terça-feira, 14 de novembro de 2017

Yoga de Rua e Amor: preparação para o segundo aniversário.

Olá queridos,
quero de coração agradecer por cada um que está aqui envolvido nesse coletivo.
O yoga de rua é um coletivo onde cada um dá o que tem, o que pode, e no fim das contas percebemos que nossos alunos ficam felizes com o resultado. E nós também.
Então eu aqui agradeço pelos benefícios que o yoga de rua traz para mim, um lugar de prática gratuita de yoga, que é como eu gosto de praticar e sinto uma imensa coerencia. Acho que o néctar espiritual, a transmissão dessa fonte mais pura da riqueza eterna que vem de Deus, acontece sempre num contexto outro que o das transações comerciais. Isso é coerente com o que meu coração diz, quando por exemplo, olho para os mestres do passado, todos aqueles que eu considero mestres, como Jesus, Buda, rishis anônimos da floresta, Francisco na Toscana, Teresa em Calcutá, Paramahansa Yogananda e seus mestres, Sri Ramakrishna, Ramana Mararshi... transmitiam seu amor e a sabedoria de seus corações gratuitamente. E não é que não exigiam nada de seus discípulos, mas, a entrega e a seriedade no caminho nada tinha a ver com dinheiro. Até outros mestres que admiro e que souberam usar a relação das pessoas com o dinheiro como parte da exigência na relação, Gurdjeff, Osho, Lacan... transcenderam essa coisa toda e só estavam jogando o jogo na relação com seus seguidores. Então sinto a maravilha de estar num projeto que sobrevive de doações. E fico, internamente, sonhando, com uma forma de viver assim... uma coerencia societal na ecologia do amor... assim como o sol se doa ao brilhar e a lua, e o mar, e as árvores, servem a Vida na Terra sem cobrar nada... quem sabe um dia possamos viver assim como humanos, uma sociedade sem dinheiro? Penso no yoga de rua como um coletivo que possa vibrar na coerência desse tempo possível. Uma outra economia, assim como uma outra política, ou seja, uma outra gestão coletiva.
E quero agradecer também porque através do yoga de rua a gente está conseguindo, de uma maneira mínima que seja, fazer o amor chegar até as pessoas que passam por situações imensas de desamor. Nossos amigos que estão na rua... duro destino!... as condições da rua são de pouco amor, as relações são hostis demais... e, quando olhamos para o passado deles, vemos um histórico de muito desamor. Não que sejam vítimas... mas olhos e vejo pessoas muito traumatizadas nas suas relações afetivas, especialmente familiares. E aí, através do yoga de rua, conseguimos de alguma maneira criar laços, sorrir juntos, saber o nome das pessoas e permitir que essas pessoas que estavam em grande solidão e indiferença, possam conhecer outras pessoas e assim, aos pouquinhos sinto que as feridas podem ir sendo curadas. É maravilhoso quando chego na roda, ou mesmo antes, no café, e as pessoas perguntam pelos professores, se vem, como estão, etc.
Então agradeço, por mim e por eles, que são parte de mim.
E agradeço a parceria porque sozinho eu não poderia ajudá-los, nem uma centésima parte do que em grupo conseguimos.
Se formos falar na presença espiritual que o Divino faz cair como chuva em nós ali nas práticas, aí mesmo só tenho a agradecer porque isso eu não poderia mesmo produzir. Sou, assim como todos, um vaso que tenta receber e perceber a graça. E agradeço ao Divino em nosso nome.
Então eu venho refletindo sobre a natureza do nosso grupo, desse projeto. E de como ele se torna, pelo menos para mim, um lugar de prática espiritual, de exercício mesmo do amor, naquela coisa mais básica que é olhar minhas sombras ao lidar com o diferente e, de alguma maneira, perceber e trabalhar em mim mesmo, a cegueira do meu coração ao ainda acreditar que estamos separados. Isso vale quando olho para as pessoas marcadas pela rua, com seus temperamentos explosivos, magoáveis, sua timidez, seus vícios escancarados e seu aspecto corporal mesmo, seus fortes cheiros, a sujeira de seus pés e suas posturas que tendem a arquear ao chão e isso vale igualmente quando entro em relação com os membros do coletivo, que chegam para servir, que sempre encontram portas abertas e, cada um do seu jeito, traz uma maneira de olhar as coisas, um jeito de ser, um estilo pessoal, um jeito de pensar, uma forma de demonstrar seu comprometimento e tudo isso vai me fazendo perguntar ao meu coração: por que julgar tanto? Por que não simplesmente amar as pessoas?
Então o processo está sendo maravilhoso. E estou descobrindo caminhos de gratidão e de admiração pela riqueza e pelo potencial de cada um. É maravilhoso trabalhar num projeto com parceiros dos quais sou fã, a quem gosto de me colocar como aluno ali e aprender tanto.
Estamos caminhando para dois anos de vida. No dia 14-12-2015 foi a "experiência piloto".
Temos alguns aprendizados. Dá até para abrirmos uma roda para trocar esses aprendizados.
Aqui, nessa pequena carta, quero dizer de um que considero a essência da essência.
Descobrimos que para dar certo precisa de amor.
Esse é um trabalho essencialmente de amor.
O que quero dizer?
Tem que vir pra se doar.
Passo 1 do amor: o amor universal: olhar as pessoas com aceitação incondicional. Ou seja, ter olhos de ver Deus no outro. Esse é o amor que acontece dentro de nós. O sentimento de amor que move uma atitude de abertura e amor por todos os seres. Na verdade, aqui reside o Ser em sua manifestação. Você, aí dentro, é Amor. Então, seja você. Livre da armadura construída na história de vida. Então, bem vindo ao caminho de cura. Deixar a armadura cair e vibrar a essência amorosa que somos todos. E isso nos leva ao passo seguinte...
Passo 2 do amor: o amor concreto, nas relações: criar laços, vínculos de afetividade. Relação de amor. Envolve presença, interesse pelo outro, conhecer o outro. Bem vindo ao campo perfeito para esse exercício. As pessoas que vivem nas ruas estão no fundo do fundo do fundo do poço. A "rua" é o último passo que o sujeito dá na vida após uma longa história de rupturas afetivas. O lugar da solidão é a rua. Então aqui mora o maior desafio do projeto. E aqui você é convidado a amar.
Dar aulas. Amar.
Participar das aulas. Amar.
Conversar com as pessoas. Amar.
Estar ali em silêncio, em paz. Amar.
Fotografar. Amar.
Preparar o alimento. Amar.
Servir o alimento. Amar.
Em casa, meditar em beneficio dos alunos. Amar.
Orar, orar, orar muito pra que a luz possa finalmente se fazer na vida dessas pessoas. Penso nesse momento no jovem C. que tem toda uma questão familiar complicada, veio pra cidade grande, foi preso, saiu, nos encontrou, teve esse caso de amor com a gente, mas agora anda sumido, vem de vez em quando e mal consegue ficar nas aulas, e quando fica, fala muito... qual a situação mental dele nesse momento? Eu não posso desistir de acreditar que através do projeto ele pode tornar-se saudável e feliz. Nós conhecemos a sua essência. Seu coração bom, sua pureza... a polícia conhece a armadura dele. Então o que mais a gente vai fazer por ele?
Tudo que te faça entrar em relação com as pessoas. Amar.
E mesmo num trabalho pelo projeto como divulgação, cuidar das finanças, etc. Você pode fazer isso com envolvimento afetivo, olhar as fotos, ver os alunos, vibrar por eles, acompanhar a evolução de alguns deles. Amar.
Participar das reuniões da equipe e descobrirmos coletivamente formas de "tocar" as pessoas. Amar.
Então acho que esse é o grande aprendizado.
Me lembro que a Bárbara fez um belíssimo trabalho enquanto passou pelo projeto.
Qual a marca da Bárbara? Amor. Ela começou frequentando todos os dias, sempre que podia. Depois  assumiu a turma de segunda-feira. Vinha toda semana. Quando não conduzia a prática estava ali na coordenação.
Eu participei das aulas dela. Excelentes. Era diferente porque tinha mais ênfase em pranayamas. No início me perguntei se isso daria certo, se os alunos acompanhariam tantos exercícios sentados de respiração... o tempo passou e algo aconteceu... a turma sempre perguntando por ela. O que ela fez? Criou laços. Se doou.
Amor.
É disso que essas pessoas mais precisam.
Vem doar. Vem se doar. As pessoas precisam muito do que você tem debaixo da armadura.
Elas não precisam de nada nada nada do que você tem a oferecer a partir da armadura.
Mas se você puder usar a armadura que, nesse momento, é o que te faz caminhar, para vir para cá, e quem sabe mostrar ao menos seus olhos por sob o elmo... talvez a alquimia desse encontro possa te fazer deixar pouco a pouco a armadura de lado e acostumar-se a ser amor.
Assim o Yoga de Rua faz dois anos.
Um convite para o amor.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Yoga de Rua e o Evangelicalismo



Quero trazer algumas reflexões sobre a experiencia de levarmos para a população de rua a filosofia e a prática do yoga, especialmente quando parece acontecer um certo confronto com uma mentalidade marcada pelo fanatismo religioso, do tipo bíblico, "apegado a letra", que é a marca contemporânea do movimento conhecido como "evangelical". O evangelicalismo se define como "protestante", mas sabemos que há diversas variantes do movimento reformista que não são marcadas pela intolerância e pelo fanatismo irracional e moralista que ganhou corpo em nossa sociedade.

