quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Perdoe-me ainda


Perdoe-me Raíssa
perdoe-me os desencontros
perdoe-nos.
Perdoe-me por um tempo
ainda
há tempo

Perdão
Raíssa linda
projeto infinito
de mulher, de família,
de acalantos e carinhos
Raíssa menina
minha
ainda
hei de abrigar-te
e servir-te, na taça mais rica
o melhor vinho do amor
que envelhece.
Serei teu
pai
irmão
amigo
amado
ainda.

Deixa então que passem
as ilusões amargas
a dor
a solidão
Que venham
as lágrimas
romper a secura

Confio-te à vida
porque seco
e se te sinto perto
quase refloresço

Perdoe-me os desencontros
perdoe-nos
ainda
mais uma vez
Ainda será tempo.

sábado, 10 de novembro de 2012

Esses momentos de Liberdade - com Virginia Woolf


O que é liberdade?

Infinitas discussões filosóficas e apreensões espirituais são possíveis.

Hoje, trago um breve trecho de nossa incrível romancista Virginia Woolf, de seu livro Mrs. Dalloway, para breves comentários.

Um dos personagens Peter Walsh, em suas andanças por Londres, quando se dá conta que quase ninguém sabe que ele está na cidade entra num estado de espírito de profunda liberdade:

"(...) uma irreprimível, uma esquisita alegria; como se, dentro do seu cérebro, uma estranha mão corresse cortinas, escancarasse janelas e portas, e ele, sem nada ter com isso, se visse à entrada de intermináveis avenidas, por onde poderia vagabundear, se lhe aprouvesse. Fazia anos que não se sentia tão jovem." V.Woolf, Mrs Dalloway, p.53-4

Liberdade aqui é essa abertura de andar sem caminhos fixos. Andar sem meta. Estar na vida sem uma meta predefinida. Esse estado raro de abertura à vida é liberdade. 

Mas vemos que isso é algo raro e muito difícil de se alcançar. No texto, Virginia fala quase que de uma intervenção no cérebro, uma mão que abrisse cortinas. Linda imagem!

E depois prossegue:

"Tinha escapado! estava completamente livre - como acontece em todos os despojamentos, quando o espírito, como uma chama desabrigada, inclina-se, curva-se e parece que já vai espraiar-se fora do seu âmbito. Há anos que não me sinto tão jovem! pensava Peter, deixando (apenas por algumas horas, naturalmente) de ser exatamente o que era, sentindo-se como um menino que corre porta afora e vê, enquanto vai fugindo, a sua velha ama a chamá-lo." V.Woolf, Mrs Dalloway, p.54

Há muito o que comentar aqui. 

Primeiro a relação de liberdade com despojamento do espírito.
Ou seja, o estado de liberdade precisa de um despojar-se, ou seja, um sair de si, um desistir de todos os objetivos e metas traçados pelo espírito. É uma atitude de entrega. Esse é, na verdade, o objetivo da vida dos yoguins (hindus) ou mesmo do homem do Tao (taoísmo), é um deixar que se faça a Outra vontade, que não a minha. Esse (des)controle é expresso na imagem da chama, que tende a se espalhar. Belíssima imagem.

Em segundo lugar, a relação com a juventude, que aparece nos dois trechos. O estado de liberdade é esse estado de jovialidade em que tudo é possivel, ou seja, estou aberto a todas as possibilidades que a vida traz. E eu deixo de ser quem eu sou, para ser um outro-eu, livre de mim mesmo.

Em terceiro lugar, os limites desse estado. Há o limite do tempo. Virgínia reconhece que isso se dá somente por algumas horas. Em alguns casos isso se dará por menos tempo ainda. Nos mais neuróticos isso se dá somente em alguns segundos, e ainda assim, com uma imensa sensação de culpa. 

Outro limite é visto na dimensão da liberdade em contraposição ao aprisionamento. É a 'liberdade de', diferente da 'liberdade para'. Psicologicamente, o estado de liberdade é tão intenso e assustador, que ele tende a se manifestar no confronto àqueles que nos aprisionam (no caso, a ama, em seus registros infantis).

Bom, ainda comentando nossa Virginia. Há de se ler e viajar com ela. Porque em sua obra percebemos que a verdadeira liberdade apreciada é a liberdade de pensamento. Liberdade de imaginar situações. Possibilidades de vidas paralelas. Tudo na vivência do pensamento, como nesse trecho entre Clarissa e Peter (seu amor de juventude com quem ela não casou):

"Leva-me contigo! pensou Clarissa num impulso, como se ele fosse partir imediatamente para uma longa viagem; e, no instante seguinte, foi como se tivessem passado os cinco atos de uma peça excitante e movimentada, nos quais ela tivesse vivido toda uma vida e fugido, vivido com Peter, e tudo agora estivesse terminado." Mrs Dalloway, p. 49.

O pensamento é como um macaquinho pulando de galho em galho, frase de Buda, que me foi lembrada pela professora Alice (quem me indicou o livro). Pois é, se assim for, ler Virginia é acompanhar uma macacada pela floresta. E muita ilusão, atrás de ilusão Ah, Virgínia, que dor! Se você meditasse, não teria produzido o que produziu (e talvez não teria cumprido sua tragédia).

