segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Eu defendo a compaixão

Queridos, hoje estive no café da manhã e meu coração mais uma vez se contorceu de dor com uma mistura de sentimentos vendo a situação de cerca de 200 companheiros vivendo na rua. Por que tanta gente sem casa, tendo que percorrer a cidade em busca de alimento para sobreviver? Hoje muitos vieram me pedir ajuda para tirar segunda via de documentação, outros vieram pedir ajuda para um dentista, outro para um oftalmologista pois a fila para o atendimento na saúde pública é tão grande que ele que está com dor de dente hoje vai ter que esperar mais de um mês para o tratamento. Vejo tantos jovens se formando em medicina, em odontologia... tanto conhecimento, tanta vontade de trabalhar... por que o atendimento é tão demorado e muitas vezes inviável para essas pessoas? Teve uma hora que fomos doar roupa e um monte de gente se acotovelando para um peça de roupa... olhei para aqueles homens se acotovelando... era um perfil parecido... depois alguns me chamaram no canto e disseram: aquela roupa ali vai ser vendida no brechó e você sabe pra que os caras querem dinheiro... Me pergunto por que as pessoas se drogam tanto? Nossas sociedades modernas tem no mínimo 70% da população consumindo alteradores de consciência... e olha que não estou sendo radical e incluindo a televisão aqui... estou falando de crack, maconha, álcool... uma sociedade onde as pessoas tem um aplicativo para fugir da polícia não é uma sociedade saudável, nem ética... Depois chegou um homem totalmente transtornado, criou uma grande confusão provocando briga, pegou pedras para jogar nas pessoas e eu tive que ir lá acalmá-lo... conversa vai conversa vem... fui sentindo que temos ali um caso de transtorno mental grave sem tratamento... tantos profissionais da psiquiatria, tantos psicólogos formados com vontade de trabalhar... por que as pessoas ficam na rua sem tratamento adequado e ainda correndo o risco de serem presas como se fossem criminosos? Aliás me pergunto quantos presos não precisariam, na verdade, de tratamento? Lidar com a frustração é tão difícil para todos nós... às vezes olhando tanta dor no mundo, e tanta inconsciência... eu acho que eu estou por um triz de pirar também... me sinto tão impotente em fazer algo por essas pessoas. As coisas estão tão erradas... e parece que ninguém vê. Claro que no meio de tanto sofrimento, a gente vê um monte de coisa bonita também. Na nossa aula de yoga, uma de nossas alunas falou da mudança que está tendo em seu temperamento: que está "boba consigo mesma", que antes era agressiva e agora não briga mais com as pessoas. Todo mundo devia fazer yoga ou outras terapias para terem o mesmo efeito, né? Pelo menos isso a gente está conseguindo oferecer gratuitamente. Mas as sombras ainda são muitas e meu coração se enche de compaixão. Acho que compaixão é o amor misturado com o desejo de justiça. Quero que as pessoas sejam felizes. Olho o homem com pedras na mão e gostaria que ele encontrasse tratamento, ao invés de prisão... mas sei que a opinião pública que elege os políticos e mantem um pensamento conservador vitorioso no país não consegue ver assim... e que a opinião pública, a mesma que escolheu Barrabás ao invés de Jesus, quer jogar pedras no homem com pedras na mão. Mas meu coração dói diante do sofrimento psíquico do homem que segura as pedras na mão... e ao mesmo tempo dói só de pensar no que as pessoas pensam desse homem e que ninguém vê ali um doente mental precisando de ajuda, mas um criminoso que merece morrer. Eu defendo a compaixão... por isso ajudo a chegar o pão a quem tem fome. Eu defendo a caridade, por isso quero que chegue a moradia, o tratamento de saúde, o fim do linchamento, da execução sumária e da tortura, porque as pessoas precisam ser tratadas e não odiadas.... eu sou pelo amor e por isso estou na rua em contato com os mais pobres dos pobres da cidade, os que moram nas ruas, os sem ninguém, o sintoma da doença social que vivemos na cidade. Eu sou pela paz e por isso me pergunto por quanto tempo nós vamos aceitar que os dirigentes do Estado (esse que tem o poder de construir casas, de fazer funcionar o sistema de saúde, de organizar melhor para que não haja tanto excesso de comida na mesma cidade que tem tanta fome) continuem não cumprindo o seu dever. Meu coração está doído demais. Mas é a compaixão que me faz perseverar, apesar da dor alucinante do faminto que me xinga por eu lhe entregar o pão, apesar da ignorância do senso comum político que diz que o Brasil é subdesenvolvido porque pobre não gosta de trabalhar... ouço isso e sinto o ódio dessas pessoas e busco a fé... é preciso muita fé para tentar trazer luz sob o céu nublado do sofrimento humano... meus mestres foram mortos por serem bons... eu persisto! E acredito que assim a gente faz a diferença... vamos em frente! Aqui tem o texto da Política Nacional para a Inclusão da População em Situação de Rua... o texto é lindo! Foi uma vitória a sua aprovação a nível nacional. Sonho que seja colocado em prática... quem sabe... pelo Brasil a fora... esses novos prefeitos eleitos...
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/acoes_afirmativas/Pol.Nacional-Morad.Rua.pdf

domingo, 30 de outubro de 2016

(In)Exato

Voltando para casa irritado e frustrado após uma conversa com uma pessoa mergulhada no senso comum político, desabafei para minha mãe:
- Acho que escolhi a profissão errada.
- Como assim? - Ela quis saber.
- Eu não devia estar no campo das ciências humanas, as pessoas não respeitam seus anos de estudo, elas são cheias de opiniões erradas sobre o mundo social, não levam em conta o saber da história em seu pensamento, são dominadas pela ideologia dominante. Isso não aconteceria com um cientista natural, as pessoas perguntam para saber algo de um astrônomo, por exemplo... e jamais ficariam argumentando que é o sol e a lua que giram ao redor da terra.
E depois de um silêncio, eu terminei meu desabafo:
- Eu devia ter feito exatas.
E então minha mãe retrucou sabiamente:
- Mas você não é exato...

Minha mãe tem 69 anos e quando não está reclamando das dores do corpo, tem essas tiradas sábias e exatas para manter a auto-estima do filho.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Do fogo eleitoral à fogueira do conselho


"O dom da fala foi concedido aos homens não para que enganassem uns aos outros, mas sim para que expressassem seus pensamentos uns aos outros." Santo Agostinho.

Em tempo eleitorais, venho refletindo muito sobre que tipo de mecanismo democrático tem mais sintonia com os novos tempos da evolução humana.

Venho assistindo a disputa eleitoral, e mesmo tomando partido por um candidato, não posso deixar de me sentir triste com o processo democrático que me parece muito ultrapassado para valores que hoje já compartilhamos.

Nessas últimas semanas fiquei perplexo com a grande inconsciência das pessoas e de como a propaganda eleitoral afeta as opiniões de forma a deixar as pessoas menos reflexivas e mais preconceituosas.

Senti-me imensamente desanimado com a falta de sensibilidade com relação ao sofrimento das pessoas mais pobres e vítimas da crueldade e violência sistêmica que vivemos. Conversar com as pessoas é como "cair na real" e ver que o espírito de compaixão anda muito distante quando se pensa no todo.

Vi-me decepcionado também com a falta de motivação das pessoas para a participação e em acreditar que elas podem "fazer a diferença".

E para piorar meu estado de ânimo, senti-me altamente afetado com o clima de disputa que aumenta a emoção do ódio na cidade.

Entretanto, em meio a essa crise íntima, buscando alguma luz, eis que fui presenteado, só nessa semana, com três encontros em que falamos e fizemos um ritual conhecido como "bastão da fala". O que me fez pensar sobre: "afinal, o que significa todo esse processo eleitoral e qual democracia precisamos buscar?"

A inspiração do "bastão da fala" vem dos povos nativos da América do Norte e está concretamente presente nas formas de organização política das pequenas comunidades ecológicas atuais.

"Quando precisam tomar decisões que afeta a nação, os povos nativos das Américas recorrem a um ritual que pode durar toda a madrugada. Os membros desse conselho que se reúne em torno da fogueira são pessoas que já viveram muitos anos, sempre demonstrando lealdade, bravura, compaixão e altruísmo, além de ser um bom ouvinte, um conselheiro discreto, um juiz justo e um honrado membro da tribo.

Em cada tribo, todos reverenciam os anciãos com grande respeito por terem dirigido os caminhos da nação com desprendimento, coragem e sabedoria. E então, nos momentos de difíceis decisões, eles se reúnem enrolados em seus cobertores em volta da fogueira para passar a noite: é a Fogueira do Conselho.

E ali evocam a presença de todo o parentesco dos homens. Os espíritos dos antepassados, guias e conselheiros espirituais do povo, bem como o avô sol, a avó lua, as estrelas... e os animais, as plantas, as nuvens, as pedras... todos igualmente sagrados, assim como o vento, a terra mãe, o pai céu... E todo esse conjunto de seres, é colocado dentro do Cachimbo e a fumaça do Cachimbo conduz o espírito de todos os parentes para que participem e inspirem o Conselho.

Todos os pontos de vista são ouvidos. E ali cada um fala segurando o bastão que dá voz a quem o segura. Cada um escuta atentamente. Há silêncio reflexivo entre as falas. Os problemas pessoais são deixados de fora do círculo. Todo talento que possa ser útil para resolver as questões é trazido para dentro. Qualquer discórdia entre os membros do conselho é solucionada enterrando-se o Fornilho antes de fumar o Cachimbo. Ao final de cada reunião é realizada uma prece de gratidão, e muitas vezes um banquete festivo.

O objetivo é sempre manter a Paz. E quem convoca um conselho deve estar sempre pronto para acatar as decisões do mesmo. Quando um mau comportamento de alguém é levado ao conselho, admitir o erro e corrigi-lo ajuda a forjar o caráter e fortalece a Nação. A pessoa não passa vergonha, não é humilhada, e toda vez que tenta sinceramente corrigir seu erro, isso é visto como um ato de coragem.