É muito comum nas grandes cidades, a mentalidade religiosa das pessoas que vivem na rua estar fortemente marcada pelo fanatismo religioso. A forte noção de pecado, a consciencia de culpa por se sentirem "afastados" e um grande "apego a letra" quando a conversa caminha para assuntos de religião.

No Yoga de Rua temos vivido isso em algumas ocasiões e hoje ocorreu um diálogo que terminou deixando as pessoas cansadas. "Tirando o debate religioso foi tudo bem", disse um dos participantes ao final do encontro, trazendo-nos um feed-back espontâneo.

Queria trazer algumas reflexões.

Estamos estudando o capítulo sobre mantras do livro Meditação e vida espiritual de Swami Yatiswarananda. Ao final da prática, fazemos esse estudo teórico, que fala sobre a prática da recitação do Om, dos nomes divinos, como caminho para a realização espiritual do yogui. Já tivemos três encontros e hoje o tópico falava sobre a prática de japa em diferentes religiões mundiais.

Yatiswarananda é um monge da ordem Ramakrishna, um mestre que é exaltado pelos seus seguidores, dentre outras características, por ter vivido e realizado Deus em diferentes caminhos espirituais. Defensor do pluralismo, dizia que todas as religiões são caminhos que levam a Deus. Assim, hoje estudamos a pratica da repetição do nome de Deus no Cristianismo (oração de Jesus), a prática sufi (Islã) de repetição do nome de Allah, entre os seguidores da escola de Al Ghazali, assim como a repetição do nome de Buda entre seguidores de algumas escolas Mahayana, e da escola Shin, o budismo japonês.

E enquanto líamos um dos nossos alunos foi questionando alguns pontos e nós íamos respondendo na medida do possível. Ao final do texto ele voltou a questionar o fato de que a repetição do nome pode ser uma prática que "aborrece a Deus" ao invés de agradá-lo.

O estudo durou 37 minutos. E grande parte foi ocupado com a participação de nosso companheiro que em determinados momentos encadeava uma citação a outra falando de diversos aspectos da questão da oração de acordo com a "palavra de Deus", indo além do tema que estávamos conversando e ele mesmo percebendo que seu raciocínio estava se perdendo e saindo do foco, falando da oração dos presunçosos, da idolatria do povo quando Moisés subiu no monte, etc.

Fomos contra-argumentando. Tentando mostrar que existe um mundo para além do tipo de interpretação bíblica a qual ele estava ligado. Ele parecia entender. Mas, de repente, ele retomava os mesmos argumentos como se não tivéssemos saído do lugar. E todos fomos ficando cansados, até o ponto em que silenciamos para ele falar sozinho e se escutar.

Esse tipo de conversa sempre me deixa muito inquieto, muito intrigado. Estou numa pesquisa a respeito. Não é a primeira vez que acontece isso no yoga de rua. Estou querendo aprender com as situações. Então aqui vão algumas considerações:

1) algumas palavras parecem "acender" o furor fanático na pessoa. No caso, o texto em questão começava com a seguinte frase: "O mandamento bíblico “não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão” e a denúncia de Cristo a vã repetição podem ser interpretadas de diversas maneiras."

Apesar do autor começar já convidando para as "diversas maneiras", nosso companheiro só conseguia ler "o mandamento bíblico". Isso parecia "nublar" a sua mente. Então fazer menção a textos bíblicos em nossos estudos é correr o risco de pisar num verdadeiro "campo minado".

2) ele não sabia o significado da expressão "em vão". Ele disse: "vão significa repetição, não é?" Eu expliquei que vão significa "sem propósito", "à toa"... Eu quis explicar que repetir o nome com o propósito espiritual poderia não ser "em vão". Mas ele parece não ter entendido. Ou seja, sua mente parecia estar "ligada no modo fanático" e ele não conseguia pensar "fora da caixa".

3) Ao que parece, o discurso fanático se instala a partir de certa "maneira de interpretar" das lideranças religiosas e as pessoas repetem e repetem sem refletir a respeito do próprio texto. Nem a literalidade da "palavra" é respeitada, uma vez que se abre mão da "palavra" e se adota uma interpretação particular das lideranças, mesmo em contradição com a "palavra". 

4) por diversas vezes nós convidamos para a "diversidade", lembramos que há culturas que não (re)conhecem a Bíblia hebraica, e convidamos a uma prática que ele poderia seguir ou não, mas que poderia trazer benefícios se fosse praticada. Acalmar a mente nas tempestades, retomar a conexão com Deus,etc... ele pareceu ouvir... mas em seguida retomou a "metralhadora" de dúvidas e medo de estar "aborrecendo a Deus".

5) Um dos participantes levou a ele a seguinte pergunta: "quando você faz o Om, você sente que está aborrecendo a Deus?" Nessa hora ele parou para pensar. Não respondeu. E aí lembramos a importância do "sentir", da "experiencia pessoal".

6) Uma característica do fanatismo é a fuga do proprio sentimento. Isso parece ter relação com o fato de que a pregação do tipo fanático sempre reprime o sentir humano como fonte do pecado.

7) Ao final da conversa levamos a seguinte pergunta: "como é que a gente pode se entender aqui?". Nosso companheiro respondeu: "ouvindo a consciencia. Minha consciencia está dizendo que eu deveria escutar mais e falar menos." Ficamos espantados ao ouvir isso! Ele mesmo reconhecendo seu exagero. "Eu estou falando muito e ouvindo pouco" E citou a Bíblia: "falar é prata e ouvir é ouro". E perguntamos: "onde está sua consciencia?" "Aqui - apontou para a cabeça - não está no meu coração porque o coração é fonte de erros." E perguntamos: "E você consegue ouvir sua consciência?" E ele respondeu: "a consciência é Deus dentro de mim. Sempre sabe a verdade". E assim ficamos um pouco em silêncio. Depois de disparar sua metralhadora de verbalidades ele expressa uma dos principais verdades do yoga: "a Unidade entre Deus e a interioridade humana". E admite seu proprio erro de ter ficado falando muito. Encerramos o estudo. No entanto, logo em seguida, recomeçou a falar, e a citar a Bíblia, etc.

8) Depois de tudo isso, e do cansaço que a conversa toda nos causou, fico me perguntando se não seria mais produtivo cortar logo de início quando a pessoa entra do "discurso da ideologia fanática bíblica" dizendo assim: "olha, aqui a gente vem aprender com os mestres do Yoga. É diferente do que os pastores que você ouviu na igreja. Se você quiser o saber dos pastores, vai lá. Se quiser ficar aqui, aproveita para ouvir o que os mestres do yoga têm a dizer." E assim tentar evitar falar tantos verbos em vão.

9) A mente fanática para ser um "tipo de mente" se podemos dizer assim, que o sujeito entra em determinado momento, como que numa frequencia de radio. Sabemos que a mente oscila em diferentes níveis, mais ou menos concentrada, amorosa, alegre, triste, raivosa. Podemos usar várias classificações. E aqui parece haver um certo gatilho que põe o sujeito num complexo intelectual-fanático, e costuma demorar-se um tempo ali, até que possa sair e respirar novamente. A pessoa consegue ter conversas inteligentes, consegue ter insights valiosos, então, subitamente entram as nuvens do fanatismo e ela vira um "repetidor" daquela ideologia. Ao que parece o fanatismo é do tipo intelectual, com raciocínios "lógicos", precisos, uma citação que prova o argumento, num sistema racional lógico fechado em si mesmo. Esse tipo de mente deve existir em todos os humanos, mesmo os que não são dominados pelas malhas da patologia religiosa, mas de todos os "teimosos" e "donos da verdade".

