quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Ousadia e Inclusão no Cieja Campo Limpo



Simplesmente maravilhado!! Cieja Campo Limpo - SP. Isso é muito mais que uma escola, é uma comunidade!! Quanto humanismo em prática!!! 

Ao começar a visita, conduzido pela carinhosa e alegre assistente de direção, Cristina, diante da primeira sala de aula, meus olhos já se encheram de lágrimas. Meu Deus, é possível! 

Atrás da porta de vidro que me permitia ver o ambiente bem iluminado, jovens e adultos sentados em volta de mesas para 6 pessoas estavam tranquilos, trabalhando em suas atividades, conversando entre si amigavelmente. Abrimos a porta e nos convidaram para entrar com uma naturalidade que denuncia que era óbvio que ninguém deve ficar do lado de fora. Entra, entra, pode entrar. Dei dois passos de formiguinha, olhei as pessoas. Estavam acostumadas a receber visitantes. Meu Deus, uma escola aberta a receber visitantes, e incorporá-los às aulas... isso já é sinal de uma revolução! Foi o mesmo espírito de acolhimento que senti na Escola da Ponte, em Portugal. A diferença é que aqui eu não conseguia identificar quem eram as duas professoras ali na sala. Estavam sentadas junto aos alunos, tirando dúvidas, falando baixinho... Meu Deus, sim, sim, tem uma revolução acontecendo aqui. E meu coração vibra de alegria com o que vejo.

E foi assim nas outras salas de aula. E esse é o espírito que está no ar em toda a escola. Inclusão, acolhimento, relações amigas, alegria. Sim, estou falando de uma escola. Sim, estou falando de uma escola de EJA (aquelas escolas para jovens e adultos que normalmente só funcionam à noite, são sombrias, regidas pelo desânimo, alunos que faltam e não conseguem aprender). Aqui não. Aqui, é cheio de luz e vida! É um outro paradigma.

O portão fica aberto o dia todo pra quem quiser entrar. De 7:30 as 22:30, uma comunidade de aprendizagem de portas abertas a todas, repito, todas as pessoas.

Inclusive, há moradores de rua que vêm almoçar ou jantar. "São nossos futuros alunos", comentou Cristina. Entendi tudo. O brilho do olhar de uma verdadeira empreendedora social.

Gosto de pensar assim - é só um exercício de pensamento pra gente ver como as coisas podem mudar (se as pessoas quiserem). Sabe a sua escola que você conhece bem e que você sabe que não funciona? Pegue um desses dispositivos que existem no Cieja Campo Limpo e aplique lá. Por exemplo: portas abertas, visitante bem vindo, dois professores por sala, morador de rua pode vir almoçar. Pegue um só desses elementos. Implemente na sua escola. Mas implemente de forma inegociável. E veja como todo o resto, feito um caleidoscópio, vai, aos poucos, ter que mudar também. De novo, não estou dizendo que você tem que copiar um desses dispositivos. Mas é uma inspiração. E veja como se há um princípio que você leva a sério do tipo: "quero que minha escola seja inclusiva", isso faz com que você tenha que ir mudando tudo. Porque a escola que você vive é feita para retroalimentar a burocracia que a torna excludente.

Acho que pode ser produtivo pensar assim. E basta começar por uma célula...

As aulas duram 2 horas e 15 minutos. Uma adaptação para as necessidades dos estudantes trabalhadores. E são complementadas por atividades extra-classe. Às sextas não tem aula, é o dia dedicado às reuniões dos professores. Dentre as reuniões, há o planejamento das atividades da semana, já que as salas de aula têm dois professores cada. A turma fica cinco semanas com cada uma das quatro áreas de conhecimento fazendo um rodízio semestral. Ciências é junto com filosofia, português com inglês, história se irmana com geografia e a matemática com as artes... faz muito sentido. 