Só quando todo o povo está bem, um indivíduo pode estar bem.

Quando essas diretrizes forem seguidas por todos os povos, os Filhos da Terra conseguirão, finalmente, romper os grilhões da desigualdade e da ditadura."

(citação livre do livro: "As Cartas do Caminho Sagrado" de Jamie Sams)

Viver a realidade dessa fala sincera e dessa sensibilidade para a escuta do outro, faz relativizar o que chamamos democracia hoje.

Não. Não é democracia. É disputa de poder. Democracia é outra coisa. E são os índios, em sua profunda conexão com o sagrado e a irmandade dos povos viventes, que têm algo a ensinar...

E assim, depois dessa reflexão e das práticas de bastão da fala entre estudantes e amigos, seguirei até domingo com a sensação de estar com a alma curada... tenho clareza de que o candidato que escolhi compartilha valores democráticos que se aproximam deste ideal, mas também tenho clareza da distância que há entre esse processo que estamos vivendo e o que sonhamos... já sei por quais caminhos devo investir minhas energias para ajudar a construir a socio-cosmo-cracia do futuro.

Vamos em frente. Há muito a ser feito.

sábado, 27 de agosto de 2016


Leituras poéticas entre mar e céu
André Andrade Pereira


Lendo o livro de Rita Loureiro Graça
Pele-a-pele, aforismos de uma poesia do cotidiano: o por aí afora da vida.
Editora Chiado, 2016

“Eu sou pássaro-árvore, minhas raízes estão aqui
Na minha casa interior e minhas asas,
Abertas para o temporal do mundo.
Vou e fico, num mesmo segundo.
Apresentação

Tive a alegria de conhecer pessoalmente essa escritora no ambiente mágico de Piracanga. Depois de alguns encontros onde não disfarcei meu interesse em conhecer aquela linda jovem compenetrada em seu lap top mas que, igualmente, sabia se fazer presente na alegria do sorriso em cada troca de olhar, depois de falarmos dos mistérios da temporalidade de se viver ali em Piracanga, eis que a jovem começa a citar Jorge Luis Borges e outros poetas  interessantes até que, finalmente, ela revela que escreveu um livro de poesias. Fomos até sua casa e ela me vendeu um exemplar com uma belíssima dedicatória de presente. Então a minha própria poesia renasceu lendo página a página de seu livro.

A maioria dos seus poemas são encantados, tem o dom da iniciação. Enquanto lia, sentia o universo de Rita, um universo calmo, altamente perceptivo e sensível, contemplativo até; a dose certa entre a descrição do mundo de fora, com a imensidade do mundo de dentro... e ali, imediatamente, minhas percepções igualmente se abriam e me convidavam a ver e sentir o mundo a minha volta, um mundo eternamente novo, apesar de o mesmo de sempre.

O milagre que andei procurando ao longo da minha vida de aventureiro apaixonado pelos inícios: como me encantar permanentemente com o mundo da rotina, do cotidiano? Rita, neste livro, nos inicia nessa arte. E, assim, aprendiz, resolvi ler com mais vagar seus aforismos e poemas, comecei a mandar alguns deles para um grupo de amigos do Rio, pelo telefone celular. Então, uma amiga pediu que eu comprasse um exemplar para ela também. Fiquei feliz porque teria a chance de encontrar Rita de novo e comentar sobre alguns poemas dela. Só que nesse meio tempo, machuquei meu pé jogando vôlei (quem me conhece sabe que de cada três partidas, eu me machuco três vezes) e fiquei em casa de repouso. Mas Gabi, companheira amada, junto com nossa filha foram até a casa dela. Rita ia entregar a ela mas como nenhuma das duas sabia o nome da amiga para a dedicatória, minha mulher disse para Rita ir lá em casa, levar o livro e aproveitar para me visitar. Na verdade, nessa terra de magia, Gabi também usou suas artimanhas e conseguiu atrair a escritora para tomar um chá com a gente lá em casa e nos inspirar um pouco mais. E foi uma maravilhosa oportunidade de ouvi-la contar um pouco mais das histórias por trás dos seus escritos, e entrarmos na dimensão poética da vida que acontece a cada segundo. Entre um chá e outro, ela foi presenteada pela presença divina de nossa filhinha, sem saber que tudo era um grande plano do Destino para nos tornarmos amigos. É assim a vida de pessoas que estão abertas a ver a luz das pessoas. Depois ela me contou sobre terapia homeopática e outros mistérios que ainda pretendo me iniciar. De tudo, crescia a vontade de escrever minha leitura de seus textos (uma interpretação, uma análise crítica, uma re-criação?), para incentivar mais e mais leitores, de modo que pudessem sentir esse aroma, ter esse gosto e vivienciar, na pele, o universo de Rita e de si mesmos. E agora, um pouco do meu também.

Primeira Impressões

Fiquei muito impactado com seu trabalho logo no início, nos primeiros poemas e aforismos.
O livro começa assim:

“Nós vivemos para conquistar nossas saudades”.

E logo mais a frente encontrei um poeminha singelo chamado “Inocência”:

“Tinha uma tristeza
Morando em mim,
Fiz dela passarinho
Retirei seu ninho
E voou como um querubim...”

E um outro aforismo que me revelou um pouco do espírito da sua poesia:

“Sabe quando tem um buraco no meio do seu ser? O meu virou uma janela.”

Três momentos de seu livro. A saudade, a tristeza, o vazio. Três dores. Uma poesia que está às voltas com o sentimento humano. E com os processos do viver. Rita tem a maturidade dos espíritos fortes, capazes de encarar a própria dor. E faz da poesia sua alquimia, seu caminho de transformação, de sabedoria, de estar em paz com a própria vida, de estar em paz com as leis da vida. Com profundidade e leveza, nasce o bom humor e as soluções que só se encontra na sabedoria das crianças inocentes ou nos sábios anciãos. Talvez seja esse o seu recurso poético, manter a magia, o encantamento da infância. Rita retorna a infância e faz essa alquimia. Saudade ao invés de chorada e sofrida, se torna motivo de conquista, de impulso de vida. A tristeza se torna um passarinho que voa como um querubim. E mais tarde veremos como o tema do voo aparece numa poesia que igualmente ama a terra e as raízes bem fincadas no solo (da infância?). O vazio, ou melhor, o buraco no meio do ser, ao invés de lugar para se afundar, se tornou janela, ou seja, foi através da dor que seus horizontes se ampliaram, convidando-a ao voo do viver.

Essa foi a Rita com quem comecei a entrar em contato através dos seus poemas.

O tempo da poesia

“Se cada ato meu não pode ser poético então nada mais vale a pena.”
Ler a poesia de Rita é se convidar a entrar num outro ritmo, numa outra relação com o tempo. Um tempo de contemplação, de percepção sutil das coisas. É preciso parar e respirar, deixar tudo de lado e se concentrar para mergulhar com ela em seu mundo. Um mundo interior em constante relação com os elementos naturais que vão surgindo em seus textos, o mar, as árvores, o sol, a lua, as estrelas, a chuva, seu manjericão na varanda, as frutas com que se delicia, a sombra das árvores de sua infância, a presença humana do amigo na varanda, a luz que entra pelas janelas, a areia da praia, a porta velha de madeira da casa, o mar e as areias.

Acompanhar sua poesia é entrar numa outra atmosfera perceptiva, um estado alerta, atento, o que faz parecer uma leitura espiritual de meditação, de percepção de todas as coisas ao redor e, ao mesmo tempo, a percepção da interioridade. (Quem sabe a interioridade das coisas seja a sua grande busca?) Mesmo nas coisas mais ínfimas do cotidiano. Tudo em constante comunicação entre o ser de dentro e o de fora.

Com uma habilidade misteriosa de despertar empatia, ler seus poemas, seus aforismos, é compartilhar desses sentimentos, suas alegrias, seus êxtases, suas saudades, suas raivas, seus desejos e paixões repentinas, sua descoberta do feminino, e a suavidade do seu amor, sim, o amor é o tema mais presente, um amor misterioso, cujo objeto ora é um humano, ora um pé de manjericão, ora o pai, mas o que predomina mesmo é o amor puro, o amor verbo sem objeto definido, e quando o objeto aparece, aparece mais ao final do poema, pois o tema é sempre ela mesma “Andarilha de si mesma”, em sua abertura amorosa pelo mundo, essa constante aventura de quem descobriu que “casa mesmo é dentro da gente”, seu amor é esse estado de alma: de gozo pelo mundo, que exige esse outro tempo, o tempo poético, o tempo do sentir...

É nesse outro tempo que Rita vive e elabora sua poesia. E, por vezes, se pergunta (e nos denuncia) sobre a vida corrida do mundo:

“Tem horas que me pergunto sobre a pressa. Vivemosandamoscomemosolhamoslemos na pressa instantânea das criaturas dos calçadões apinhados das grandes cidades, nem mesmo nos olhamos direito, ao outro então, mal sobra espaço. Moramos empilhados em apartamentos verticais  imensos e nem conhecemos nossos vizinhos de cimabaixoladofrente (...) Progressão em aritmética, somam-se, subtraem-se, mas não amam-se, não trocam, não destrocam, não permitem.”

O mesmo vazio de sensibilidade diante das coisas é o vazio de afeto e de encontro. Creio que Rita expressa a angústia humana da falta do amor num mundo de relações superficiais. Rita busca o amor.

“Se existe algo, este algo é passível de amor”

E como já sabe que o amor nasce de dentro... eis o seu caminho.Vive radicalmente uma busca de si mesma, que é uma busca pelo viver a partir de si mesma:  “Eu me recuso a não ser-me”

“Me perdoem, mas não posso ignorar a urgência de ser-me (...) não tenho mais para onde ir, a não ser para dentro.”

Palavra é barro, poesia é arquitetura: assim se faz a casa interior de Rita

“Se é nas saias da poesia que eu me escondo, é somente nela que eu consigo contar a verdade” diz ela no poema Toca.

E assim, recolhe-se e acolhe a propria solidão como algo bom.