10) Estou refletindo sobre a importância do estudo no caminho do yoga. Porque ali no yoga de rua enquanto fazemos o trabalho corporal, as meditações, parece que tudo vai bem. Os alunos saem com a sensação de paz, os corpos vão respondendo ao longo do tempo, percebemos conquistas. E vamos também estudando, e o pessoal começa a falar sobre o yoga, de como traz resultados práticos, de como está mudando a vida deles, estão mais calmos, etc. E aí, parece que "estamos abafando" e de repente, um conversa dessas... parece que "desabamos". Então sinto que o estudo é importante para haver uma trabalho integrador do processo. O corpo vai se abrindo. A mente se expandindo em diversos aspectos. Mas há terrenos ainda nebulosos... e parece que em níveis muito básicos, por exemplo, a capacidade de interpretação de texto. De ler a frase e entender o que está sendo dito. Uma questão que não é típica do yoga mas do "analfabetismo funcional", uma capacidade da potência humana do pensamento, da reflexão. E fico me perguntando: uma vez que o yoga visa elevar as potências do humano ao seu grau máximo, se não temos um trabalho "básico" a fazer aqui na nossa dedicação ao processo do grupo.

11) A pessoa transita bem em diversas situações da vida enquanto não "aciona" a "mente fanática". Ela toma café da manhã com os espíritas, recebe passe, faz oração e respeita as orações católicas, pratica yoga, repete o Om... mas se entra no terreno do debate intelectual... sente-se culpada por tudo isso. É como uma segunda personalidade, que renega a primeira. Mas que passa, assim como todo estado mental.

11) Na condução de um grupo de estudo, saber interromper as verborragias pessoais, convidar a um silêncio coletivo, parar um pouco, se escutar mais.

12) Reconhecer a limitação da discussão intelectual, dos argumentos e contra-argumentos no campo do convencimento... o estudo do yoga visa despertar sementes num nível mais profundo que o intelectual. No entanto, não desprezar a conversa e a possibilidade de, a partir da potência do pensamento, motivar a vontade e o sentir, e tangenciar, nesse diálogo, a consciencia observadora que a tudo assiste impassível.

- Texto e vivência em construção - 


domingo, 8 de outubro de 2017

Aprendizados da paternidade


Queridos, depois de quase 1 ano e meio como pai, aqui vai um primeiro texto.
Alguns me perguntam: “e aí, muitos aprendizados?”
E, no geral, não dá para explicar muito e nem sempre me vem à mente tantos dos aprendizados. Nem sempre dá tempo de conversar.
Então resolvi escrever.
Gabi e eu vamos começar a fazer um movimento aqui de partilhar essas experiências e abrir conversas para trocarmos mais.

Leiam com amor. Porque essas experiências, e reflexões sobre as experiências, nasceram num processo visceral de muito amor, a partir de um enorme encantamento pela graça divina em forma humana e um desejo de que as crianças possam estar cercadas do mesmo nível de pureza que elas trazem ao mundo consigo.
Um amor não só pela minha filha, mas por todas as crianças.
Um amor pelo ser humano.

É difícil resumir em poucas palavras, mas creio que posso dizer assim:
a criança vem ao mundo tão pura (ou seja, tão natural, tão aberta às experiências e descobertas, tão confiante em tudo e todos, tão sem traumas) e entra em relação com adultos tão impuros (ou seja, que perderam a espontaneidade, estão desconectados da natureza, de si mesmos, tão desconfiados e medrosos, tão cheios de marcas de dor e de compulsões) que o grande aprendizado da educação é:

aproveite esse serzinho aí para você se recentrar em si mesmo, conectar-se, começar a estranhar a loucura do mundo social, a insanidade mesmo dos adultos, e aproveite para se redescobrir.

Então, olhando para mim mesmo, para minha relação com esse serzinho de luz que veio morar aqui em casa, ao mesmo tempo olhando para as relações dos adultos com suas crianças nas pracinhas, parques e escolas… não é difícil tirar algumas lições, estar atento aos perigos da desconexão, do desperdício da oportunidade e da cotidiana agressão que fazemos às crianças.

Claro, é dessas agressões que vamos tornando-as adultas como nós mesmos, ao invés de nos convertermos em crianças como elas.

As pessoas falam muito de amor. Mas falam pouco das relações. E há sim um sentimento transbordante de amor pulsando em cada pai e cada mãe, que os faz nunca mais dormirem sem estar atentos ao sonzinho vindo da caminha ao lado… mas quando olhamos as relações, aí que nos pegamos em desconexão total… amamos e odiamos… nos descontrolamos porque queremos controlar absurdamente o outro… na hora mesmo da relação, descobrimos em nós, muitas marcas, emoções estagnadas, condicionamentos que trazemos mais profundamente e… é na relação que nos pegamos contradizendo todo o sentimento de amor. E passamos a cometer, sem perceber, uma série de agressões à infância.

Então esses aprendizados da paternidade/maternidade têm a ver com um processo longo e contínuo de autoconhecimento, coragem para jogar luz nas próprias sombras e o desafio de se transformar.

Agradeço muito os grandes aprendizados que puder ter antes de nossa filha nascer, nas rodas de conversa com as pessoas que estão vivendo esse processo que está sendo chamado Educação Viva e Consciente, em especial Ana Thomaz e Ivana Jauregui. Então muito do que vou falar aqui vem sendo dito por essas pessoas que passei a admirar por me parecerem muito coerentes e autênticas em suas relações com as crianças (e, daí, com adultos também).

Verdade. Verdade. Verdade. Essa parece ser uma palavra chave aqui, para dar conta do processo de construção da autenticidade. Adultos autênticos, crianças autênticas. E como elas são autenticamente puras… possamos assim preservar essa pureza por mais tempo.

Então, aqui estamos Gabi e eu produzindo uma lista, umas dicas por temas que são muito comuns nessa relação adulto-criança. Que possa servir como termômetro, sinais de alerta da desconexão.

  • Jogos de poder/chantagens/ameaças: aparecem em frases como “se você fizer isso, eu vou te levar pra casa”, “se você não emprestar isso para ele, ele não vai te emprestar também” e no geral, as ameaças não são cumpridas, o que é, na verdade, uma mentira. Nós, aqui em casa, estamos optando por uma relação sem chantagens, em que quando tenho que dizer não, eu digo não. E a criança respeita porque confia em mim, na minha autoridade, porque não há histórico de mentiras e negociações com chantagens. Não preciso entrar num jogo de poder, nem criar uma regra em que eu finja transferir a decisão para ela. De que adianta a criança fazer o que você quer por medo das consequências que você mesmo ameaça impor?

  • Comparações/competitividade: “tá vendo, João?, a Maria faz assim…” “A Joana já sabe falar tudo, enquanto o Paulo é muito devagar na fala”. Cada pessoa tem uma singularidade, seus pontos fortes e suas fraquezas. Ser comparado só ajuda a desenvolver inveja, não potencializa. Por trás das comparações passo a mensagem de que não aceito incondicionalmente meu filho, não respeito seus processos internos. Uma boa opção para quando uma criança vier te mostrar um feito dela é você olhar verdadeiramente e apoiá-la, em sua singularidade: “você fez bolas laranjas”, “você fez riscos coloridos”, “Você conseguiu subir no banco”, etc. Apoie, celebre, se surpreenda com ela, mas não a nomeie com adjetivos que irão limitar sua autenticidade.

  • Repressão das emoções: "engole o choro!" quantas vezes já ouvimos isso? ou, a criança grita de raiva ou mesmo de alegria, espantada com algo inteiramente novo. O adulto no geral fala: “não grita”. Mas ela está sendo espontânea, e o adulto, em geral, não sabe mais ser espontâneo com suas emoções. E, como o adulto tem ali a autoridade, ela começa a achar que precisa se reprimir mesmo. Procure ver o mundo com um olhar inaugural, assim como fazem os pequenos.

  • Minimização dos sentimentos: quando ela está chorando é comum um adulto dizer: “não foi nada”, ou “já passou”, mas na verdade a criança está sentindo algo, e ainda não passou. Se você tem real empatia talvez você diga: “tá doendo é? diz onde dói.” ou “hum… machucou? tá doendo?” Os sentimentos precisam de acolhimento, não de repressão. Adultos que acolhem seus próprios sentimento vão ter mais facilidade aqui. Mas em geral, a inabilidade em lidar com a dor faz com que os adultos queiram que a criança não chore quando se machuca. Ou se apressem em consolar: “vai passar, vai passar.”

  • Exposição dos sentimentos da criança: isso é muito comum e passa mesmo despercebido, o que mostra como somos insensíveis fazendo com elas o que não admitiríamos que fizessem conosco… “ah, que lindo, ela ficou com ciúme!”, “olhem, ficou com vergonha”.

