terça-feira, 26 de maio de 2015

Brincar com as crianças


E continuam minhas experiências na escola pública.
Agora estamos fazendo vivências reunindo as crianças e as mães (ou pais e outros responsáveis).
Na primeira turma, assim que chegaram, as mães olharam para mim e disseram com alegria e surpresa:
- Ah, então você é o tio André?! Meu filho fala de você todo dia: "Mãe, hoje eu estive com o tio André. Mãe, hoje o tio André não foi na minha sala." Agora, finalmente, vou poder conhecer o tio André e saber o que ele faz com as crianças.

E isso porque eu tive somente três ou quatro encontros com essas crianças.
Me pergunto pela razão do sucesso. Como fiquei tão famoso entre os pequenos? Como fiquei querido aos seus olhos e como ganhei tão facilmente a confiança das mães? Que mágica é essa?

Em conversa com a Gabi, minha companheira de vida e parceira à distância nesses trabalhos em educação (a Gabriela trabalha com crianças menores e bebês!) ela me disse que experimenta a mesma reação nas crianças. Em pouco tempo de contato já nos tornamos pessoas significativas para elas. Algo nos diz que não é tanto "o que" fazemos, mas "o como", o nosso olhar... *

Não sei exatamente explicar, mas tenho umas pistas.
"Trabalho com emoção, disse eu às mães, e a criança ainda está aprendendo a lidar com a emoção. Muitas vezes bate uma emoção nela e ela nem sabe o que fazer com isso. Tudo sai do controle. Mas logo depois ela volta ao normal.
Muito comum é quando a criança sente raiva e começa a gritar, bater pé e xingar.
O que eu faço? Se ela não está ameaçando ninguém, não preciso intervir. Basta olhar, esperar que ela se acalme. Se ela estiver brigando com outra pessoa, vou até ela, toco em seu ombro e pergunto: por que você está batendo, ele não é seu amigo? Ou digo: "Aqui não batemos?" Mas faço isso sem entrar na raiva junto com ela. E sem julgamento ou sermões.
No geral a mãe, o professor, o adulto, entra na raiva e começa a ameaçar, a gritar com a criança, a agredi-la e a chantagear. Ou seja, não é lá muito adulto. Se torna uma criança junto com ela.
Se sou eu o adulto na relação, preciso saber lidar com minha emoção e ajudá-la a reconhecer e lidar com sua emoção.
Assim consigo, ao invés de ser inimigo das crianças, ser amigo delas.
A educação acontece quando sou amigo das crianças.
Num presídio, o carcereiro é inimigo do preso.
O preso fica o tempo todo pensando em formas de fugir.
O carcereiro, desconfiado das intenções do preso, fica o tempo inteiro vigiando.
Isso é o que ocorre no presídio.
Mas aqui não.
Aqui é uma escola.
São crianças!
E nós somos educadores!

Foi mais ou menos o que falei com aquelas mães. Isso as tocou muito. Uma verdade tão simples. Todas concordaram e se emocionaram.
Fico me perguntando sobre como os adultos agem com as crianças.
Por que e quando entramos nessa emoção de carcereiro?

Então você entra como amigo na relação e tem outro olhar: de aceitação, de legitimar o outro, de não-julgamento. E a criança percebe isso. Mesmo quando eu não consigo "atingir o objetivo" do planejamento da atividade, deixei uma marca imortal na criança. De que ela foi aceita. De que ela tem liberdade de se expressar. Quais serão os benefícios disso, em seu desenvolvimento?

Verden-Zoller escreveu em parceria com Maturana, sobre a importância do brincar na educação. Estar presente na brincadeira, estar presente junto ao outro, aceitar o outro como ele é, estar inteiro no aqui e agora, contato, presença... são atitudes raras em nossa cultura.

"Numa cultura centrada na produção - como é ou se tornou a nossa cultura ocidental -, aprendemos a nos orientar para a produção em tudo o que fazemos, como se isso fosse algo natural. Nessa cultura, não fazemos apenas o que fazemos. Trabalhamos para alcançar um fim. Não descansamos simplesmente, nós o fazemos com o propósito de ganhar energia; não comemos simplesmente, ingerimos alimentos nutritivos; não brincamos simplesmente com nossas crianças, nós as preparamos para o futuro.

Sem dúvida, podemos esgrimir o que nos parecem ser boas razões para agir dessa maneira: devemos ganhar a vida, estamos cansados, precisamos prestar atenção à nossa saúde, devemos educar nossos filhos. O resultado é que, em geral, enquanto interagimos com outros seres humanos nossa atenção está voltada para mais além da interação, isto é, para as consequências que esperamos.