Eu me senti em casa numa aula de CP (Ciências do Pensamento). Na lousa uma frase do Buda para despertar um debate inicial que normalmente dura os 15 primeiros minutos das aulas. Essas frases iniciais acontecem nas outras salas também. Parecem ter um sentido de "pensar a vida" e estão conectadas com o projeto do mês. Nessa, o Buda falava de impermanência: "isso não é meu, isso não sou eu"... os alunos participaram com perguntas e expressaram suas opiniões. Daí seguiu-se uma explicação sobre os ciclos da natureza. Uma abordagem biológica sobre os nutrientes que vêm das plantas, se tornam alimento e depois retornam a terra: e a consciência da interdependência. E depois discutiu-se o tema do consumismo na nossa sociedade, com base no vídeo "Criança, a alma do negócio". Que maravilha! Um ensino com conteúdo e significado existencial, conduzidos com participação... foi notável observar como os professores têm habilidade em acolher as falas dos alunos. Mesmo quando os alunos lançam brincadeiras ou piadas sobre o assunto, o professor conseguia transformá-las em discussão séria e profunda. O resultado é uma transformação na vida das pessoas que relataram as mudanças em seus padrões de consumo, uma nova percepção da realidade. Um senhora disse: "professor, em um mês, sem brincadeira, eu já economizei 700 reais, porque estou pensando duas vezes antes de comprar as coisas no shopping." Todos terminaram o estudo agradecidos e valorizando o benefício do conhecimento em suas vidas.

Inclusão. De fato o Cieja Campo Limpo é referência em inclusão de pessoas com necessidades especiais. Pessoas com síndrome de down estão em diversas salas, há uma sala para deficiências intelectuais com um psicopedagogo, há uma sala para turmas de surdos, outra de cegos, há estudantes que vêm de um antigo manicômio e que moram num aluguel da prefeitura já que não foram acolhidos em suas famílias agora que o manicômio fechou suas portas, ex-alunos circulam pela escola e são referências de sociabilidade, cadeirantes estão presentes (a escola construiu suas rampas... dando o seu jeitinho), todos, todos estão incluídos nessa escola. 

Confesso que tive uma emoção especial quando hoje no Encontro Indígena foi feita uma roda no refeitório, com lenhas no meio para simbolizar o fogo, e os representantes dos povos indígenas começaram a falar... e ali ouvindo a voz daquele homem de corpo pintado e cocar na cabeça... de repente um aluno do Cieja que estava sentado no círculo se levanta para ir beber água... e ele vai cambaleando, mancando das duas pernas (algum tipo de paralisia), e eu acompanho seu andar, e vou vendo em volta uma senhora na cadeira de rodas, jovens com síndrome de down, aquele povo todo em volta... pessoas trabalhadoras que em algum momento deixaram a escola e estão ali, no Cieja, participando daquele encontro que fala de inclusão... e ali me veio esse clarão no pensamento... que desceu ao coração... é isso! Essa gente está fazendo inclusão aqui.

Entendi um pouco as razões do sucesso dessa escola. Essas pessoas estão assentadas numa verdade muito profunda dentro de si mesmas. Acreditam de verdade na inclusão, têm verdadeiro sentimento de acolhimento e respeito à liberdade das pessoas e têm muita habilidade na montagem da estrutura institucional que garanta a aplicação desses princípios que há séculos todos sonhamos para a educação.

Nas andanças pela educação uma coisa está ficando clara: conheço muita gente cheia de bons sentimentos humanos nas escolas. E claro que fazem toda a diferença na vida de centenas de crianças. Mas muitas dessas escolas com pessoas amorosas mantém uma estrutura muito desumanizada, uma pedagogia ultrapassada. O diferencial da nova educação é quando a escola é coordenada não só com o sentimento nobre, mas quando conseguem montar uma estrutura institucional humana, aberta, inclusiva, flexível, participativa. Isso ainda é raro, mas essas escolas como o Cieja Campo Limpo mostram que é possível fazer. Precisa de muita coragem e vontade de mudar estruturas. Eis o segredo, eis a cominação necessária: o profundo sentimento de amor pelas pessoas e a inteligência político-pedagógica no desenho da estrutura institucional. Essa é a verdadeira inclusão. Emocionante de ver! É possível! 