“Tudo para mim tem um sentido íntimo que não precisa ser expresso, é uma paz minha, sentida e que transborda nas coisas que eu faço”

E aprende nesse mundo interior a lidar com tudo que lá existe incluindo o medo:

“O medo? Ele está lá sussurrando. Sempre esteve.”

 e a própria sombra:

“Abraço minha sombra, deixo que ela chore porque selvagem é o vento que assopra e anima o ser.”

Rita descobre através da poesia esse caminho da mestre de si mesma. O tema do medo já apareceu no poema “Gente” onde ela diz:

 “Não é possível lutar contra o medo, contra a escuridão, mas é possível amar e acender a luz: simples, difícil e corajoso.”

E em “Medo assumido” Rita faz sua poesia do cotidiano de um jeito bem humorado

“Quer saber? Se o Medo resolveu alugar uma água furtada no meu telhado e morar lá, que seja um inquilino muito bem vindo, pague as contas em dia e faça silêncio. Porque eu... estou morando no andar de baixo (...) o nome dele vem na conta de luz, vejo ele subir e descer as escadas do saguão quando vai tomar café da manhã. Tenho que viver ali, todos os dias com a rotina dele e com a minha.”

E completa:

“Nós dois nos ajustamos bem”.

E na solidão encontra uma relação íntima com o mundo natural, e a paisagem interior, a arquitetura interior, é repleta de elementos da natureza:

“Tem dias... em que se escorre... no estar só (...) chove e é de mim que as gotas se fazem a oceano livre, inundo o quarto com o meu ser... sou. E o mundo me é, piso nas poças pelas ruas de mim, aspiro essências de terra e ando descalça pelo vento.”

Poesia que acontece no corpo, na pele.

“Quero carne e não palavras, quero olhos e não visões, quero o suor real e não o perfume ilusório”

Dentro de si Rita descobre o prazer. E é o prazer, especialmente o prazer na pele, o que vai lhe reconectar ao mundo, ao Outro. E nesse caminho andam juntos o seu tempo poético, sua interioridade, o universo do sentimento, e um sentir que é próprio do corpo, que lhe conecta com os elementos da  natureza, e o desejo de um romance com um humano que esteja à altura de entrar nessa vinculação de profundidade, que é seu alimento.

 Entra em destaque na sua poética a pele.  Antiplatônica assumida, o amor em Rita acontece na pele, no sentir as coisas, e sentir com as mãos, com a boca, as coisas que “escorrem”, sorver os cheiros, muito mais do que com os olhos... Rita é carnal em sua poesia, ao mesmo tempo que misteriosamente suave e transcendente...  e a sua arte alquímica, seu laboratório, é a mistura sui generis da língua portuguesa com um conhecimento místico dos elementos da natureza. Com a língua ela produz inversões de sentido, paradoxos, absurdos, fantasias e neologismos que nos surpreendem e nos reconectam com seu modo próprio de ver o mundo natural, as coisas e suas cores... a Verdade se torna verde, a tristeza se torna passarinho e depois voa como querubim... conhecer os pés é adentrá-los na terra, a sinceridade é como os raios da noite que vêm com o sussurro da lua e, por vezes, Rita se perde no branco...  sua poesia é uma busca de comunhão com a natureza... sua meta talvez seja o silêncio, o absoluto, o simples, que é uma vida bem aventurada e sem palavras que a expresse...  Um mistério, sim.

“Minha poesia me traz para o corpo.” É assim como uma sensibilidade grande demais, quase insuportável, que encontra expressão em palavras e encarna na pele em levezas e sutilezas... e é exatamente através do corpo que ela entra em contato com o mundo, uma relação sensorial. Onde até mesmo acordar de manhã, passa pelos sentidos:

“frestas de luz filtradas na poeira do cobertor em suspensão. Cheiro de café acabado de fazer”. Assim começa uma manhã preguiçosa na cama. “Toco a realidade áspera da torrada com a ponta dos dedos e sinto o seu gosto.” Sensorialidade que a convence de que “É caso de viver.”

O que é o ser humano? Essa gente-poema “vê, come,cheira, saboreia, toca e no seu sexto sentido, o mais belo de todos, faz poemas.” E assim o ser humano sabe do mundo pelos sentidos:
“Vem em mim o estado próprio das coisas e dos seres de não serem. E tudo aquilo que antes eu conhecia, agora desconheço, e por assim ser: toco, sinto, cheiro e como. Saboreio em cada pedaço o prato inteiro.
- Me vê um cafezinho por favor?”

 “Gente-poema sabe sentir o mundo porque é mundo e isso é tudo e isso é só.” Ou seja, o conhecer é um processo que ocorre por simpatia, por comunhão, semelhante que percebe semelhante. Só posso conhecer o mundo por ser, eu mesmo, mundo, em outras palavras, corpo.

A própria angústia e o desejo de liberdade passa pela relação com o corpo:

Acordar “como se tivesse a roupa costurada no corpo, e tudo que quero é o lapso de a arrancar com costuras e botões e tudo... e me ver assim, honesta, nua – Desfeita.”

 O corpo é sobretudo a pele, que dá título ao livro, lugar de carícias, de carinho, lugar onde “escorre afeto sincero”, uma mulher que valoriza “os olhos que temos nas mãos”... Entretanto, por vezes o corpo é prisão, é a pele que sufoca, quando sente que precisa romper... “irromper pelo mundo, romper minha pele, rasgar num resgate íntimo a minha sensibilidade...”  E então o corpo se aprofunda e seu caminho é seguir as “veias solitárias e humanas”, aqui, corpo é já o pulsar das veias, são as tripas que se tornam coração, é o que lhe dá inteireza. E do corpo nasce também o “cordão angelical” de uma poesia que endelicadece a vida... uma espiritualidade que acontece a partir do sentir do corpo.

Notamos em seus textos um corpo inteiro, muito atento, perceptivo, meditativo. E foi o que me aconteceu à medida que ia lendo, ia inspirando em mim mesmo a percepção das coisas ao meu redor e me senti mais centrado, mais meditativo.

Ouvidos atentos, Rita define sua poética como diurna, do cotidiano, essa atenção desperta para os sons que se transformam em matéria prima para criar e sentir-se no mundo, viva, namorando as coisas, sentindo sua alma. Em muitos momentos Rita faz declarações de amor ao cotidiano: poesia é “ter os olhos de Ver o desconhecido no cotidiano.”

“Quero agora é que o dia brote das minhas mãos e que a noite venha mansa como tem de vir, que música nenhuma ouço, só o barulho da rua, do vento nos vidros e dos vizinhos a lavar a varanda. É de cotidiano que nasce minha arte, é de dia que engravido, pois arte mesmo é aquela que não tem hora nem lugar, não conhece tempo ou destempo ela vem e assim como o sol na manhã cinzenta traz alguma cor pro verde. É de verdar que minha arte respira: verde de folha nova, verdade que namora em baixo do pé de pitanga. É de pássaro desperto que vive minha alma.”

Do sensorial ao êxtase místico

“Que a oração seja verbo e encontre o ser no corpo”

No poema “pássaro-chuva” o leitor pode acompanhar o itinerário desse modo de ser poético de Rita... é algo que acontece de repente, quando a gente se deixa invadir pela dimensão poética à nossa volta. Gosto de pensar que foi assim com Rita nesse dia em que ela desce a rua para tomar banho de chuva e depois é presenteada pelo sol que se torna doce... a sutileza de Rita está na forma como se sentiu convidada a esse banho de chuva.

Primeiro o som da chuva que:  “tanto na minha cabeça que ouvir a chuva forte não foi um convite, foi um apelo.”

Depois o desenho das gotas de chuva numa descrição belíssima e econômica em palavras: “Olhar para a porta velha de madeira vendo as gotas desenharem os degraus, pulando, subindo e descendo. Caminhando, a água vai pela rua enladeirada, e eu desço junto.”

Creio que o mérito da Rita, assim como em todo o viver poético, está no olhar receptivo. É como uma virada de chave interna. Num momento, o mundo cotidiano, sem graça, monótono, superficial... um olhar prosaico. De repente, algo vira a chave... percepção poética. Nesse dia, parece que foi o som da chuva... fico imaginando... a pessoa em seus afazeres, de repente se dá esse tempo de ir ouvir a chuva, e dali a visão das gotinhas, e então a vontade de sair de casa e então a chuva lhe cai sobre o corpo:

“sinto as gotas de chuva lavarem meu suor, gosto de sal”
E então a relação vai ficando mais e mais dionisíaca, o prazer sensorial, a pele entre em cena, o corpo inteiro vai entrando nesse erotismo: “eu me perco, chupo ao lábios e sorvo cada gota...”

Então a surpresa com o fim da chuva, e a abertura de si para sentir o sol:  “a chuva para e o sol fica doce.”

Com a chuva, diz ela, “meu coração se aquietou e foi ninado pela sua música de milhares de gotas”

Uma experiência que, por fim, é uma mística da totalidade: “se sou uma gota só eu já não sei... naquele momento fui todas.”

Do som ao olhar, do olhar ao andar e sentir na pele, daí a entrega, o prazer, e o perder-se no todo... o arroubo místico, um arrebatamento, um êxtase de comunhão, de ser um com todos os pingos de chuva, um conhecer propriamente a chuva...

E ali está a sutileza de nossa poetiza: a chuva que ninou seu coração.

Voar por ter os pés na terra

“Eu sou pássaro-árvore, minhas raízes estão aqui
Na minha casa interior e minhas asas,
Abertas para o temporal do mundo.
Vou e fico, num mesmo segundo.

No poema que escolhemos para epígrafe desse texto, ela se define esse pássaro-árvore. Sua ligação com a terra, onde finca seus pés. Talvez seja todo esse terreno onde reencontra em si mesma seu pai, sua mãe, sua infância, suas saudades, seu cheiro de casa de avó e sombras de árvores velhas, sua interioridade silenciosa e atenta... de outra parte suas asas abertas para a aventura, suas ousadias, suas viagens, suas rupturas de pele, sua abertura para os riscos do amor, do gozo, sua quebra de paradigmas... e tudo isso, esse ir e esse ficar, ocorrem num mesmo segundo. Essa é a Rita inteira, asas ao céu e pés bem fincados na terra... o que lhe permite ir além dos próprios pássaros.

