pessoa inteira. Guarda em si todos os elementos. Alguns trechos ilustram essa vertente intensa, na sua autodescoberta:

“Hei de beijar cavalos, apalpar flores e devorar as entranhas de um passarinho só pra ver o voo escorrer.”

“Selvagem em meu interior vou me desbravando. Mata brava, monto em meu cavalo branco e me resgato de qualquer ser artificial.”

“Fora de mim sou sombra de outras árvores, e dentro sol. Calor e fogo.”

“Minhas veias ardem por mar”

E essa intensidade aparece também em seu próprio fazer poético, seu jeito de escrever em guardanapos, notas fiscais...

“Eterna obra final
Te recuso pela imortal intensidade dos rascunhos”

O encontro amoroso

“Tem uma fenda aberta na minha mulher”

Encontrei na poesia de Rita um verdadeiro desejo pelo outro, pela presença do outro. E aqui, o ouro aparece numa radical alteridade, ou seja trata-se verdadeiramente de um outro, alguém que o eu não poderia criar, imaginariamente, fantasiar. Não é um personagem idealizado. Há aqui um autêntico desejo de encontro com alguém de carne e osso, que será sentido pela pele. Alguns versos ilustram isso:

“sou breve quando me toco
porque sou longa quando contigo
para que me percorras inteira”

“sentir o outro em mim”

“Sou uma mulher de muitas arestas, justamente porque creio no outro”

“o inteiro meu, já não sabe sem o inteiro teu”

 E o caminho do amor aparece como caminho de entrega intensa, sem reservas:

“Tenho a sorte de ser desavisada do perigo, porque me entrego sim, em totalmentes; meu coração é.”

Entrega que exige reciprocidade. Já que ela sente “a dor de não encontrar um emparelhamento, um outro ser que se dê em totalidades sem exigir.”

Tudo na poesia de Rita é um jogo entre a sutileza da carícia leve e a nervura do encontro real, carnal; uma mistura de verdade espiritual com o gozo do corpo... Rita vive intensamente esse encontro entre o espírito e a paixão do corpo; não é que ela oscile entre esses extremos, mas em sua profundidade de sentimento, ela, em corpo e poesia, ou melhor, habitando poeticamente o corpo, se alimenta desse encontro entre a verdade filosófica e o prazer sensual, despreza o puramente intelectual e não vê graça nos encontros superficiais, mas vive ali, exatamente ali, nesse encontro sutil entre espírito e carne, em estado de graça, no afago sutil, nas carícias em sua pele, num encontro feito de “tensões simples.”

“Pegar o éter tem qualquer coisa de apalpar, não de segurar”

A sutileza da carícia amorosa aparece representada pelo elemento éter.

“Nossos dedos se confundem (...) se banham as almas em prece de saliva...
É aí que a verdade goza.”

Uma filosofia do amor: o gozo da verdade! Ou seja, ao invés de habitar o reino intelectual, a verdade vem ao corpo, mas em seu desejo, há que se respeitar a sutileza etérica de sua pele, o que torna a carícia uma sensação transcendente... “Infinita é a sensação de carinho, causa em nós arrepios e lembranças sensoriais – de pele.” E creio mesmo que essa via amorosa para o transcendente encontra a mesma expressão no caminho de sua poesia, no rumo do mundo sem palavras, na expressão do silêncio. Vejamos isso.

Amor e silêncio: a literatura como caminho místico.

“Queria ler a noite toda, todos os livros que me chamam, as palavras todas escritas da humanidade até não restarem mais páginas, só folhas em branco. Só limpidez, pureza. Até não haver mais distância entre os seres.”

Nesse poema, “Ecos de domingo”, Rita também fala da lua cheia, do desejo de fugir com um cigano, e também fala de como lhe agrada a presença do manjericão em sua varanda, contrastando com o veneno da fumaça do cigarro...
Na ambivalência dos desejos: de um lado o desejo carnal de um amor casual com um cigano que fosse embora na manhã seguinte (inspiração de lua cheia, a lua dos amantes), de outro o amor companheiro e fiel do manjericão suave que lhe acarinha. Rita vive essa antinomia entre esses tipos de amor também na sua relação com a literatura... o desejo voraz de ler tudo que há, de possuir todas as palavras.... desejo que se esgota na limpidez e na pureza das páginas em branco, no silêncio... silêncio onde o encontro entre os seres se torna possível...  assim Rita escreve... para limpar a alma... e, só assim purificada... viver o encontro com o Outro... na linguagem silenciosa do encontro:

“Necessidade de língua para quê, quando em um se converte o discurso do olhar?”

“Eu me reconheço em preces de silêncio...”

“Não tenho mais palavras, e não é que não as encontre... É só que já não valem mais o esforço.”

Viver é sustentar a criatividade

Encerro esse artigo, e a leitura desse livro, com a sensação de ter encontrado uma escritora, uma pessoa, muito completa. Nela se harmonizam terra, ar, fogo, água e éter; sombras e luzes; cotidiano e êxtase; espírito e corpo; e, de tudo, fica a impressão de se tratar de um ser humano que aprendeu a aprender com a vida...

Um jeito de encarar a vida sem ter medo do medo (“portas são passagens, porque as tornar em obstáculos?”) e cultivando a paz e se dando o direito de desfrutá-la (poema “Na minha terra” transcrito logo abaixo). E... quando nem a escrita dá conta do tamanho de todo o sentimento, é o corpo que a salva, em movimento, e Rita se convida a dançar. Espero que continue dançando tanta vida por aí afora...

Na minha terra
“Jamais podemos presumir que uma vez alcançada a paz ela se sustentará por si mesma. Não se trata apenas de conquistar uma intensidade, de suspirar em flores, e sim de aprender com a vida a sustentar a criatividade que lhe é inerente. No caminho para me fazer brotar eu aprendi a cultivar a paz. Quando eu alcanço, toco e saboreio o seu fruto, eu sei que é só para não esquecer de que a cada dia que ela me pertence, eu pertenço mais ainda a ela: com gosto e sumo a escorrer pelos cantos da boca, em me entrego e durmo suspensa em seus galhos.”