Amor sem boa gestão não basta. 
Gestão sem amor, Deus me livre. 
Agora, junte amor com a gestão inteligente... e temos uma nova educação, um novo paradigma, uma perspectiva verdadeiramente inclusiva.

E amanhã ainda vou participar do famoso Café Terapêutico, um encontro quinzenal com familiares das pessoas com deficiência.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Autoeducação com adolescentes


Não vou escrever agora um livro sobre educação de adolescentes. Bem que seria possível. Mas nesse momento vou compartilhar umas reflexões a partir de uma experiência que estou vivendo.

Me interesso por educação porque me interesso pelo mundo interior do ser humano.
Me interesso pelas relações.
E tento entender como que, no encontro, pode haver aprendizado.
Educação é um caminho de desenvolvimento dos nossos potenciais.
É uma caminhada por uma maior integração humana.
Um ser humano integrado, num mundo tão cheio de dualismos, é um verdadeiro milagre.
Somos, como dizia Campbell, o herói na trajetória de busca por si mesmo...
E essa é a nossa busca para sair desse labirinto das contradições humanas...

E é nessa minha caminhada de autoeducação que acompanhar um adolescente está sendo de grande ajuda. Espero que para os dois.

Vamos ao fato.
A mãe está tentando fazer o filho de 11 anos voltar a frequentar a escola e sair do vício do uso do computador.
Ele deixou de ir a escola (uma série de motivos, não cabe aqui entrar no caso completo dele) e passava o dia inteiro trancado no quarto, usando o computador, sem querer ver ninguém.
A mãe desesperada está procurando ajuda profissional e está começando a retomar as rédeas da situação.

Comecei a ficar com ele alguns dias no período em que a mãe determinou que ele teria de ficar sem computador. De quatro as seis da tarde.
Tem sido muito interessante. Um verdadeiro aprendizado.
"O que você está fazendo aqui? Vai embora! Eu não quero ver ninguém! Eu te odeio! Nunca mais saio com você. Nunca mais quero te ver!" Você já ouviu coisas assim? Quem tem filho adolescente sabe que isso é normal.

Mas o que o adolescente precisa é: regras claras. E de uma autoridade que garanta o cumprimento das regras.
As regras são importantes porque são impessoais.
O erro mais comum dos pais ao lidar com adolescentes é não ter regras claras.
E querer mandar.
"Agora você vai fazer isso! Pronto e acabou". São excessivamente autoritários.
Ou, "tá bem, pode, mas só um pouco. Deixa mais um pouco. Não. Só mais um pouquinho. Tá bem." São excessivamente flexíveis.

Tudo que o adolescente precisa (e testam os adultos nisso) é de autoridade coerente. Por isso regras. Elas são impessoais. E muitas regras podem ser combinadas, discutidas, mudadas, adaptadas, após os momentos de diálogo.
Então comecei sendo bem rígido com a regra. Não pode ficar no quarto. Ele aceitou de bom grado. Só vai voltar no horário combinado. Ele concordou. Não pode andar sozinho pela rua. Depois de um atrito a respeito disso, aceitou.
E assim, estabelecendo regras com rigidez, ele se adaptou e pudemos conversar sobre suas dificuldades, seus desafios. Temos comido pizza, ido ao cinema... sinto que ele gosta de ter, junto com a autoridade do disciplinador, a afetividade e o calor de um adulto que se preocupa com ele.
Disciplina e afeto.
Eis o segredo.
É simples.
Mas o aprendizado disso não pode ser meramente teórico, precisa ser vivido.
E por isso é um caminho.
Achar a dose certa.
E as coisas de dentro da gente vão se desvendando.
O meu desafio como educador e adulto é ouvir suas reclamações, seus xingamentos e manter a calma. Entender que sua agressividade é um mecanismo de desenvolvimento de sua identidade. Não levar para o lado pessoal. Está com raiva porque eu sou a autoridade que o está frustrando. Daqui a pouco ele volta a sentir-se meu amigo e a gostar de me ter como apoio para refletir suas questões.
E mesmo quando ele lança sobre mim suas ofensas, posso impor alguns limites, do tipo, não fale assim comigo, não precisa falar palavrão. Mas acho que quando ele diz: eu te odeio!, preciso respeitar porque ele está expressando seu sentimento. Já vi muito adulto se ofendendo por quase nada e discutindo igual criança com os adolescente. Isso não ajuda.
Bom, sinto que se sou um adulto equilibrado, há um bom senso nessa relação de respeito ao outro e o respeito por si mesmo.