“Árvore com raiz, voa mais que pássaro com asa. Tem terra pra onde voltar e topo pra ver o primeiro sol tocar nas folhas.”

E assim sua sabedoria de vida:
“Compasso de caminhar com um pé no caminho e o outro no vento.”

A intensidade

“Eu sou isso. Essa não conciliação das possibilidades...”

E, alguns momentos seus poemas falam das sutilezas etéreas, em outros momentos há espaço para uma intensidade quente, um fogo interno, um permitir-se a loucura, que é o que a torna uma pessoa inteira. Guarda em si todos os elementos. Alguns trechos ilustram essa vertente intensa, na sua autodescoberta:

“Hei de beijar cavalos, apalpar flores e devorar as entranhas de um passarinho só pra ver o voo escorrer.”

“Selvagem em meu interior vou me desbravando. Mata brava, monto em meu cavalo branco e me resgato de qualquer ser artificial.”

“Fora de mim sou sombra de outras árvores, e dentro sol. Calor e fogo.”

“Minhas veias ardem por mar”

E essa intensidade aparece também em seu próprio fazer poético, seu jeito de escrever em guardanapos, notas fiscais...

“Eterna obra final
Te recuso pela imortal intensidade dos rascunhos”

O encontro amoroso

“Tem uma fenda aberta na minha mulher”

Encontrei na poesia de Rita um verdadeiro desejo pelo outro, pela presença do outro. E aqui, o ouro aparece numa radical alteridade, ou seja trata-se verdadeiramente de um outro, alguém que o eu não poderia criar, imaginariamente, fantasiar. Não é um personagem idealizado. Há aqui um autêntico desejo de encontro com alguém de carne e osso, que será sentido pela pele. Alguns versos ilustram isso:

“sou breve quando me toco
porque sou longa quando contigo
para que me percorras inteira”

“sentir o outro em mim”

“Sou uma mulher de muitas arestas, justamente porque creio no outro”

“o inteiro meu, já não sabe sem o inteiro teu”

 E o caminho do amor aparece como caminho de entrega intensa, sem reservas:

“Tenho a sorte de ser desavisada do perigo, porque me entrego sim, em totalmentes; meu coração é.”

Entrega que exige reciprocidade. Já que ela sente “a dor de não encontrar um emparelhamento, um outro ser que se dê em totalidades sem exigir.”

Tudo na poesia de Rita é um jogo entre a sutileza da carícia leve e a nervura do encontro real, carnal; uma mistura de verdade espiritual com o gozo do corpo... Rita vive intensamente esse encontro entre o espírito e a paixão do corpo; não é que ela oscile entre esses extremos, mas em sua profundidade de sentimento, ela, em corpo e poesia, ou melhor, habitando poeticamente o corpo, se alimenta desse encontro entre a verdade filosófica e o prazer sensual, despreza o puramente intelectual e não vê graça nos encontros superficiais, mas vive ali, exatamente ali, nesse encontro sutil entre espírito e carne, em estado de graça, no afago sutil, nas carícias em sua pele, num encontro feito de “tensões simples.”

“Pegar o éter tem qualquer coisa de apalpar, não de segurar”

A sutileza da carícia amorosa aparece representada pelo elemento éter.

“Nossos dedos se confundem (...) se banham as almas em prece de saliva...
É aí que a verdade goza.”

Uma filosofia do amor: o gozo da verdade! Ou seja, ao invés de habitar o reino intelectual, a verdade vem ao corpo, mas em seu desejo, há que se respeitar a sutileza etérica de sua pele, o que torna a carícia uma sensação transcendente... “Infinita é a sensação de carinho, causa em nós arrepios e lembranças sensoriais – de pele.” E creio mesmo que essa via amorosa para o transcendente encontra a mesma expressão no caminho de sua poesia, no rumo do mundo sem palavras, na expressão do silêncio. Vejamos isso.

Amor e silêncio: a literatura como caminho místico.

“Queria ler a noite toda, todos os livros que me chamam, as palavras todas escritas da humanidade até não restarem mais páginas, só folhas em branco. Só limpidez, pureza. Até não haver mais distância entre os seres.”

Nesse poema, “Ecos de domingo”, Rita também fala da lua cheia, do desejo de fugir com um cigano, e também fala de como lhe agrada a presença do manjericão em sua varanda, contrastando com o veneno da fumaça do cigarro...
Na ambivalência dos desejos: de um lado o desejo carnal de um amor casual com um cigano que fosse embora na manhã seguinte (inspiração de lua cheia, a lua dos amantes), de outro o amor companheiro e fiel do manjericão suave que lhe acarinha. Rita vive essa antinomia entre esses tipos de amor também na sua relação com a literatura... o desejo voraz de ler tudo que há, de possuir todas as palavras.... desejo que se esgota na limpidez e na pureza das páginas em branco, no silêncio... silêncio onde o encontro entre os seres se torna possível...  assim Rita escreve... para limpar a alma... e, só assim purificada... viver o encontro com o Outro... na linguagem silenciosa do encontro:

“Necessidade de língua para quê, quando em um se converte o discurso do olhar?”

“Eu me reconheço em preces de silêncio...”

“Não tenho mais palavras, e não é que não as encontre... É só que já não valem mais o esforço.”

Viver é sustentar a criatividade

Encerro esse artigo, e a leitura desse livro, com a sensação de ter encontrado uma escritora, uma pessoa, muito completa. Nela se harmonizam terra, ar, fogo, água e éter; sombras e luzes; cotidiano e êxtase; espírito e corpo; e, de tudo, fica a impressão de se tratar de um ser humano que aprendeu a aprender com a vida...

Um jeito de encarar a vida sem ter medo do medo (“portas são passagens, porque as tornar em obstáculos?”) e cultivando a paz e se dando o direito de desfrutá-la (poema “Na minha terra” transcrito logo abaixo). E... quando nem a escrita dá conta do tamanho de todo o sentimento, é o corpo que a salva, em movimento, e Rita se convida a dançar. Espero que continue dançando tanta vida por aí afora...

Na minha terra
“Jamais podemos presumir que uma vez alcançada a paz ela se sustentará por si mesma. Não se trata apenas de conquistar uma intensidade, de suspirar em flores, e sim de aprender com a vida a sustentar a criatividade que lhe é inerente. No caminho para me fazer brotar eu aprendi a cultivar a paz. Quando eu alcanço, toco e saboreio o seu fruto, eu sei que é só para não esquecer de que a cada dia que ela me pertence, eu pertenço mais ainda a ela: com gosto e sumo a escorrer pelos cantos da boca, em me entrego e durmo suspensa em seus galhos.”


sexta-feira, 1 de julho de 2016

Notícia poeticamente verdadeira

Policial prende secretario de governo do Rio.
A prisão ocorreu na manhã desta quinta feira, debaixo do viaduto das Laranjeiras. O secretario ordenou que os policiais recolhessem os pertences de um mendigo que vivia no local, incluindo um cobertor e um casaco. Um dos policiais algemou na hora o secretario. O caso vai para o juri, já que o secretario resolveu processar o policial que alegará insanidade mental: na hora, diz ele, eu enlouqueci, tive uma alucinação... vi Jesus e ouvi sua voz dizendo-me: tive frio e me agasalhaste.
O caso já é o terceiro do ano em que os governos resolveram fechar hoteis e restaurantes populares.

Eckhart Tolle: a presença e os relacionamentos

A menos que você acesse a freqüência consciente da presença, todos os seus relacionamentos, principalmente os mais íntimos, vão apresentar defeitos profundos. Durante um tempo, eles podem dar a impressão de serem perfeitos, como quando estamos apaixonados, mas, invariavelmente, essa perfeição aparente acaba destruída por discussões, conflitos, insatisfações e até mesmo por violência física e emocional, que passa a acontecer com uma freqüência cada vez maior. Parece que a maioria dos “relacionamentos amorosos” não leva muito tempo para se tornar uma relação de amor e ódio.

O amor pode se transformar em agressões furiosas, em sentimentos de hostilidade ou, num piscar de olhos, em um completo recuo da afeição. Isso é visto como normal. Os relacionamentos, então, oscilam por um tempo, por alguns meses ou anos, entre as polaridades de “amor” e ódio, e nos trazem muito prazer e muita dor. Não é pouco comum que os casais se tornem viciados nesses ciclos. Esse tipo de drama nos faz sentir vivos. Quando o equilíbrio entre as polaridades negativa e positiva é desfeito e os ciclos negativos e destrutivos acontecem com freqüência e intensidade crescentes, não demora muito para o relacionamento acabar.

Pode parecer que tudo se resolveria se conseguíssemos eliminar os ciclos negativos e destrutivos, permitindo que o relacionamento florescesse sem problemas, mas isso não é possível. As polaridades são mutuamente interdependentes. Não podemos ter uma sem a outra. A positiva já contém dentro de si a negativa, ainda não manifestada. Ambas são, na verdade, aspectos diferentes de um mesmo sistema defeituoso. Estou tratando aqui dos chamados relacionamentos românticos, não do verdadeiro amor, que não possui opositores porque nasce além da mente. O amor como um estado permanente ainda é raro de encontrar, tão raro quanto a consciência nos seres humanos. Entretanto, é possível haver lampejos breves de amor, sempre que existir um espaço no fluxo da mente.

O lado negativo de um relacionamento é mais facilmente reconhecido como um defeito ou anormalidade do que o positivo. E é muito mais fácil reconhecer a fonte da negatividade no parceiro do que vê-la em nós mesmos. Ela pode se manifestar de várias formas, tais como possessividade, ciúme, controle, ressentimento, insensibilidade e egocentrismo, cobranças emocionais e manipulação, raiva e violência física, necessidade de ter sempre razão, de discutir, criticar, julgar, culpar, agredir, irritar, ou se vingar, inconscientemente, de um sofrimento do passado imposto por um dos pais.