  • Domesticação/moralização: as crianças são pessoas cheias de potência, intensidade, mas os adultos parecem querê-las domesticadas, num moralismo sem sentido e sem coerência. “empresta, filho. Deixa ele brincar também”, “você já brincou, agora é a vez dele”. Quando a criança está absorta no que faz, claramente não quer emprestar e está num movimento de defesa do seu espaço. E essa exigência de emprestar, dividir traz muita incoerência e desconexão. A criança sente algo como: “estou envolvida e debruçada na exploração desse brinquedo, mas aparece um adulto e me pede que eu interrompa este processo e entregue o brinquedo para outra criança (pois assim ele será bem visto pelos outros adultos)” A criança chora e não quer interromper o seu processo, mas com a repetição desse pedido, ela vai aprendendo a não escutar os seus desejos e cumprir ordens sorrindo”. O mesmo vale para quando os adultos querem resolver os conflitos obrigando que a criança peça desculpas para a outra. “pede desculpas”, “dá um beijnho e um abraço”. Pura convenção sem sentimento real. O que estão ensinando assim? A viver de aparência, a mentir sobre seus sentimentos até que não consigam mais escutá-los. Coisa que a maioria dos adultos faz bem.

  • Exigências e desqualificação: “você já não é mais um bebê”. Temos buscado estar atentos ao tempo, ao desenvolvimento, aos sentimentos. Em geral, quando exigimos mais do que a criança pode dar, isso só tende a trazer frustração, sentimento de rejeição, de inadaptação às expectativas dos pais. Se a criança mais velha está chorando como um bebê, talvez seja mesmo um momento emocional de regressão, numa busca daquele acolhimento perdido, daquele carinho que ela vê as crianças menores receberem. E isso segue vida à fora: já não é mais criança… já não é mais um adolescente… já não é mais um jovenzinho… até que, quem sabe um dia, tarde demais, quando se arrepender da vida de mentiras que teve outra Senhora lhe dirá: “você já não está mais vivo”.

  • Consumismo: excesso de brinquedos, em especial brinquedos com muitas cores fortes,de plástico, pouco naturais ou eletrônicos… nós temos preferido que as crianças inventem seus brinquedos, usem os brinquedos umas das outras,  interajam com a natureza, ela é abundante em brinquedos que as crianças podem explorar e reinventar. Quando as crianças levam muitos brinquedos para as pracinhas, por exemplo, notamos que os choros são mais recorrentes no local. Pracinha é lugar de criança brincar, elas exploram tudo que há por lá, inclusive os brinquedos que as outras crianças levam, mas aí entram num terreno que envolvem as “posses” e os adultos responsáveis não sabem como lidar e vão do extremo de não querer emprestar, porque foi caro e pode estragar ou forçam a criança a emprestar por uma convenção social do que é bem visto pelos outros adultos da pracinha. O resultado é choro na certa. Além disso, brinquedo comprado não se deixa explorar, reinventar, se desfazer e refazer, e essa é a natureza da criança, ela está descobrindo o mundo, precisa mergulhar nele. Se desmontar brinquedo comprado, aparece adulto e fala não.

  • A questão da propriedade privada: “é dele, filho, respeita”, “dá o brinquedo para ele”. Nós optamos por uma relação com os objetos em que não se define a propriedade, mas o respeito por quem está brincando no momento. Então evitamos que a criança aja no impulso de tomar o objeto do outro e, ao mesmo tempo respeitamos o movimento de uma criança defender o objeto com que está brincando quando a outra se aproxima. Dizemos assim: “está com ele, agora”, independente de quem seja o “dono”. Depois de brincar o quanto quiser com o objeto, a criança espontaneamente dará para o outro ou abandonará o brinquedo, ou seja, ela entrega porque verdadeiramente quer dar e, não por uma cobrança dos adultos, algo que é imposto de fora para dentro, hierarquicamente.

  • Desqualificação: “você não sabe isso”, é uma frase normalmente que nasce do medo do adulto, ou da impaciência… outras parecidas: “você não consegue”, “você não é forte pra isso”, "vai cair", "vai se machucar"...

  • Medo: o limite da criança não deve ser o limite do medo do adulto. Mas o limite da sua autorresponsabilidade em construção. Cabe ao adulto zelar pela segurança da criança, mas precisa estar muito atento às habilidades que a criança já desenvolveu e estar atento aos seus próprios medos, cuidando para que a criança possa se desenvolver sem os mesmos medos dos adultos.

  • Rotulações: a mãe com medo do filho machucar a outra criança, o filho ainda está no colo e a mãe vê o menino se agitar para tocar, interagir com a outra criança: "opa, cuidado, você é estabanado, é um ogro, você não sabe controlar sua força..." e por aí vai. Quando a criança cresce mais: "ai, como você é chato!"

  • Importância da clareza: é importante estar claro o que pode e o que não pode, quais os limites, o que o adulto vai deixar e o que não vai deixar de maneira nenhuma… é realmente estranho o jogo de barganha e insistência que as crianças fazem com os adultos que por sua vez vão cedendo, porque no fundo não sabem o que querem, ou o que é importante de verdade.

  • Assepsia, o exagero da limpeza (medo da doença): “não põe a mão na areia”, “não coloca o graveto na boca”, então por que o adulto levou a criança para um lugar de natureza? A lógica da assepsia é uma desconexão total com a nossa própria natureza. Somos seres naturais, desde do início dos tempos co-evoluimos com toda natureza, nosso corpo é adaptado e perfeito para interagir com ela. Quando não estamos nesta relação, adoecemos. Achar que o melhor para as crianças é ficar num local completamente asséptico é uma grande inversão de valores, sintoma de uma sociedade desconectada com sua própria essência. Coloquemos nossas crianças para brincar com a terra, poças, gravetos, folhas, minhocas... sem medo, mas com zelo e afeto.

  • Elogios e recompensas: “muito bem!”, “ai, que lindo!”, por melhor que seja a intenção isso ajuda a criança a fazer as coisas com o interesse de agradar o adulto e começa a ir se desconectando da real fruição autentica da atividade. Quando uma criança faz um desenho e vem te mostrar e você traz adjetivos como lindo, bonito,... a criança passa a sempre querer fazer desenhos que ganhem os seus elogios, ou seja, repetir e procurar os desenhos que esteticamente a fazem ganhar mais atenção e aval dos adultos; perdendo a autenticidade e criatividade de produzir algo inédito a cada instante, independente da estética ou aprovação. Imagine ainda, se você faz esse tipo de elogio na frente de outras crianças (por exemplo, numa escola), rapidamente, as outras crianças também querem receber o mesmo elogio e começam a copiar o desenho que ganhou atenção. Resultado: despotencialização em massa. Se a criança não consegue fazer os desenhos que ganharam elogios, aos poucos, começa a se sentir inferior. 

  • Atitudes diretivas: “faz isso”, “vamos ali”, “olha aqui isso” como se a criança precisasse de um guia para sentir, experimentar o mundo. Muito pelo contrário, se o adulto observar a criança em silêncio vai perceber, através dela, como ele mesmo pode perceber e interagir com as coisas de uma forma nova, original. Nessa repetição de intervenções, aos poucos, a criança vai aprendendo a olhar para o outro (p/ fora) para saber o que ela deve fazer, e vai perdendo a habilidade de olhar pra si mesma (p/ dentro) e sentir o que o seu Ser quer naquele instante. Afinal, sempre intervieram nos processos dela e pediram que ela fizesse coisas que agradasse aos adultos...“bate palminha”, “sorria”, “canta parabéns”.

  • Querer ensinar como faz: calma! O aprendizado tem seu tempo. Não tire da criança a chance de ter o próprio insight. E, ademais, quem disse que o seu jeito é o único jeito de fazer as coisas? Lembra como as crianças se divertem com os embrulhos dos presentes? Um brinquedo de montar não necessariamente precisa ser montado, pode virar um foguete espacial. Espere, silencie e observe a criação da criança.

  • Paixão autêntica: se um adulto tem paixão por algo, que exerça sua paixão próximo da criança, isso é um contágio altamente positivo. As crianças percebem com nitidez quando um adulto está querendo entretê-las ou quando está realmente interessado no que está fazendo. Sua paixão produz uma aura que contagia as crianças. Elas podem se interessar pelo que ele está fazendo e, sobretudo, aprendem a continuar seguindo seus próprios corações.

  • Pressões/conveniências sociais: estar atento ao fato de que a maioria dos impulsos dos adultos tem a ver com o que os outros adultos em volta podem pensar, julgar. Muitas vezes, agimos no impulso de fazer uma “justiça” esperada pelo que eu acho que o outro acha que é certo.

  • Vergonha: a única coisa que deveríamos ter vergonha é de nos envergonharmos. Porque a opinião/o julgamento do outro é importante para mim? Eu não tenho certeza do que eu acredito, desejo, sinto?

Relacionar-se de maneira viva e consciente pode ser uma chave para o autoconhecimento e um caminho de autenticidade.

Esses são alguns dos aprendizados… um processo contínuo. A gente tem muito que conversar.