Hoje por exemplo, acho que exagerei.
E aprendi algo sobre mim mesmo.

Estávamos caminhando.
Iríamos a uma livraria passar parte do tempo que ele teria que estar na escola. Como saiu mais cedo (fase de adaptação sugerida pela psicóloga da escola) a mãe combinou que ele ficaria comigo até o fim do tempo que ele estaria na aula. Hora de escola é para estudar! - disse a mãe. Adorei! A mãe está sendo ótima, tendo ótimas soluções para essa fase dele.

E no caminho eu propus como desafio que ele achasse o caminho da livraria. Ele já havia estado na livraria outras vezes, mas sempre conduzido pela mãe.
No fundo eu queria que ele pedisse informações às pessoas (para sair do seu casulo).

Então ele achou uma solução muito interessante. Ele se lembrava que a livraria ficava perto da avenida principal do centro da cidade e que esta era a única avenida com prédios altos. Olhou para o alto e viu alguns prédios altos, segui-os e encontrou o caminho. Achei simplesmente genial. Uma solução muito original. E nisso fomos olhando os prédios e ele fazendo comentários sobre a arquitetura, um de seus interesses. Fiquei feliz com a atividade. Estava sendo um sucesso.

Chegamos num ponto bem próximo da livraria.
Mas ele não conseguia chegar.

Comecei a sugerir que ele perguntasse às pessoas, que ele pedisse informações.
Mas ele se recusou.
Disse que não queria. E num momento admitiu que sentia vergonha.
Eu o pressionei (aqui acho que exagerei) sugerindo: "pergunta pra esse moço, pra essa senhora".
No final ele se desequilibrou emocionalmente, e disse que não aguentava mais. Percebi sua angústia.
Eu acabei perguntando às pessoas na rua, na esperança de mostrar para ele que não é nenhum bicho de sete cabeças. E assim, chegamos a livraria, onde estava sua mãe nos esperando.
Mas não sei se ele aproveitou a lição, porque estava com muita raiva de mim.
Claro que nada é perdido. Ele ficou diante do desafio de encarar a frustração. Creio que seja esse um dos temas pelos quais está evitando o convívio.
Mas eu fico pensando que eu poderia ter deixado ele sair vitorioso dessa.
Eu poderia ter mudado a brincadeira.
Refletindo mais tarde concluí que poderia ter feito a brincadeira de quente-frio e terminado o nosso encontro de uma forma amigável. Com vários sucessos.

E aí fiquei pensando onde posso melhorar como educador.
Entendi que ser adulto, e ser educador, é sim lançar desafios, mas que é também perceber quando a criança e o jovem já estão no seu máximo (cognitiva ou emocionalmente) e conduzir as situações de forma que eles sintam-se vitoriosos, sintam- se capazes e estimulados a novos desafios. Acho que fui longe demais e demorei a flexibilizar o jogo, e ele se sentiu desmotivado e, possivelmente, frustrado consigo mesmo.

Fiquei pensando que na raiz da minha atitude estava uma intolerância, um homem irredutível, duro demais. E olhando mais profundamente, um traço infantil de personalidade (criança ferida) de alguém que precisa sempre vencer e para isso fazer os pequenos perderem. Por trás da violência dos adultos na relação com as crianças está esse jogo de poder.

Acho que olhar para isso com mais cuidado pode me fazer um educador melhor nas próximas vezes.

Claro que dessa experiência, como em todas as experiências da vida, o nosso jovem terá os elementos para que possa crescer.
Não há educador perfeito, como não há ser humano perfeito.

Mas, eu cá, preciso admitir meus tropeços e aproveitar o rico contato com eles e aprender sobre mim.

Estou aprendendo.