Pelo lado positivo, há uma “paixão” pela outra pessoa. No primeiro momento, esse é um estado altamente gratificante. Sentimos que estamos intensamente vivos. Nossa existência passa a ter um significado porque, de repente, alguém precisa de nós, nos deseja, e nos faz sentir especial. Além disso, provocamos as mesmas sensações no outro, o que faz com que os dois se sintam completos. O sentimento pode se tornar tão intenso que o resto do mundo perde o significado.

Você deve ter percebido que existe uma certa dependência nessa intensidade. Ficamos viciados na outra pessoa, que age sobre nós como uma droga. Quando a droga está disponível, nos sentimos muito bem. Mas a possibilidade, ainda que remota, de que ela não esteja mais ali, disponível para nós, pode levar ao ciúme, à possessividade, a tentativas de manipulação através de chantagem emocional, culpa ou acusações – o que, no fundo, é o medo da perda. Se a outra pessoa nos abandonar mesmo, pode fazer nascer a mais intensa hostilidade, ou um profundo desespero. Em segundos, a ternura amorosa pode dar lugar à agressão selvagem ou a um desgosto terrível. Onde é que está o amor agora? Será que o amor pode se transformar no seu oposto em segundos? Será que era amor de verdade ou um vício, uma dependência?

terça-feira, 31 de maio de 2016

A não-ação como ação política. O que é?



"O sábio age sem nada fazer e ensina sem nada dizer."

Essa palavras paradoxais do Tao Te Ching intrigaram muita gente ao longo dos séculos.

É a sabedora da ação pela não-ação.

Aparentemente sugere o abandono do mundo, deixar as coisas como estão; evoca o silêncio e seu poder de ensinar as inutilidades da agitação humana em sua eterna luta contra as mudanças da vida.

Tudo muda.Tudo tem um fluxo natural. O mundo é a eterna dinâmica entre as forças Yin e Yang... sofrem aqueles que tentam controlar seu movimento. Sábio é aquele que não interfere. Que adere ao fluxo.

Daí já se pode perceber o sentido oculto do pensamento chinês.

Uma ação sintonizada com o movimento natural do mundo, uma ação que acontece na conexão com o Tao.

Penso no surfista que desce a onda... há nele um movimento que é todo em sintonia com o movimento da onda. Ele precisa perceber, sentir, aprender mesmo o movimento do mar e ter a sabedoria de acompanhar esse movimento, incluir a força do mar no cálculo do seu movimento... e assim, sentindo o mar, ele flui... e quanto mais sabe da onda, mais livre são seus movimentos... quem vê de fora percebe a harmonia entre o surfista e o mar... seu movimento parece sem esforço... mas todo seu esforço e concentração estão em manter seu equilíbrio em harmonia com o movimento da onda. Assim os pássaros planam, as brancas nuvens percorrem o céu e o bambu dança com o vento, as marés acompanham a lua, o rio segue seu curso montanha abaixo, as folhas caem das árvores, a vida brota do solo, os bebês choram com fome, as crianças brincam com suas imaginações... assim, diz-se na linguagem do livro chinês, o homem sábio conduz sua vida.

Não é uma completa inação. Mas uma ação sábia.

A sabedoria repousa na profunda percepção do sentido da vida, na conexão com seu fluxo.

Quando o homem não escuta esse sentido, ele se atropela. E assim o faz quando segue seu desejo de poder e riqueza, ou quando é movido pelo medo.

A crise da civilização que vemos hoje vem da desconexão com o sentido natural da vida. Ela é marcada pelos excessos.As consequencias colhemos em nossos dramas sociais, em nossos desafios ecológicos e no mal-estar emocional.

Por isso, podemos dizer que o verdadeiro sentido da ação no mundo precisa nascer da interioridade. O movimento revolucionário, capaz de mover-nos para uma revolução civilizatória, começa com a escuta silenciosa de si mesmo e da reconexão com o sentido natural da vida.

A não-ação é a ação não egóica. Profundamente amorosa, a ação que não tem nenhum vestígio de interesse pessoal:

"Parir e nutrir,
ter sem possuir,
agir sem expectativas,
conduzir e não tentar controlar:
Essa é a suprema virtude."

Despojado do desejo de ter e poder, o homem pode ser o que é. Retomar sua naturalidade.
Assim, sem desejar ser líder, ele se torna exemplo. E o mundo começa a seguir seu curso.

Olhando para nosso mundo hoje, vemos os desequilíbrios expressos nas desigualdades econômicas, na destruição da vida, na violência contra os mais fracos, no ódio da intolerância... o caos sempre tem origem na pretensão de saber mais, ter mais, ser mais que o outro.

Todos acabam se tornando vítimas de um sistema desequilibrado onde dificilmente a pessoa consegue encontrar um trabalho em sintonia com seu propósito de vida. E o mundo vai mal quando as pessoas não realizam aquilo para o qual vieram realizar. Isso se torna um ciclo vicioso, uma catástrofe. Temos menos artistas do que deveríamos e temos mais burocratas do que precisamos. Paga-se pouco ou quase nada para trabalhos essenciais, como um lixeiro ou professor de música, e paga-se muito por trabalhos inúteis como o especulador do mercado de dinheiro, ou de terra.

Mas percebe-se também uma guinada para um outro mundo possível. Ela é quase imperceptível. Ela é silenciosa, não se anuncia nas grandes redes de comunicação. Está nas atitudes e escolhas de pessoas que estão se tornando mestres de si mesmas. Uma atitude de estranhamento diante do sistema e de sua propaganda oficial. Uma silenciosa mudança de consciência que se expressa em atitudes cujo centro é a nova civilização que virá. Uma outra civilização... sugere o sonho humano... com centralidade no coração, na escuta da vida, harmonia com a natureza... despojada das ambições do ego, centrada no amor, na reverência a tudo que é vivo.

Já tem muita gente ensaiando esse novo tempo. É como um curso invisível. O mundo segue para frente, mas há um deslocamento para outra direção... e a consciência humana está se deslocando, se descolando do sentido visível do velho mundo. Para onde vamos? É difícil descrever como será o mundo quando cada um se tornar mestre de si mesmo, autêntica e verdadeiramente livres.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Amor e Utopia


Desgastada nos meios sociais a palavra utopia, assim como a palavra revolução, precisa voltar ao vocabulário comum nesses tempos de descontentamento generalizado com a política e as estruturas de poder hegemônico.

Há uma falência moral do sistema político-econômico que se acumula há mais de um século.

O socialismo, que nasceu da utopia comunista, foi a tentativa de construção de um modelo alternativo. Mas ninguém tem dúvidas de que ele se perverteu na mesma competição industrialista, na destruição da natureza e na corrupção das elites tanto quanto seu rival capitalista.

Mas as pessoas continuam sonhando com um mundo melhor.
E esse sonho é legítimo porque nasce de uma experiência.

A utopia nasce da experiência de amor.

O amor se acende na pessoa e se derrama.
Um amor pela vida, uma sensação de plenitude de sentido de viver, uma alegria interior, uma sensação incrível de bem estar, de felicidade.
Então, a pessoa olha para o mundo, as pessoas tristes, as relações humanas que eram para ser amorosas estão deterioradas, cinzas, dominadas pela desconfiança, pelo medo, pela dor... a pessoa que viveu o amor, olha para esse mundo e diz: precisa mudar!

A utopia nasce da felicidade. Porém uma felicidade provisória, que é abafada pelas estruturas do mundo, assim como a poesia é abafada pela rotina. O poeta, porém, vive em outro mundo... o mundo da poesia, do encantamento, vendo beleza, onde o cotidiano vê coisas sem vida. É uma vida solitária. O poeta sofre a cegueira de seus vizinhos. A incompreensão. E alguns poetas sonham em transformar o mundo, num mundo de poesia. Assim é o revolucionário. A revolução nasce da poesia assim como a utopia nasce do amor.

Olhando nosso mundo hoje sinto que há dois movimentos que são necessários.
O primeiro é o cultivo desse mundo novo que virá, a possibilidade de vivê-lo como antecipação. Apesar da dureza do cotidiano, viver poeticamente. Hoje, ele é feito nas micro-relações, nas redes de amigos, uma nova mentalidade centrada no autoconhecimento, na não violência, na ecologia profunda. Há muitas pessoas vivendo isso. Posso dizer que é uma experiência de conexão com o todo, que valoriza a sincronicidade, a conexão com o coração, com o sentimento de amor universal, respeito a si e ao próximo, transparência nas relações, tolerância e valorização das diferenças, o aprendizado do diálogo com escuta atenta, etc.

Isso é real. É concreto. Mas não é para todos. Sinto que há ainda entre nós o grande apartheid social, a cidade partida, e creio que um belo passo seja quebrar esse muro com ações e encontros humanos mais inclusivos. Assim, as pequenas redes que experimentam essa nova filosofia de vida, por não ousar fazer as mudanças estruturais se vê pressionada o tempo todo por uma estrutura de poder calcada em valores muito ultrapassados.

Há uma ideia defendida por esse novo paradigma de que, quando houver uma grande quantidade de pessoas vivendo-o em si mesmos, o sistema hegemônico terá de ceder e as pessoas que hoje vivem a ilusão do sistema serão levadas por contágio a vivenciar a nova era. Será um salto quântico societal. Portanto, há aqui esperanças...

Ao lado desse movimento, há o segundo, que é quando o poeta, além de ver a beleza, faz poesia crítica, poesia denúncia, poesia de protesto. É o movimento profético, que denuncia as estruturas injustas e busca, estrategicamente quebrar o sistema, minar suas forças. Eis que surge a militância política, as pessoas nas instituições que vão fazendo alterações legais e concretas segundo às exigência dos novos valores emergentes. O combate a corrupção bem que pode ser um movimento desses. Os boicotes a certas empresas é outro. As mudanças nos ambientes institucionais... são pequenas batalhas que vai se ganhando no dia a dia.