Esse texto é só pre-texto para uma conversa mais franca, para uma aventura de auto-descobrimento maior.

Estamos sentindo vontade de conversar mais, porque nos dói ver as crianças, tão puras, tão massacradas por tantos estímulos, direcionamentos, faz isso, faz aquilo, não, não, não… num mundo que, com certeza, não se adapta para recebê-las, adultos que estão sofrendo e não sabem o que fazer com elas.

Li uma frase da Ivana no livro dela sobre a Escola Inkiri que dizia assim: "Uma criança não tem que aprender a defender-se ou ser forte neste mundo. O MUNDO TEM QUE APRENDER A VIVER EM PAZ E AMOR."


segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Não quero dormir, Mamãe.


Ma!...
Ma!...
Ma Ma...
Mamãe!
Me deixa ficar aqui
no seu colo
Não quero dormir
Não quero ir
Me deixa ficar aqui
Ouvindo suas canções
De amor e mistérios
Porque eu sei
Eu sei que se eu dormir
Vou esquecer
Vou esquecer que você está aqui
E que cada partezinha de mim
É tua, mamãe
Eu sou todo feito de você
Sinto você assim na pele de fora
E na pele de dentro
E quando respiro o ar
Sinto o geladinho aqui dentro
E sei que é você
E que o proprio ar também é você
E olho toda a luz
E tudo isso é tão bonito
Mamãe
Não me deixa dormir
Pra que eu possa não esquecer
De você, mamãe
Porque sei que se eu esquecer
Vou sentir medo de novo
E o sono é traiçoeiro, mãe
E eu vou ficar assim,
perdido de novo
Sem saber que somos um
Mamãe
Mamãe
Mamãe Natureza
Me ensina a ficar acordado
O tempo todo admirado
De toda essa grandeza
De toda essa pureza.
Mamãe Natureza.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Um silêncio impressionante

Hoje começamos nossa prática no local de costume, debaixo da árvore, no Aterro do Flamengo, em frente a praia, diante da pedra do Pão de Açúcar. Ali, vento frio e sol quente, fizemos o nosso círculo de esteiras e cangas e fomos nos sentando, uns na sombra outros sob o sol.

Sentados em círculo ficamos um pouco em silêncio. Um silêncio bom, calmo, temperado com a expectativa de uma aula que estava por começar.

Então falamos nossos nomes na roda: André, Luciana, Fernanda, Dona Elizabeth (querida, de volta depois de um tempo distante), Emerson, Rodrigo, Gezilda, Daniela, Del, Ana, Alessandro, Chantal, Ana (que também canta no coral foi pela primeira vez), Ronaldo, Claudio, Adalto, Donilson, Alexandre compunham a roda e depois chegou a Fátima e no finzinho o Aílton e a Maria do Carmo que ainda conseguiram participar da roda final do estudo e do almoço que foi preparado pela Hanna e o Marcos. Outras duas pessoas passavam na hora do almoço e se alimentaram também, mas não registramos seus nomes. Quem sabe retornam, mais cedo, numa próxima vez?

Ali na roda, comentamos sobre as qualidades da mente, tal como apresentadas no yoga sutra de Patanjali. Resumindo o estudo da semana anterior, vimos que a mente pode se apresentar em um desses cinco estados:
1) ksipta, que é a mente agitada, semelhante a um macaco bêbado, que não tem direção alguma, cada hora um pensamento surge e é subitamente substituído por outro;
2) mudha que é o estado da mente letárgica, como um búfalo atolado na lama, pesada, em torpor, que é a mente de quando a pessoa passa por uma grande frustração, decepção;
3) viksipta, que é a mente mais comum: encontra um foco, mas não tem continuidade, caminha entre a fé e a dúvida;
4) ekagrata, que é quando a mente acha um ponto e mantem o foco; é onde começa o trabalho do yoga (e sugerimos exercitar a observação do proprio coração, ou do ponto entre as sobrancelhas) e, por fim, o objetivo de nossa pratica:
5) nirodha, que é a total absorção, onde não há diferença entre observador e observado.

Sugerimos alguns mantras que podem acompanhar a respiração, recitar o nome de alguma divindade ou mestre: Buda, Jesus Cristo, por exemplo, ou palavras positivas como Paz, e lembramos das quatro palavras usadas pelo prof Hermógenes: Entrego, Confio, Aceito e Agradeço.

Depois dessa breve explanação e integração do grupo, passamos à condução da professora Fernanda. Ela aproveitou e iniciou respirando e fazendo mudras relativos a essas quatro palavras do prof Hermógenes. As mãos estendidas a frente, unidas pelos dedos mínimos, com ambas as palmas para cima, num gesto de entrega (Entrego), os dedos entrelaçados e as palmas de encontro ao coração (Confio), uma palma para cima, em concha, à altura da cintura, e a outra palma também em concha sobre a primeira, fazendo uma caixinha, como que cuidando do presente recebido (Aceito) e as palmas unidas em prece junto ao peito (Agradeço).

A condução da Fernanda é sempre muito boa. Ela propõe exercícios e usa um tom de voz que ajuda a ativar a energia do corpo, leva a turma a um estado de ânimo mais ativo, de auto estima, de confiança e vontade de viver, ao mesmo tempo que uma calma e equilíbrio interior, um estado de mais espiritualização de cada um. Uma aula muito bem equilibrada, uma presença que irradia um elevar de ânimo, um cuidado acolhedor, um convite a paz consigo mesmo.

Ela nos conta assim: "não projeto a aula, já a partir do café [onde atua como voluntária] vou vendo os alunos e procurando sentir, através de uma palavra ou outra, o que seria bom para levar para a aula. E simplesmente flui. Ao sabor do vento suave  nos tocando." Segundo ela, "aos poucos,  vou soltando os nós, as tensões, que acumulamos a partir do pescoço, até a ponta dos pés. E preparando o corpo.
Entrei nos asanas calmamente,  trazendo baddha konasana (borboleta) ativando o chacra base, navasana (postura do navio) ajuda a aliviar o estresse, vrksasana (árvore) melhorando o equilíbrio e despertando as qualidades ("tirando a banalidade da postura"e focando qualidades). Passando sempre pela virabhadrasana (guerreiros) despertando a coragem e determinação de metas, com cuidado especial com a coluna. Fortalecendo com adho mukha (postura do cachorro), trazendo a força, firmeza e suavidade. Tadasana (montanha), inspirada no cenário (Pão de Açúcar), com a imaginação de ser nosso próprio corpo, e me deixo ir..."

E agradece: "Todas as segundas que estou junto a vocês, meu dia passa muito leve! Me dá prazer de estar com os alunos e ouvi los..."

Saímos do relaxamento, sentamos em fizemos o mantra OM, e o mantra da paz (OM Shanti). Levando a testa na direção das mãos e do coração... a professora agradeceu a presença e a confiança de todos. Namastê.

Então entoamos baixinho o mantra Lokah Samasta Sukhino Bhavantu ("Que todos os seres sejam felizes"), na melodia que aprendemos na aula anterior.

E depois o silêncio...

Um momento espontaneo de meditação silenciosa.

"Um silêncio impressionante!" nos disse Chantal, uma participante que foi pela primeira vez e há alguns anos vem praticando yoga.

Então, como a professora Ana trouxe um texto para o estudo, nos sentamos mais próximos para a leitura. A transcrição da palestra do Swami Madhurananda, "Efeitos da prática do yoga na personalidade".

Uma reflexão muito clara que trouxe mais consciencia do caminho que estamos trilhando ao praticar yoga. Nosso grupinho, ali, sob o sol do aterro, em roda, refletindo e se aprofundando junto. Quais os efeitos do yoga? O que estamos buscando aqui?

O autor começa definindo o que é uma pessoa. E parte do ponto de vista da filosofia Vedanta, onde "(...) o “ser humano” constitui-se do “Ser”, que é algo imaterial, e do “humano”, que é seu aspecto material."

Então começa a definir a parte material do humano. Assim como a água que se apresenta em seu estado sólido, líquido e gasoso, sem jamais deixar de ser H2O, a pessoa humana igualmente irá se apresentar em diferentes graus de densidade e sutilidade. Matéria e energia em diferentes graus de organização interna. E fala de cinco koshas (palavra em sânscrito que quer dizer invólucro, envoltura). Em cada pessoa são cinco koshas que recobrem, envolvem, o Ser: o corpo físico, a energia vital, também conhecida como prana; a mente; o intelecto, ou seja, um nível mais elevado que é capaz de discernir e discriminar e, em quinto, a mais sutil das envolturas, caracterizada pelo estado de bem aventurança, o samadhi.