Desse modo, não vemos o outro como um participante efetivo do encontro, não vemos as circunstâncias nas quais este acontece, ou não vemos a nós mesmos com o outro. Se essa limitação acontece a uma mãe, ela não encontra seus filhos na interação e estes vivem uma privação de contato corporal que interfere no desenvolvimento normal, tanto em sua corporeidade quanto em sua auto-consciência e consciência social. Em outros termos, a criança não se auto-aprende como um Eu integral no respeito e aceitação de si mesma; não aprende a si própria como um ser social no respeito ao outro e, assim, não desenvolve consciência social."
(Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano)

Vamos ver o que acontece? - sugeri a elas.
Brincamos na roda, dançamos, andamos juntos e no final, as mães e a professora, junto comigo, fizeram massagem nas crianças. E depois os pequenos é que fizeram massagem em nós.
Tudo com música e muita alegria e essa disponibilidade corporal, ao toque, ao afeto, que foi tão lindo de ver entre mães e filhos.
Foi uma das atividades mais lindas que já vivi.

Um dos meninos, que costuma dar muito trabalho à professora foi o que mais pedia massagem:
- Faz massagem em mim, tio!

Lindo, lindo, lindo!

Nesse movimento chamado Educação Viva e Consciente estou aprendendo que é tudo realmente muito simples. É só descomplicar. Brincar é tão simples...

* Gratidão a Gabi que me apresentou a esse movimento, me emprestou o livro e tem insistido na importância do brincar!

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Meu aluno morreu na prisão. Fracassei.