E assim vai se preparando o dia da grande virada. Quero crer que temos aprendizado suficiente para fazermos essa transformação sem derramamento de sangue. Pelas vias da não-violência, pelo contágio do amor. Essa é a grande poesia da revolução que esperamos... Pois a economia do amor, não pode ser imposta às custas de ódio. Creio que não estamos distantes. Em enquanto isso, façamos a nossa poética diária, e sejamos felizes aqui e agora, ao lado das pessoas com que tomamos café da manhã...  (mas claro, se puder, convide para o café alguém que não pode pagar em retribuição, como ensinou um revolucionário utópico do passado...)

sábado, 28 de maio de 2016

Revolução e Amor



Creio na revolução do amor. Um mundo de amor em substituição ao mundo do ódio e ao mundo da indiferença.
Penso que uma revolução política, hoje, seja filha do sentimento de amor ao humano.
Lendo sobre ética em Emmanuel Lévinas, percebo o sentido de responsabilidade diante de todas as misérias e sofrimentos existentes no mundo.
Surge a exigência de Justiça. Justiça como filha do amor, da preocupação pelo não padecimento do outro.
Daí surge o dilema ético entre a violência revolucionária e a violência da omissão ante a injustiça diária de um sistema que é brutalmente genocida.

Lembro que um pastor protestante, Dietrich Bonhoeffer, participou da resistência alemã anti-nazista e da trama que planejava matar Hitler. A justificativa era que numa carroça desgovernada, galopando para o abismo, alguém tem que ter a coragem de atirar no cavalo. Uma de suas frases era: é melhor fazer um mal do que ser mal.

A violência revolucionária integra o caos necessário entre uma ordem antiga e uma nova ordem.

Diante da evolução das mentalidades, surgem novas exigências, novos patamares éticos mínimos. As novas gerações já não aceitam mais a estrutura opressora que herdaram das antigas gerações. A nova geração começa a viver uma nova ordem em suas relações cotidianas. É uma ordem paralela. Independente dos centros de poder e do sistema hegemônico. Essa é a fase de preparação, é o cultivo do que será quando a ordem hegemônica ruir. Na medida em que essa ordem paralela começa a se expandir e começa a sofrer com a opressão do sistema hegemônico, surgem os questionamentos, aumenta a consciência das contradições do sistema vigente, seu descompasso com a realidade... e então surge a rebelião que faz desmoronar todo o sistema vigente.

A história mostra esses saltos evolutivos de uma estrutura política para outra. Carlos Marx mostrou que na base das revoluções burguesas (como a francesa, por exemplo) estava o interesse econômico dessa classe social emergente não contemplada no sistema feudal. E daí nasceu o capitalismo. Marx também profetizou o fim do capitalismo a partir de uma tomada de consciência dos oprimidos que buscariam a libertação para implantar uma economia sem patrões, onde cada um se desenvolveria plenamente em suas capacidades e talentos, com direito a tempo livre (o ócio criativo). Uma economia da abundância, da emancipação, da potência humana. Na "Ideologia alemã" ele descreve essa sociedade que denominou comunismo.

Inspirados nessa leitura, os movimentos socialistas fizeram história. O mundo ficou dividido entre os dois grandes sistemas durante o século XX. Apesar da inspiração ética vimos que o movimento se perverteu e os estados socialistas não trouxeram a sonhada emancipação humana, mas uma corrida competitiva nas mesmas bases industrialistas do capitalismo, com a mesma ferocidade da produção de armas, e com o mesmo descaso com a natureza. "Em nome da revolução"... foi uma bela desculpa para a nova exploração das massas.

O fim da União Soviética trouxe a expansão do capitalismo ao que se chama economia global, com o poder centrado nas grandes corporações globais, no mercado financeiro internacional, que mantém a exclusão social a nível local, e sustenta as elites locais como aquelas que se alinham à cartilha do poder central, o pensamento único.

Então podemos dizer que hoje o sistema dominante tem matriz global com sedes de controle espalhadas por todas as localidades. Poderes locais que funcionam às custas do dinheiro global, ou seja, um sistema pervertido em sua essência, uma corrupção sistêmica, onde o cinismo e o egoísmo são a moeda política corrente. Democracia é só o disfarce ideológico da verdadeira aristocracia do dinheiro.

Todavia, a contra-corrente, a contra-cultura, não morreu (nunca morreria porque é do humano a poesia, a bondade, o sonho, a inocência). Filha do amor, a contra-cultura clama por justiça e cria, nos espaços, uma rede de relações cuja centralidade se opõe ao sistema perverso. São as redes de solidariedade, as criativas formas de convívio e cultivo da amizade, da cultura, da saúde, da espiritualidade... que preconizam o amor como resistência do humano enquanto humano, se confrontando a perversidade do sistema.

Nos séculos XVIII e XIX, as revoluções burguesas derrubaram o feudalismo.
No século XX foram as revoluções socialistas que fizeram frente ao capitalismo.
No século XXI... há uma revolução espiritual em curso. São valores espirituais básicos que deixam o humano mais humano. Mais amoroso, tolerante, paciente, compassivo, alegre... são bens infinitos da vida, a eterna busca por liberdade, que independem em absoluto do sistema político vigente. Nesse paradigma espiritual, mesmo na prisão posso ser livre, pois a verdadeira prisão é a da mente. Ou seja, uma revolução espiritual que está despertando o potencial humano para a sua inteireza e, assim, para a amorização das relações.

O confronto com o sistema dominante pode ser adiado, mas será inevitável.

Quem acende a luz do amor dentro de si não pode se deixar guiar por um sistema tão sombrio e tão pouco compassivo diante da dor do ser humano. O sistema centrado no lucro não tem medidas quando, por exemplo, faz testes químicos em pessoas pobres. Isso vai se tornando inaceitável para as novas gerações. Os braços de poder da economia global, os governos corruptos das localidades, e a mídia local, começarão a ser derrubados pelas novas gerações que vão aprendendo a importância de ser intolerante com o que é intolerável.

A nova sociedade, a nova ordem, já vem sendo ensaiada nos contextos locais. O paradigma da inclusão, do convívio com as diferenças, vai sendo gestado em periferias, ecovilas, escolas... há um aprendizado do viver que vai expandindo a consciência humana e dando clareza do cinzento sistema global... um sistema velho e feio ante a beleza do colorido da existência humana, da vontade de amar.

Pessoalmente me dá gosto quando os movimentos de protesto são ensaios do que virá, movimentos pacíficos, alegres, criativos... pois acho que depois de Gandhi já se provou a força da não violência e depois dos hippies já se pode conciliar protestos com prazer... afinal, os meios levam aos fins...

O momento revolucionário, seja quando for, trará o caos, mas a ordem que se implantará depois, será essa que se ensaia... tenho motivos para ser otimista. Não será uma vida fácil. No novo paradigma, a interioridade é a terra principal de cultivo da nova riqueza. E depois de removidas tantas sombras cá fora, novas sombras de dentro ainda hão de ser enfrentadas. Será o fim do capitalismo, mas não o fim da aventura humana, que criará novas estruturas e surgirão certamente novos desafios aos nossos filhos. Mas algo misterioso e místico me sopra aos ouvidos que valerá a pena enfrentar esse desconhecido.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Conhecimento da linguagem da criação



Quando orava no fundo do meu coração, tudo que me cercava surgia sob seu aspecto mais encantador: as árvores, a grama, os pássaros, a terra, o ar, a luz, todos pareciam dizer que existiam para o homem, que davam testemunho do amor de Deus pelo homem; tudo orava, tudo cantava glória a Deus! Compreendi assim, o que a filocalia chama de "conhecimento da linguagem da criação" e percebi como é possível conversar com as criaturas de Deus.
Trecho do livro Relatos de um peregrino russo. Anônimo do século XIX.

domingo, 22 de maio de 2016

ESPIRITISMO E POLÍTICA


Minha vivência de política e espiritualidade

Desde criança aprendi a gostar de política. Acompanhar as eleições, partidos, discursos, programas eleitorais... o corpo a corpo na rua, convencer as pessoas a votar na esquerda já era uma prática que eu fazia feliz aos 10 anos de idade. Uma inspiração dos meus pais professores, sempre indignados com as desigualdades sociais e o desgoverno dos governos. Então, sempre fui de oposição à estrutura política que herdamos historicamente no Brasil. Colonização, escravidão, elitismo, coronelismo, ditadura, censura, perseguições políticas, mídia, faziam parte do meu vocabulário desde criança.

Cresci com o sonho de mudar o mundo. Olhava a vida social ao meu redor e não me conformava com tanta desigualdade de oportunidade. O filho da empregada e eu... por que tanta diferença? E os meninos de famílias ricas? Achava tudo muito errado... e o pior era perceber o baixo grau de consciência política das pessoas. Aceitavam a realidade sem vontade de mudar... deixavam-se enganar pela mídia e deixavam-se dominar pela ideologia do opressor. Acho que desde cedo fui marcado por Paulo Freire e tentava alfabetizar as empregadas lá de casa. E eu não conseguia entender como uma pessoa pobre chamava um desempregado de vagabundo... outra coisa que me era muito estranha: para mim o discurso do Lula e do Brizola faziam tanto sentido que me arrepiavam, me faziam sonhar com as mudanças... se todos ouvissem esses discursos o mundo ia ser melhor, eu pensava... mas aí, lembro de uma empregada lá de casa me dizer: “não vou votar no Brizola não, eu entendo tudo que ele fala”. É a velha lógica do doutor, doutor é quem fala difícil, e quem fala difícil é competente. Quem fala igual ao povo é igual a mim e eu não sou ninguém. Uma autodesqualificação completa. Então uma das questões da pouca consciência política tem a ver com a falta de autoestima do povo. Num país colonizado, bom é o que vem de fora.