Entendendo o ser humano como constituído, em seu aspecto material, pelos cinco koshas, o swami aponta o caminho para estudarmos os efeitos do Yoga na personalidade e em pensar numa prática que atua num sentido de integração, curando a personalidade fragmentada.

"(...) quando falamos dos efeitos da Yoga na personalidade, entendemos os resultados que a prática do Yoga, como um sistema integrado, constituído de diferentes passos, produz em cada um desses cinco níveis. Isto é algo muito importante de se identificar: o que buscamos é obter uma personalidade “integrada”, por isso falamos de um sistema de Yoga integrado, que atua em toda a nossa personalidade e não somente em uma parte dela. Se trabalharmos apenas um aspecto de nossa personalidade, ou seja, um ou dois desses koshas ou invólucros, desenvolveremos uma personalidade fragmentada, dividida, compartimentada; uma característica assustadora no mundo atual.

O que queremos dizer com isso? Podemos praticar algum tipo de Yoga, ou alguns passos do Yoga, que somente promovam a saúde física ou nos ajudem a regular o prana. Mas na vida, quando nos deparamos com sérias dificuldades, e ninguém pode escapar disso, talvez não sejamos capazes de solucionar o problema apresentado, isso porque não dedicamos algum tempo de nossa vida para desenvolver a capacidade de discernir entre o que realmente tem valor e o que não serve para nada. Com isso, as questões essenciais da vida são deixadas totalmente de lado.

Ou pode acontecer o contrário: praticamos algum tipo de Yoga, ou alguns passos do Yoga, através do qual conseguimos desenvolver nossa capacidade de discernimento e alcançamos um nível muito elevado no qual compreendemos muito claramente o que é bom e o que é mau em todos os campos da vida. Mas na hora de aplicar este conhecimento, no momento de “colocar mãos à obra”, como se costuma dizer, não temos nem o vigor, nem a inteireza necessários para fazer o que sabemos que é bom; assim, acabamos levando uma vida contraditória, sempre em conflito entre o que pensamos e o que fazemos, isso porque não nos dedicamos ao desenvolvimento dos outros níveis de nossa personalidade. Esse é um exemplo de personalidade fragmentada. Para alguém assim, é muito difícil, quase impossível, alcançar a união ou a transcendência com sua verdadeira natureza, o Ser ou Atman do qual falamos no começo.

Nossa meta, então, é desenvolver uma personalidade “integrada” por meio de um sistema de Yoga integrado."

Para chegar a esse objetivo de integração, é preciso conhecer o fator aglutinador dos diferentes koshas. Assim como o cimento é o fator aglutinador dos tijolos na construção civil, assim como os ovos são elementos que ajudam a aglutinar os demais ingredientes de um bolo, e bem como o fator gravitacional no centro da Terra ajuda a que os objetos permaneçam no solo (exemplo que nosso grupo em círculo entendeu muito bem)... há no ser humano um centro aglutinador, integrador das partes.

Quando afirmamos "eu sou" e me identifico com o mesmo eu em diferentes momentos da vida, em diferentes relações com diferentes pessoas. Quando sou capaz de perceber "meu corpo", "minha mente" e todos os demais koshas. "Quem atua por detrás, ou em um plano mais profundo, e que percebe tudo? Esse é o nosso centro, é o que mantém nossa personalidade integrada. Identificá-lo é o primeiro grande passo da Yoga. O segundo passo é tentar encontrar-se nesse “centro” a qualquer momento e sempre que se desejar. Em seguida, o ideal é poder permanecer sempre neste centro. Do ponto de vista da Vedanta, a prática do Yoga é essencial para se conseguir isto."

E assim chegamos a entender o sentido de união, do yoga. União que é o significado de yuj, a raiz sânscrita da palavra yoga. União de quê?  "Primeiro, a união de todas as partes de nossa personalidade para nos identificar com nosso verdadeiro Ser, o Atman, o que em nós não é matéria. Em seguida, ocorre a união desse Ser individual com o Ser Universal ou Ser Supremo. Aí, então, alcançamos a unidade com o Todo."

Em algum momento a nossa leitura foi interrompida, porque a Hanna e o Marcos estavam chegando com o almoço e precisavam de ajuda para carregar as bolsas do carro estacionado lá na praia do flamengo. Paramos. Um grupo foi até lá ajudar a carregar. A Del foi acompanhada, se não me engano, pelos generosos Ronaldo, Donilson e Alexandre. E o restante do grupo continuou atento à leitura que fazíamos com breves paradas para um pequeno resumo para manter atenção.

E dali em diante o swami se propõe a descrever um pouco a técnica do yoga. Para aprofundar ele indica a leitura do livro do Swami Vivekananda "Raja Yoga" e o capítulo 6 do Srimad Baghavad Gita.

A técnica do yoga se dá em 8 passos. Começa com yama e nyama, práticas de conduta sem as quais a prática por inclusive, diz ele, se tornar prejudicial e até mesmo, fatal. Em resumo, "yama, nos convida a não prejudicar nenhum ser vivo, a ser verdadeiros conosco mesmos e com os outros, a não nos apropriarmos dos bens alheios, não levar uma vida promíscua e não depender da generosidade e dos favores de ninguém. O segundo passo, niyama, nos ajuda a manter uma conduta equilibrada, já que nos propõe levar uma vida simples, dedicada ao estudo e aquisição de princípios elevados (que é o que estamos fazendo agora), manter um constante bom humor, ser asseados interna e externamente e, de alguma maneira, a nos relacionarmos com Deus.

Em terceiro, asana, posturas. Disciplinar e controlar o corpo, pois trabalhando com o que é visível vamos alcançando os níveis mais sutis, equilibrando a circulação das energias. Em quarto, pranayama, o controle da energia vital. Swami recomenda que se pratique com cuidado, sob a instrução apropriada. "O resultado para a personalidade é um equilíbrio emocional maior, algo tão necessário para nós latinos, sempre temperamentais, apaixonados, e sentimentais por natureza."

Os próximos passos atuam sobre os koshas, ou envolturas, que condicionam a mente. A tendência dos sentidos é fazer nos voltarmos para fora. Assim, com a visão, nos voltamos para o que tem forma, com a audição, acompanhamos os sons, etc. Controlar essa tendência e nos voltar para o interior é o quinto passo, chamado pratyahara. Em sexto, dharana, é quando focamos em um ponto fixo e tratamos de manter a atenção fixa neles. (Aqui lembramos do início da aula em que falávamos do estado mental chamado ekagrata e em seguida nirodha). E o swami recomenda, como exemplo, focarmos no ponto na região do coração ou entre as sobrancelhas e adverte que no coração é mais fácil e menos perigosa do que no espaço entre as sobrancelhas.

Aqui já estamos falando da esfera mais sutil da personalidade. E vemos que "a prática do Yoga gera uma grande força mental em nossa personalidade. Essa força mental exerce um importante papel na hora de enfrentar muitas situações, positivas ou negativas, da vida cotidiana sem que a personalidade seja afetada."

Para os dois passos seguintes, essas foram as palavras do swami:

"A seguir, vem a prática de dhyana ou meditação, que atua sobre a envoltura relacionada com o estado de bem-aventurança no homem. A verdadeira meditação produz um estado de intensa bem-aventurança em qualquer ser humano, e não uma simples alegria. 

Há milhares de livros sobre meditação, mas aqui só diremos que a meditação é a vibração de uma só onda mental de forma constante, sem que esta se altere por influência de outras ondas mentais. É o fluxo constante de um só pensamento, idéia ou conceito, sem nenhuma interrupção. Quando alguém medita realmente, consegue alcançar uma percepção completamente diferente das coisas, das pessoas e das situações. Alcança uma compreensão maior sobre qualquer tema e uma idéia clara a respeito de que direção tomar em cada atividade da vida. Como já dissemos antes, este é o portal que nos conecta com nosso Ser, o Atman

Finalmente, quando essa meditação se torna estável e a mente se une completamente ao seu objeto de meditação, quando a mente e seu objeto de meditação se tornam um, é alcançado o último passo, denominado samadhi, que nos conecta diretamente com nosso Ser ou Atman

Somente quando experimentamos a existência do Atman em nós é que encontramos nosso centro de gravidade espiritual, aquele que mantém a personalidade totalmente integrada.

Se durante doze segundos a mente puder se manter concentrada em um único objeto, teremos um dhárana. Doze dháranas constituem um dhyana e doze dhyanas constituem um samadhi. Ao alcançar este último passo, passamos a perceber nossa existência em Deus e a presença de Deus em tudo."