Matheus morreu. Aos vinte anos de idade. Morreu de tuberculose na prisão.
Rio de Janeiro, depois de um tempo envolvido com o tráfico de drogas no Morro dos Prazeres, Santa Teresa, ele foi preso e recebia visitas de sua mãe.
Matheus foi meu aluno por anos no projeto chamado Escola de Valores. Nos encontrávamos aos sábados de manhã no Aterro do Flamengo. Na época, moravam no casarão da Tavares Bastos. Era uma família que além dele, mais seis irmãos moravam com a mãe e o padrasto num só quartinho, com uma só cama de casal. O banheiro coletivo ficava no final do corredor do segundo andar do casarão. Ali viviam com muitas outras famílias também apertadas em seus quartinhos. Muitas histórias me vêm à lembrança agora que recebo a notícia de sua morte.
Estou muito triste. Fizemos uma boa amizade. Demos boas risadas juntos. Não foi fácil, mas nosso grupo de trabalho conquistou essa criançada, com música, histórias, brincadeiras e muitos abraços. Ainda assim, permanecia o sentimento de que nosso trabalho estava incompleto porque a agressividade era grande entre eles.
Mais velho entre os irmãos, entre suas histórias estava o dia em que apartou a briga do padrasto com sua mãe, pegou a faca e ameaçou matá-lo se ele continuasse a bater nela.
Matheus não ia bem na escola. Expulso de uma delas, o comportamento era difícil. Mas eu sabia que por trás disso estava o fato de que tinha dificuldade com a leitura, mesmo aos 12, 13 anos.
A família resolveu melhorar de vida, a mãe se separou, saíram do casarão, e foram para uma casinha bem pequena no Morro dos Prazeres. Perdemos, aos poucos, o contato. A irmã de Matheus teve um filho e lá viviam também sob o olhar preocupado da mãe que trabalhava o dia inteiro no asfalto e via os filhos soltando pipa e andando com o pessoal da bandidagem.
Agora Matheus se vai e a minha tristeza se derrama em lágrimas de impotência.
Fizemos pouco? O que será dos outros irmãos? Quem será o próximo?
Nessas horas de morte me lembro do queridíssimo Dom Helder Câmara.
Ele tinha as palavras certas para cada momento.
Com que cores vou pintar a minha tristeza?
Silencio e sinto que meu coração triste abriga frutos de compaixão e revolta.
E antes de dar asas à minha revolta prefiro fazer perguntas, refletir.
Quando pensei em compartilhar minha dor com minha família silenciei. Eles não conseguem entender. Parecem tão enfeitiçados pelas justificativas do sistema que o máximo que conseguiriam seria culpar a mãe por ter tido tantos filhos. Acho que eu precisaria gritar com minha raiva: respeitem a minha dor!
Lembro de Dom Helder quando dizia em meio ao regime militar: “quando dou comida aos pobres me chamam de santo, quando pergunto por que há pobreza me chamam de comunista.”
Fico me perguntando um monte de coisas. Sobre os sistemas. O sistema escolar, o sistema prisional. Como esse menino passa pelos sistemas e os sistemas fracassam?
Onde estão os professores e inspetores, coordenadores e diretores das escolas que tinham problema com a conduta do Matheus? O que será que sentem agora? Será que se perguntam, como eu, o que eles fizeram ou deixaram de fazer? Fico me perguntando como o menino entra na escola, não dá certo, e, apesar dos esforços das pessoas, sai do sistema escolar sem ter dado certo? Não seria o sistema escolar, em essência, um erro? O fracasso escolar é do Matheus ou da escola?
E o que dizer do sistema prisional? Se um menino de vinte anos é preso, qual o objetivo? Quem o recebe lá? Quais as metas reeducativas? Se todo mundo fracassou... a escola fracassou, a família fracassou, a igreja, eu, se todos fracassamos... aí ele chega na prisão. A prisão deveria ter a melhor equipe de educadores, não? Entende o raciocínio? Deveríamos pegar sujeitos com o talento de um Pestalozzi e pagar a ele o melhor salário do mundo para ajudar na educação desse menino.
Mais perguntas. Como é possível uma família de 9 pessoas dividir um quarto com uma cama de casal? Na Cidade Maravilhosa! Que tipo de experiência essas crianças estão tendo num espaço tão apertado? Qual noção de espaço, de limite, privacidade, sociabilidade se constrói aí?
Por que vivemos numa sociedade tão desigual?
Essa família se desenraizou de sua terra natal num êxodo para a grande cidade. Esse capítulo já é antigo. Por que concentramos as condições de vida nas grandes cidades? Já estou me perguntando sobre a lógica das cidades, que tem a ver com a lógica dos lucros num sistema pouco inteligente porque concentra. Lembra: o Brasil é um país com altas taxas de lucros, mas pouco desenvolvido. Será que não tem a ver com o tipo de concentração das atividades e dos lucros? E aí como fica a vida das pessoas? Ou se mora longe demais do trabalho, ou se mora em casebres. Em ambos os casos a qualidade de vida está comprometida.
Outra pergunta não tão óbvia: por que a humanidade inventou armas de fogo? Um instrumento exclusivamente fabricado para tirar a vida de outro ser humano e dar lucro ao fabricante. Por que as pessoas usam drogas? Por que são os pobres e as crianças que morrem na cadeia produtiva da droga? E ainda me pergunto: se a Unidade de Polícia Pacificadora tinha chegado ao Morro dos Prazeres, e a mãe do Matheus estava toda feliz por ter ido morar numa comunidade pacificada, por que ainda havia tráfico de drogas lá?
Mais perguntas: por que essa mãe tem tantos filhos? E por que há tanta carência afetiva na criação desses e de tantos outros filhos das gerações? Ouvi certa vez um psicólogo sugerindo que uma causa pela qual as meninas da favela têm filhos aos 14 anos é o fato de poder mostrar para todo mundo (e para si mesma) que foi amada por alguém. Andar com o barrigão é poder contrariar a baixa auto estima e dizer: alguém me quis.
Afetividade, sexualidade, amor... por que era tão difícil a Matheus, seus irmãos e seus amigos, serem tocados em seus corpos, serem abraçados? Qual o medo do afeto?
A morte do meu querido Matheus me faz pensar tanta coisa.
Me lembro da gente junto. Caminhando pelas ruas, as vezes que ele foi na minha casa, o sorriso sincero e bonito. Forte, seu apelido era Tourinho, nome que ganhou na capoeira. Aliás, a capoeira também passou.
O que ocorre na trajetória de vida desses meninos que nada parece prender muito sua atenção? Nada faz com que fiquem, nada os agarram. Nada preenche o sentido de vida e dá aquela “Eureka! achei algo legal para fazer da minha vida". E aí o tráfico agarra.
Por que parece que há uma condenação ao sofrimento?
Podemos pensar em vidas passadas, em entender essa vida como a continuidade e consequência das ações anteriores. Ainda assim me vêm perguntas: quando será que poderemos construir uma sociedade humana capaz de acolher e encaminhar os desencaminhados? Quando vamos oferecer caminhos ao invés de condenar?
Durante a vida, Matheus foi tão condenado...
Seus irmãos estarão condenados ao mesmo destino?
O que pode ser feito meu Deus?
Termino essa reflexão com mais perguntas do que respostas e a sensação de um fracasso como educador. Matheus não achou lugar nesse mundo. Este nosso mundo não ofereceu lugar a Matheus. Matheus não é mau. Ele é bom. Carinhoso, sorriso sincero, amigo leal. Não encontrou lugar aqui. Este nosso mundo não oferece lugar a todos.  E aí eles vão, de sistema em sistema, sendo excluídos até a morte. Este é o nosso mundo.