Eu lá com meus delírios infantis sonhava em ser presidente da república, ou um senador, deputado... as pessoas diziam que eu ia acabar fazendo direito... Sempre achei que a igualdade era algo muito natural, todos somos iguais, não deveria haver tanta desigualdade socioeconômica. E achava que meus amigos que defendiam a desigualdade por mérito eram grandes hipócritas que defendiam seus lugares privilegiados na sociedade. Isso era uma coisa óbvia para mim, e se tinha uma missão na vida reservada para mim era ajudar a fazer a revolução que implantasse a justiça social, tirando o poder das elites, tal como fizeram os revolucionários que derrubaram as aristocracias feudais. A queda da Bastilha... quantos filmes sobre a revolução francesa eu alugava na locadora! Outro tema que me fascinava era a tragédia do holocausto... a injustiça absurda e o sofrimento silencioso dos judeus nas filas geladas rumo aos campos de concentração. Assisti muitos filmes e séries sobre isso. Nós gravávamos e eu assistia várias vezes. O sofrimento do povo me tocava profundamente, a maldade e as conspirações políticas dos líderes, da propaganda nazista, e também os personagens da resistência, humanos, que tentavam salvar vidas... tudo isso me emocionava e uma das coisas que mais me tocava era: são tantos judeus diante de alguns poucos nazistas armados... por que eles não se revoltam? por que andam calados nessa fila que vai levá-los à morte? se se unissem... que política é essa que tanto os enfraqueceu e lhes tirou a capacidade de lutar? além disso, me perguntava: por que tanto ódio? Comecei a entender também que o Terror se alimenta de homens fracos, que se orgulham do pouco poder que se lhes dá. Comecei a olhar a minha volta e entender que muitos dos meus amigos e sua personalidade elitista, que toda essa mentalidade conservadora que me cerca, que me fazia parecer o único diferente, o único que pensa em direitos iguais, que todo esse povo-massa de manobra é um prato cheio para um regime nazista... e dava graças a Deus pelo Brasil ser um país onde as coisas eram mais brandas (pelo menos aos meus olhos infantis).

Um dia eu soube que o meu avô por parte de pai havia sido um fazendeiro que explorava os funcionários da fazenda através da vendinha que ele mantinha dentro da propriedade. O camponês comprava ali produtos mais caros que na cidade, anotava no caderninho e fazia dívida. Quando queria ir embora tinha muita dívida e tinha que trabalhar mais. Uma opressão esperta e malvada semelhante ao poder feudal, praticada em larga escala, coisa que descobri através das novelas do Benedito Ruy Barbosa.

Depois soube que meu avô foi à falência e então não tive muita raiva dele, mas saber disso foi duro para mim. Mas ao mesmo tempo reforçou minha vontade de transformar essa história. Eu não queria fazer o mesmo que ele. Pelo contrário, me admiravam as histórias de socialistas, pessoas generosas, cooperativistas... era esse pensamento de esquerda que eu me afinava.

Na adolescência fui muito marcado por meus primos que estudavam economia e eu queria entender melhor o que eles estavam falando... porque a conversa deles era sempre muito politizada. E aí o câmbio e os juros, o PIB, tudo aquilo tinha muito a ver com desemprego, desigualdade, crescimento, geopolítica e o cenário de dominação internacional que parecia explicar grande parte de nossa história econômica de colônia de exploração. Então ao invés de fazer história ou ciências sociais fui fazer economia, já que eu também gostava de matemática. Chegando lá encontrei colegas que pensavam parecido e tinham uma pergunta em comum: se há tanta riqueza no mundo, porque tanta pobreza? Como dividir melhor a riqueza? Minha turma foi muito boa. Acho que ainda hoje tem gente espalhada por aí que continua com a mesma vontade de mudar as coisas. Que continua se indignando com a desigualdade e a loucura do sistema que se retroalimenta da exploração dos mais fracos.

Foi no final da faculdade e no início do mestrado em Ciência Política que a espiritualidade começou a despertar em mim. Algumas pessoas defendem a tese de que quando a gente descrê da política, do mundo dos homens, começa a se interessar por religião, pelo mundo dos espíritos... pode ser, mas como não sou meu psicólogo, o que posso dizer é que o meu despertar espiritual foi uma grande descoberta, foi como achar um baú de tesouro, uma experiência muito abundante de prazer, de êxtase e de certeza na presença desse algo mais que me visitava durante as orações. E foi através do espiritismo que isso despertou e por ali eu caminhei estudando e vivenciando as emoções da fé.

Comecei a admirar Jesus, conhecer suas histórias, suas mensagens... no movimento espírita valoriza-se muito a figura de pessoas cujas histórias também me tocavam tais como Francisco de Assis, Madre Teresa e Gandhi. Então foi uma grande junção entre a minha sensibilidade humana com a questão da igualdade e todo esse movimento espiritual que também se volta para os excluídos... Jesus foi crucificado não à toa... sua mensagem abalava de tal maneira as estruturas de poder da época que não suportaram que ele continuasse vivo. O mesmo que aconteceu com Sócrates na Grécia. Suas histórias, sábios rejeitados pelo povo, parece que se repetem a cada século... e o poder continua crucificando inocentes em suas guerras e em seu genocídio silencioso que é a produção sistemática da miséria. E o povo-massa parece sempre apoiar o poder e rejeitar os sábios.

Alguns grupos espiritualistas acreditam mesmo que espiritualidade é para uma elite, que o povo vai continuar como manada,vivendo na ilusão para sempre. O Gurdjeff era um sujeito que defendia isso. Pode ser. Mas o que me encantou com Kardec foi a sua chama democrática. Abrir os segredos da espiritualidade a todas as pessoas. A mediunidade explicada, o acesso ao sagrado é igual para todos. O espiritismo é um movimento anti-institucional por natureza. Não tem sacerdotes religiosos, não tem exploração financeira, não tem dogmas... tem a pesquisa do mundo espiritual feita livremente, com inteligência. Fiquei encantado com Kardec. E quando você lê o Livro dos Espíritos encontra uma série de discussões políticas em que a visão espiritual se alinha ao uma concepção progressista: a igualdade de gênero, a igualdade social, a igualdade racial, a visão de que o homem é um ser social e é responsável pelo destino coletivo... tudo me levou a perceber que se tratava de uma espécie de socialismo espiritualista. Fiquei maravilhado em ver essa leitura em livros do professor Herculano Pires (O Reino, por exemplo), e da Cleusa Colombo, chamado Ideias Sociais Espíritas, e depois tive contato com os congressos de Peadagogia Espírita e os livros da editora Comenius e todo o movimento que a Dora Incontri faz. Então comecei a sonhar com a transformação social novamente, através dos óculos espíritas. Ou seja, a espiritualidade, longe de me afastar da política me levava de novo a ela. É dever do espírita defender o mais fraco na sociedade, mudar as instituições que fomentam a divisão, ou seja, construir uma nova institucionalidade social, não mais regidas pelo egoísmo e pela competição, não mais essa que transforma homens e natureza em mercadorias, mas uma economia centrada no amor, no trabalho recompensado por fazer sentido existencial e coletivo e na gratuidade, o que tem tudo a ver com o sonho comunista que por sua vez se inspirou lá na comunidade dos primeiros seguidores de Jesus.

Então eu continuei de esquerda, ou seja, sonhando em mudar o mundo, dividir a riqueza, ver a justiça correr como um rio caudaloso (como sonhava Luther King), mas é claro que não podia concordar com meus amigos que defendiam uma luta armada. Pois aprendi com o movimento da não-violência (Tolstoi, Gandhi, Luther King, Dom Hélder Câmara, Chico Mendes, e relativamente também o Nelson Mandela) que os meios são o princípio do fim. Ou seja, há que se ter uma coerência em todo o caminho. Se quero o mundo de amor, preciso que a mudança venha do amor. Sem violência, ainda que com resistência ativa, criativa, poética... sonhei com a revolução dos cravos em Portugal, lembrei das flores que vencem canhões na música do Geraldo Vandré que se tornou símbolo na luta contra a ditadura no Brasil... são as formas de luta que sintonizam com o cultivo do amor e da paz interior, da criação de relações amorosas. Uma radicalidade ética... longe das incoerências de tantos companheiros mesmo da esquerda que muitas vezes têm práticas que atropelam aquele que pensa diferente, em nome do poder. A intenção pode até ser boa, mas o que a espiritualidade me ensinou é que a gente sempre colhe os frutos do que planta.  Então tem que ter essa coerência.

É claro que se você lê o que eu acabei de falar sobre Kardec e vai olhar o que se fala nos centros espíritas, vai ver que tem uma grande diferença. Assim como Jesus não criou o Cristianismo e seus templos de pedra (Jesus ensinou na praia, no barco, no monte, sob as árvores e na casa das pessoas), Kardec não imaginava o que iam fazer de suas pesquisas... tanta institucionalidade, uma religião criada para defender o seu discurso interno, mais uma conversão de uma religião institucional para outra religião institucional... o espírito aberto e grandioso de Kardec não tinha nada a ver com isso... ele pesquisava o fenômeno espiritual junto com pessoas de diferentes religiões e não achava que as pessoas deveriam se converter a uma outra religião. O espiritismo bem compreendido seria fonte de transformação das pessoas pois, olhando a vida sob a perspectiva de muitas reencarnações, a tendência é ter mais desapego, menos guerra pela matéria tão transitória. Sob a ótica da reencarnação, trazemos padrões muito antigos que nos trazem a um ciclo de sofrimento e dor... e é preciso sair desse padrão antigo e começar algo novo, a caridade... que é pura doação e fruição de um amor que se interessa em fazer o outro desenvolver o seu pleno potencial humano. Mas isso tudo não significava fundar uma religião, bastava um grupo de estudos.

Mas os centros espíritas estão aí, assim como as outras religiões, divulgando seu paradigma. E foi  graças a esse trabalho, que também tem seu lugar, que fui beneficiado e sou muito grato por poder abrir comportas tão amplas do meu mundo interior e começar a aprender a me conectar com a fonte da vida. E eu me considero agraciado por ter encontrado um centro espírita pequeno e acolhedor, com relações de cuidado, de carinho, que acho que tem a ver com a forma como as almas superiores se cuidam, e que me apoiou em todos os meus movimentos inclusive quando fui estudar sobre o próprio espiritismo através de uma universidade pública no meu doutorado.