E assim, terminamos a leitura e abrimos o bate papo. 
Maria do Carmo, que chegou na hora do estudo foi a primeira a falar (como é costume observarmos... que não faz a prática e chega ao final, está sempre mais falante que o grupo). Ela nos contou de como é, de fato, difícil manter a mente tranquila diante das agitações da vida, especialmente quando a pessoa faz uso de drogas.
Ana também disse que, no geral, a vida na rua leva as pessoas a uma situação como a do macaco bêbado, sempre muito agitada, perambulando.
Aílton fez suas colocações e perguntas sobre o estudo anterior a respeito dos mudras... e a professora Ana aproveitou para lembrar que o estudo sobre mudras é uma das técnicas e hoje, estávamos podendo ter uma visão geral do sistema como um todo.
Rodrigo e Alessandro se mostraram muito atentos e também fizeram colocações na roda sobre a importância dessa metodologia integradora, uma vez que percebem nitidamente a realidade da fragmentação.
A professora Ana voltou a frisar que o método é integrador por dar conta de todos os koshas, e disse: se a pessoa trabalha só como uma ginástica, fica faltando o trabalho com a mente; por outro lado, as vezes a pessoa estuda muito, é muito intelectual, sabe muita coisa, mas não consegue nem se levantar com energia para fazer o que tem que ser feito.
Quando falamos sobre os asanas, Ana lembrou que essa é a parte visível do trabalho, mas que a pessoa pode praticar o tempo todo e quem estiver olhando não vai saber. Mostrou, sentando-se numa postura muito comum do dia a dia e disse: "eu posso sentar assim [com o rosto apoiado na mão], as pessoas vão olhar e não vão saber, mas eu posso estar praticando; a pessoa pode estar deitada, de olhos fechados, vão achar que ela está dormindo; ela até pode estar dormindo, mas também pode estar praticando."
E assim a conversa foi aguçando a vontade de todos do grupo se empenharem na prática constante que, segundo ela, é necessária para obter os benefícios do yoga.
Uma das metáforas que surgiu no grupo foi a do motorista que dorme no volante e acorda antes de bater o carro. Ou seja, mesmo depois de perceber que dormiu, voltar a praticar, porque a estrada ainda não chegou ao fim. Ana aproveitou para falar da inconsciencia total que entramos no sono, quando nos esquecemos de quem somos.
Aílton voltou a expressar sua admiração pelo yoga: "é um sistema antigo, não é mesmo? Quanto anos tem" E fomos comentando que apesar da sistematização por Patanjali ter cerca de 3000 anos, já antes os mestres transmitiam essa prática.
Ana, que estava vindo pela primeira vez mas que já estudou yoga em outras ocasiões, citou Hermogenes e Prabhupada, como pessoas de realização espiritual, assim como Madre Teresa, que ali é admirada por todos que geralmente almoçam na casa das Missionárias da Caridade, na Lapa. Lembramos que ela praticava a oração constante, dando um foco a sua mente, assim como fazem suas seguidoras.
E assim, fomos concluindo com as palavras do Aílton, tentando exprimir um sentimento de reverência, compreendendo que se trata de um conhecimento verdadeiramente profundo e transcendental, capaz de orientar a pessoa na jornada do Espírito. E nos integrar uns aos outros também, em grupo. E todos ficamos assim, silenciosos, calmos, contemplativos, agradecidos pelo momento.

Foi aí que nos preparamos para o almoço que já estava ali.
Moqueca capixaba de banana da terra.
Hanna, que é também professor de yoga no projeto e hoje aceitou servir na cozinha, comentou que quando se tornou vegetariana um dos seus principais desafios não era exatamente a falta de carne, mas a questão da memória afetiva... lembrar do seu pai na cozinha, preparando moqueca, bobó, comidas típicas de sua terra natal.
Então com muito carinho ela estava ali nos apresentando sua moqueca: banana da terra, coentro, tomate, cebola e urucum. Acompanhada abundantemente de farofa de cebola e arroz com leite de coco e salada. Servido ali mesmo, com as panelas, em potes reutilizáveis. Tudo com muita beleza. Nós seguramos os potes mas mãos, e juntos, conduzidos pela propria Hanna, entoamos o mantra OM, agradecidos por tanto amor. Quem quisesse ainda podia ir ao centro da roda repetir salada, arroz, farofa e acrescentar pimenta preparada pela propria cozinheira. Maravilhoso!

Maravilhoso! Tudo. Tudo. Tudo. Não é mesmo?

E depois de escrever essas muitas linhas, refletindo à noite sobre a beleza do dia e a maravilha desse encontro matinal e a possibilidade de vivermos tudo isso juntos, me emocionei. Por poder estar vivendo isso. A comunhão (koinonia, como disse um dos amigos) e a abertura dos corações para o conhecimento. Especialmente por ver o conhecimento fluindo sem obstáculos do coração da Existência aos corações dos praticantes. A integração do serviço amoroso e generoso da alimentação. E o silêncio... especialmente a comunhão do silêncio que acontece ali. E tudo o que fazemos, sem esforço, é praticar. O resto, é o que acontece.

E, assim, à noite, em casa, abri o livro que tenho lido e retomo a leitura:

"Certo pai tinha dois filhos. Para instrui-los no conhecimento de Brahman, enviou-os a um Acharya (preceptor). Depois de alguns anos retornaram à casa e saudaram a seu pai. Este estava ansioso por saber o que haviam aprendido acerca de Brahman; assim é que perguntou a seu filho mais velho: 'Filho querido, estudaste as Escrituras e filosofias; dize-me: com que se parece Brahman?' O filho mais velho procurou, então, descrever o Absoluto Brahman, citando várias passagens dos Vedas.

O pai guardou silêncio. Virando-se para seu filho mais novo, fez-lhe a mesma pergunta. Porém, este não respondeu com palavras; permaneceu imóvel e em comunhão silenciosa com Brahman. Então o pai exclamou: 'Filho querido, tu te aproximaste da realização de Brahman. Teu silêncio é uma resposta melhor que a recitação de uma centena de textos dos Vedas, porque Brahman é indescritível por palavras. É, em verdade, o Absoluto silêncio." (O Evangelho de Ramakrishna, p. 63,4)


domingo, 30 de abril de 2017

Na trilha do amor


Dádiva dos Céus
Te encontrar
Partilhar de Tua presença
A certeza de que agora
Meu caminho é o Teu caminho
Seguiremos juntos saboreando a grandeza desse encontro
Sob Teu silêncio me faço aprendiz
Sinto o Teu Ser
Não há mais nada a fazer
Apenas ser e sentir o Teu Ser
Nada a buscar... nenhuma técnica, nenhum controle, nenhum gerenciamento dos dias...
Apenas a simplicidade de esperar, receber, deixar vir, deixar que Tua presença se derrame como vinho em minha taça
Desfrutar o encontro
Estar aqui, com você, a cada momento.

Mas...
eis que, de repente,
Tu não estás mais aqui
Vejo-me só outra vez
E ainda que toda a sabedoria venha a meus ouvidos me dizer:
"ouça dentro, está dentro, em ti mesmo, sempre esteve, sempre foi um só, por que procurar fora?"
Meus ouvidos ouvem mas meu coração,
por demais humano,
ressente-se de Tua ausência e vê ressurgir toda dor, ansiedade, medo, fraqueza.
Eu já não conhecia a dor do abandono. Tu não existias para mim.
E agora meu coração ficou cego e não consigo mais desfrutar de nada em Tua ausência.
Por isso vim aqui.
Subi a montanha escarpada de minhas contradições.
E, sob a névoa de minha mente tumultuada,
Ergo, nessa hora, os braço ao alto:
Vem!
Só mais uma vez, eu te clamo!
Vem... me conta mais um pouco das Tuas doces histórias e deixe-me beber de Tua voz.
Vem... e deita-Te sobre a grama, e deixe-me acarinhar Teus lindos cabelos.
Vem... fiquemos em silêncio.
Já não posso viver sem Ti,
Já não há vida sem Tua presença
O oceano é um vasto deserto
A floresta está destruída
Todos estão mortos
Só há sombra e confusão e vejo por toda parte chamas e desolação.
Vem... e me responde, definitivamente:
Será o Amor uma dádiva ou uma maldição?
Por quanto tempo ainda caminharei só?
Quando tornarás em definitivo a cumprir a promessa
- Uma promessa que finjo que fizeste -
De estar sempre a meu lado?
Tu... existes de verdade?
Eu... quem sou?
Quem somos para além desse véu de sombras e agitação?
Acalma minha mente.
Receba meu coração.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Na trilha da devoção