No entanto, os centros espíritas, em geral, enquanto pregam e estudam seu paradigma acabam, assim como todas as instituições, se esquecendo da sua relação com o mundo lá fora. Então nós vivemos, no ocidente, num sistema que é um verdadeiro genocídio silencioso e isso não é tema de pesquisa e de trabalho nos centros espíritas. É óbvio, pelo menos para mim, que quando você lê os livros de Kardec, que fala da evolução das sociedades, que fala que os homens precisam se livrar dos apegos, que condena a exploração dos outros seres humanos, que defende a igualdade social como lei divina que precisa ser reestabelecida pelos homens em sua evolução, é óbvio que o espiritismo defende uma sociedade que é incompatível com a sociedade capitalista. Mas as pessoas vão ao centro, fazem e recebem o serviço religioso e continuam passivamente em suas vidas, escravizadas pelo sistema sem perspectiva de mudança. Aí me parece que há um silenciamento covarde. Assim como o padre na cidade do interior abençoando o prefeito que é dono da grande fazenda que explora todo mundo. Mas Jesus foi expulso do templo, desagradou os poderosos... que espécie de revivescência do evangelho é essa?!
“Não, mas a gente não fala de política”. Como não?

Não acho que seja coerente com Kardec a criação de um partido, uma bancada espírita no congresso, como se os espíritas fossem mais iluminados do que outras pessoas. Mas acho coerente que haja uma cultura espírita que mantenha uma mentalidade progressista, uma consciência humanista da política. Creio haver um consenso mínimo quando se trata de tragédias humanitárias. O espiritismo condena a escravidão. Seus livros chegaram ao Brasil escravocrata e incentivou o movimento abolicionista. Começou bem. O espiritismo condena a exploração do mais fraco pelo mais poderoso. O movimento espírita é imenso no Brasil hoje. E essas pessoas não hão de ficar indignadas ante a aliança dos bancos com o poder político dos antigos coronéis que ainda dominam o nosso Congresso? Isso para dar um exemplo que é bem atual.

Do ponto de vista da pesquisa acho que minha vida percorre a mesma pergunta: como o discurso conservador consegue dominar os dominados apesar de todas as circunstâncias? Que tipo de embotamento na cabeça das pessoas que mesmo diante da obra de Kardec, continuam conservadoras na política. Se eu leio Rousseau ou Marx, e gosto, e sigo, eu me torno um revolucionário. Ora, se eu leio Kardec tem um mundo de opressões que precisam ser combatidas nesse mundo, tem uma garantia de qualidade de vida para todos que preciso defender, como uma política social universalista, por exemplo, e a gente encontra espíritas que vão ser contra um governo que queira ampliar a política social... a não ser que as pessoas não leiam Kardec. Ou a chave de leitura já está dominada por interpretações que as cegam. Como os cristãos fizeram com a Bíblia. Que transformam afirmações metafóricas em verdades científicas e verdades morais em metáforas. “Deus criou o mundo em 7 dias”, uma verdade cheia de símbolo que eles querem transformar em ciência. “Vai, vende tudo o que tem, dá aos pobres e me segue”, uma recomendação ética muito precisa... qual cristão segue literalmente a Bíblia aqui?

Ou ainda, falta mesmo é mais clareza política, entender como as coisas funcionam, perceber a perversidade sistêmica, a maldade que está por trás de pessoas elegantes, cheirosas e gentis que se mantém nas secretarias dos governos, ou na acessoria de parlamentares... e que na prática escusa estão ajudando a corromper o sistema todo. Ou, no caso da educação, a gentil e amorosa diretora de uma escola pública que tem uma prática pedagógica abominável há séculos por todos os pensadores da educação. Ou seja, falta pensamento critico. E se o espírita vai ao centro, estudar a mesma coisa toda semana, e quando ouve falar em transformação pessoal está fechado em sua neurose pensando nos seus microproblemas psicológicos... falta derrubar as paredes do centro, olhar as tragédias, as nossas sombras coletivas que vão revelar muito das nossas sombras individuais. Nossa falta de amor, de afeto, de liberdade já que vivemos em uma sociedade absolutamente repressora.

O ser humano é belo, rico em potencial de maravilhamento com a vida e com o mundo. O brilho do olhar de um ser humano é a hierofania que se revela todas as manhãs diante de cada um de nós, na pessoa com quem tomamos café da manhã (aprendi hoje isso com Pedro Toro, na aula de biodanza)... no olhar daqueles com quem almoçamos. Olhar o outro e ver a presença do mistério. Se encantar, com o assombro da eterna novidade da existência, dos passarinhos que vêm bebericar o néctar das flores do jardim. Deus não está restrito aos templos... está também no ritual da vida cotidiana, está no raio de sol, no brilho da lua, e em toda parte, é o todo, do qual sou todo também. A experiência do sagrado vivifica, ressuscita. Ela é a experiência suprema do amor que nos faz tremer de medo ante o inesperado. O amor é o que mais nos fascina e o que mais nos atemoriza. E é fonte de nossas maiores alegrias e de nossas maiores dores.  Assim é o sagrado, porque o amor é sagrado. Ter coragem e olhar com olhos de amor, encantar-se com a vida. Olhar, olhar, olhar, contemplação... (contém “placer”, em espanhol), ter prazer em simplesmente ver a vida, e sentir-se vivo. Creio que Jesus era um ser com olhar amoroso que via a presença do mistério e, por isso, se fazia presença... ao ser humano é feito o convite de segui-lo nesse gesto de amorosidade, de olhar a vida com esses outros olhos... olhos de curiosa magia ante o novo.

Espiritualidade, para mim, hoje, que fui muito influenciado, nos últimos anos, por diversas práticas de meditação, por vivências corporais como a biodanza, tem a ver com presença no agora... com um ir além da experiência linear do tempo e tocar, no instante mesmo - um instante poético – a beleza, a transcendência, e é uma experiência de encanto e de vida, uma experiência de eternidade.  Ficaria eternamente abraçado a essa pessoa que amo... o tempo parece não passar. E olho o tronco das árvores e o brilho do sol nas folhas... e eles me transportam para o transcendente e amoroso espaço do agora eterno. E o amor que começo a sentir... e então olho para a humanidade e vejo tantos horrores... e consigo ver nisso tudo uma tremenda falta de amor. Desde bebês... falta amor, cuidado, afeto, presença (porque são tantas presenças ausentes que se detectam nos consultórios de psicanálise ao longo da vida). E tem um potencial imenso dentro da gente, mas a gente aprendeu a reprimir os potenciais para viver nessa sociedade que aplaude o desamor... que incentiva só a apreensão intelectual das coisas, deixando de lado o afetivo, o lúdico... o bebê olha a árvore, a flor e o beija-flor... o que ele vê? se eu não estou enganado ele vê a presença de Deus em beleza. Aí, vem um adulto  que está seco em sua espiritualidade e se apressa em dar os nomes: árvore, flor, passarinho... e diz as cores, orgulhoso por estar ensinando... mas o essencial que a criança está vendo, que já está invisível ao adulto... e que não tem nome... com o tempo a criança vai substituindo o essencial pelo nome dado pelo adulto (é o que Platão quis dizer na alegoria da caverna) e vai repetindo o comportamento dos adultos... e perde a essência. E uma sociedade doente como a nossa, adoece as crianças... e depois vende remédio para transtorno de comportamento.

Mas se falta resgatar essa fonte perdida do amor, dos mistérios, desses conteúdos que reprimimos ao longo da vida... há que se ter uma política contracultural que nos ajude a florescer esse instinto originário do humano, que é gregário, que é amoroso com a espécie, que inclui e que sente prazer em estar com o outro. A enfermidade instalada em nós, nos faz querer distância do outro, o que gera mais e mais invisibilidade, insensibilidade e carência afetiva por todos os lados e guerra, competição, individualismo, isso é a nossa doença, é importante que se diga, porque o status quo naturaliza a enfermidade e criminaliza os poetas... Que ferramenta temos à disposição para realizar essa alquimia?

Eu pessoalmente fui buscar fora dos centros espíritas. Para mim, foi importante essa busca fora. Porque do ponto de vista da corporeidade, a reprodução da repressão que vigora na sociedade também acontece nas instituições espíritas. O corpo como lugar do pecado e todas as fantasias de culpa religiosa associada ao prazer também estão presentes nos centros, salvo exceções com quem me interessa dialogar. E negar o corpo é negar a vida, que é negar a potência máxima da manifestação de Deus no cosmos.

Não estou defendendo que os centros espíritas se tornem centros holísticos de cura, com terapias corporais. Podem continuar sendo locais de divulgação da doutrina espírita. Mas quero compartilhar que há, no mundo, uma série de práticas saudáveis, e que são espiritualizantes, e conheço muitos espíritas de mente aberta que estão nessas buscas (yoga, biodanza, meditação, danças sagradas,rituais xamânicos, artes marciais, etc), que vão além da dimensão intelectual e que acho que são importantes para essa alquimia humana, para o desabrochar da percepção do sagrado e da vivência do amor, por remexer nos conteúdos reprimidos da sombra nossa de cada dia. E que o estudo intelectual dá consciência, mas não traz o fogo da transformação, que os momentos difíceis da vida trazem, mas que podem também ser acessados por práticas terapêuticas sérias, que o ocidente conheceu depois de Kardec. O século XX mostrou que a Razão não dá conta da inteireza humana e a sombra das guerras e das atrocidades humanas mostrou o que ocorre quando o ser humano não ilumina a sua inteireza... O homem que se esforça para domar suas más inclinações... normalmente fica mais neurótico... imagino que Kardec hoje concordaria com as descobertas das ciências psíquicas e daria outra definição sobre o verdadeiro espírita.

Acho que uma pessoa que frequenta muito um espaço só, que repete o mesmo discurso e estuda a mesma coisa... acho que ela está com medo da vida, com medo do contato com o diferente, com medo de se descobrir diferente também. E digo isso porque a patologia do comportamento religioso, o fanatismo, se alimenta desse tipo de prática, ensimesmada, sem diálogo, sem abertura de horizontes e, principalmente, sem contato com o outro. Isso é, no mínimo, alienante. Um lugar de conforto... tal como uma gaiola encarpetada.