Me leva.
Me leva, irmã divina.
Me leva até a altura onde alcançaste.
Me leva.
Que os raios de luz do teu olhar sejam a trilha de ascenção de minha meditação.
Me leva, irmã divina.
Que tua voz seja o eterno som, música das estrelas, zumbido de um pequenino inseto, som das águas... o cântico suave da natureza, a recordar minhas origens.
Me leva.
Que o teu alento seja o ar, suave e profundo, que me conduz mais e mais para dentro de mim mesmo.
Me leva, amiga, amada, para junto de meu peito.
Que teu coração transborde compaixão por tudo que não sei.
E que tuas águas refresquem, inundem e carreguem todo o meu passado de apego e dor.
Me leva, divina flor, divina lua, divina irmã.
Que teus braços dancem harmoniosamente irradiando a graça de tudo o que move: as folhas e ramagens do caminho, as nuvens, o regato, as aves e as ondas do mar. Que nossos braços sejam o proprio vento.
Me ensina, suave e silenciosa amiga, mestre dançarina.
Que teus pés, teus doces pés esvoaçantes, pisem nesse mundo no mesmo tempo que os meus para que você me conduza ao amor divino ainda nesta vida.
Me leva.
Me aceita nessa hora.
Me recebe em tua companhia neste sadhana divino, neste alegre jogo da verdade.
Me leva.

sábado, 18 de março de 2017

Agora na rua:
Menino de 5 anos com sua mãe. Ela diz:
- Vamos agora para casa fazer o seu trabalho. Vamos recortar as figuras...
- Ah, mãe.
- Filho, o que é mais importante brincar ou o trabalho?
- O trabalho , disse o menino chorando.
- Imagina se você chega na escola sem fazer o trabalho. Você vai ser o mico do ano! Todo mundo fez o trabalho menos você.
Isso pra mim é um escândalo mais sério que os dos políticos. Na verdade, creio que a raiz da nossa crise atual esteja aí. É o nascedouro. Pessoas dissociadas de seus sentidos de vida, de si mesmas, criadas neuroticamente para um mundo de cabeça para baixo. Gente!, a questão política mais profunda não é ser de qual partido nesse contexto polarizado, a verdadeira questão política é: como contruir um outro mundo possível com pessoas vivendo plenamente os propósitos de vida de suas almas. Como vamos proteger as crianças de suas famílias neuróticas e amedrontadas? Com tantas experiências de escola livre, tantas escolas com boa visão sobre a infância... ainda existem escolas que passam dever de casa e pais que matriculam seus filhos nelas e entram no jogo do dever, do medo, do que os outros vão pensar de mim, ao invés de cultivar o prazer, a confiança e a autenticidade. Tão novinho. O menino devia bater no meu joelho. Era um pingo de gente... sendo diminuído em seu ser nessa ideologia maluca que NENHUM pedagogo jamais ensinou.
Assim como os políticos não discutem uma reforma política que acabe por exemplo com seus salários, o que acabaria com o incentivo a entrar na política por interesse pessoal, da mesma maneira a sociedade, que padece gravemente do analfabetismo emocional, não consegue encarar o fato de que tem vergonha de dançar, que não troca afeto, que tem medo de amar, que vive um mal estar espiritual que lhe traz imenso vazio, que se vicia em bebidas alcoolicas e comida nada saudável, que abandonou seus sonhos há muito tempo e perdeu sua espontaneidade e alegria de viver, que abusa seu poder sádico sobre os mais fracos (especialmente as crianças) e que foge de tudo isso e mal consegue se olhar nos olhos no espelho e sorrir ou chorar, essa mesma sociedade não consegue ver nem sentir o mal que faz aos seus filhos transmitindo-lhes todo esse sofrimento.
Olhando assim, fica óbvio que a política hoje está tão enferma quanto as pessoas e que a discussão política está tão surda quanto a barulheira emocional mal-tratada de cada membro de nosso corpo social.
Como vamos fazer a reforma política sem os políticos? Como vamos mudar a relação com as crianças sem uma mudança emocional-espiritual dos pais?
Sim. Reafirmamos: Um outro mundo é possível.
E vai nascer a partir de dentro da gente.
Na verdade, já tem muita gente vivendo ele. Só não passa na mídia. Esses irão inspirar os demais.
Inspirem-nos Pestalozzi, Alexander Neill, Janusz Korczak, Rabindranath Tagore, Rudolf Steiner, Victor Frankl, Eurípedes Barsanulfo, Rolando Toro e tantos educadores que perceberam a causa profunda dessas crises, inspirem-nos a encontrar caminhos para nossas crianças.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Desejos para o Ano Novo.
Então começa o ano, agora que passou o Carnaval.
2017. E nesse domingo acordei e vim aqui te desejar coisas boas para esse novo ano.
Quais as coisas boas eu posso desejar?
E como eu posso traduzir em palavras?
Tem a ver com o caminho que estou trilhando e, de algum modo, quero partilhar com você, para que a gente possa caminhar junto.
Então o primeiro desejo é esse: que você caminhe. E caminhe junto. Tem uma estrada aqui à nossa frente. E eu não quero que você fique de fora dessa jornada. E também não quero ir sozinho. Por isso vem que estaremos ambos em boa companhia.
O segundo desejo é que você entenda que ninguém conduz a caminhada. Cada um faz suas escolhas e, como que num passe de mágica, na mais perfeita sincronicidade, a gente encontra harmonia nesse caminhar. As coisas dão certo porque eu estou cuidando de mim. E você está cuidando de você.
Para que isso funcione assim com tamanha fluidez desejo que você cuide dessa conexão interna. É você cuidando de você. Quando criança precisamos de Atenção, Acolhimento e Afeto. Agora que somos adultos não precisamos mais de nada. Já temos tudo. Já somos isso tudo e podemos oferecer. Então o terceiro desejo é que você se torne uma pessoa adulta. E tenha, por isso mesmo, como primeiro princípio: não reclamar de ninguém, nem de nada. Nem mesmo quando alguém do seu lado der crise de infantilidade e reclamar de você. Seu trabalho é olhar para dentro de si e cuidar de si, do que acontece em você.
E assim a gente continua na estrada. E o quarto desejo é que você abra as janelas da criatividade. Crie a sua própria vida, crie quem você é, crie assim o campo quântico em torno de você que manifestará o mundo que você deseja a sua volta, atraindo as pessoas e situações perfeitas para o seu desenvolvimento.
O quinto desejo é que você descubra alguém, um princípio, uma força, uma divindade, em quem você confie e então permaneça na confiança e olhe sorrindo para as desesperadas vozes de dúvida que surgem em você porque isso é um padrão muito antigo e a vida pede confiança.
O sexto desejo é que você busque inspiração em pessoas inspiradoras. E aprenda com elas que elas foram adultas e criaram sua própria realidade. E olhando para elas, que você encontre inspiração para o seu andar.
O sétimo desejo é que você pare, absolutamente pare de investir no que não serve mais. E pare inclusive de se contrapor a essas coisas porque a crítica é uma forma de investir inconscientemente. Então deixe para trás o mundo da velha política, dos cinismos das organizações, das articulações maquiavélicas do ambiente de trabalho, das brigas de família (que é a maior das infantilidades) e pare de criticar os outros, inclusive aqueles que estão por aí criticando tudo e não fazendo nada.
Pare. Esse é meu oitavo desejo. Que você pare e não faça nada. Respire um pouco. Aprenda a arte do não fazer. Deixar o celular, a tv, nem livro, nem internet, nem nada. Apenas você com você. Ócio, tédio mesmo. Um pouco dessa parada vai fazer germinar a sua transformação. Vão brotar ideias e ações mais autênticas.
Então o meu nono desejo é que quando a gente se encontrar a gente possa se olhar um pouquinho, sem dizer nada mesmo, apenas sentindo um ao outro. Os verdadeiros encontros não precisam de palavras. Então desejo que quando a gente se encontre, a gente sinta. Cada um sente em si, o que pode sentir do outro. E abertos, aceitando um ao outro, acontecerá o amor. Então desejo verdadeiramente que a gente se ame. E no amor, floresce a alegria de estar junto e daí vem o que há de melhor nos encontros.
E como décimo desejo, eu quero que você olhe as crianças, e sinta-as, e ame-as. E antes mesmo de tocá-las, falar-lhes, bater palminhas ou todas essas coisas do primeiro impulso... você perceba a divindade ali se manifestando na graça dos seus movimentos, na perfeição da sua anatomia, na pureza de sua expressão sem o autocontrole egoico do que os outros vão pensar... e trate de aprender com elas a desfazer as couraças que você lhe impôs pelo desejo de ser reconhecido e aceito e amado por uma sociedade de adultos infantis (portanto doentes). E então aprendendo com as crianças você vai poder falar com elas a partir de um lugar de verdade interior. E também assim vai olhar os animais e as plantas e sentir o mar, e o vento e tudo o que há.
Que você seja feliz nesse caminho. Desfrute. Eu estou aqui desfrutando de tudo isso e te convido a caminhar junto. Com amor.
Amor. Muito amor. Muito muito amor.
Andre Ahlaad