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Goenka, como agir diante da morte de um ente querido?



Como é que um meditador pode enfrentar a dor quando perde alguém querido?

O meditador deve ser muito sábio e compreender a lei da natureza. Apesar de todos os vossos choros e rezas, não há possibilidade de trazer essa pessoa de volta. Tem que aceitar o fato de que essa pessoa se foi.
Compreendam que sempre que gerarem uma sensação de lamento e de infelicidade enquanto se lembram de alguém que faleceu, essa vibração vai alcançar essa pessoa onde quer que ela possa estar, e vai fazê-la infeliz. Ninguém quer tornar infeliz um ente próximo e querido que tenha falecido. Certamente iríamos gostar que essa pessoa estivesse feliz, em paz e liberta, apesar disso, enviamos-lhe vibrações que a vão fazer mais infeliz. Ao fazer isso, estão a prejudicar a pessoa que querem que seja feliz.
Um outro aspecto prejudicial é que, enquanto choram pelo ente próximo e querido que faleceu, estão a semear sementes de sankharas de sofrimento. Estão a sofrer, e a semente de sofrimento não irá trazer mais nada para o futuro além do sofrimento. A natureza não vai distinguir se estão a semear a semente devido a este ou aquele motivo lógico. Não, a semente é a do sofrimento, e não pode deixar de trazer consigo o sofrimento.
Afinal, o que é a semente? A semente gera e cria um padrão habitual da mente. E quando estão a sofrer mais, seja por que motivo for, estão a alimentar um padrão habitual da mente. Esse padrão habitual irá trazer mais sofrimento no futuro; por isso começaram a prejudicar-se e ao ente querido que se foi.
E o terceiro aspecto prejudicial é que essa sensação de sofrimento que estão a gerar através desse sankhara começa a impregnar a atmosfera à vossa volta. Todas as outras pessoas da família que vos rodeiam vão ficar deprimidas, porque vocês estão a gerar esse tipo de sensações. Começaram a prejudicar-se a si mesmos, aos que vivem à vossa volta, e também ao ente querido que faleceu. Essa vossa ação é prejudicial de três maneiras.
Se alguém trabalhar sabiamente e compreender a lei da natureza, quando se lembrar daquele que partiu, se surgir na sua mente mesmo que um leve lamento, irá acalmar-se imediatamente e começar a gerar vibrações de metta, de amor. “Possas ser feliz, onde quer que estejas. Possas ser feliz, possas estar cheio de paz, possas encontrar a libertação.” As vossas vibrações irão alcançar este ser, e ele ou ela sentir-se-á feliz. Essas vibrações são cheias de alegria, paz e harmonia. Nesta altura estão a gerar um sankhara de harmonia e paz. Essa semente irá trazer-vos frutos de paz, de harmonia e de alegria. E essas vibrações espalhar-se-ão na atmosfera e irão torná-la harmoniosa e cheia de paz. Começaram a ajudar todos os três – o ente querido que faleceu, a vós próprios e à vossa família – da maneira propícia, da maneira do Dhamma.
As vibrações funcionam. Mesmo para aqueles que faleceram, onde quer que possam estar, a vibração que geramos quando nos lembramos deles irá com certeza alcançá-los, forte ou suavemente, de acordo com a força da vossa mente.

S.N. Goenka no livro: Para o Benefício de Muitos, Ed. Vipassana Portugal, 2009, p. 47-8.

Sentidos do Amor



Sentidos do Amor (Perfect Sense). Um filme lindo, emocionante, reflexivo, de dar embrulho no estômago em muitas passagens. É a história de uma relação amorosa nascendo entre uma mulher epidemiologista e um homem chef de cozinha. Muito boa a escolha das profissões. Porque está ocorrendo uma pandemia no mundo onde as pessoas estão perdendo gradativa e quase que simultaneamente cada um dos sentidos do corpo. Olfato, depois o paladar. Mais a frente a audição e por fim a visão. A mulher diante de uma doença mundial sem explicação. O homem sofrendo com as mudanças em seu restaurante e a impossibilidade das pessoas desfrutarem sua arte. 
Interessante que cada perda do sentido é precedida por uma vivência muito intensa de um tipo de sentimento. A primeira delas é a experiência de um luto. As pessoas começam a chorar, por alguma perda significativa. Tempos depois não conseguem sentir mais nenhum cheiro. O mesmo vai ocorrendo com os demais. Uma fome alucinante vem antes da perda do paladar, a explosão de raiva antecede a surdez e, interessante aqui, uma sensação maravilhosa de felicidade e compaixão é o sentimento que acomete a todos aqueles que irão perder a visão. 
A histeria coletiva, os anúncios de fim do mundo, a busca por culpados, terroristas, etc. são o pano de fundo social para as tramas de um relacionamento amoroso que começa no abraço consolador da experiência do luto e se encerra no abraço também compassivo ao ficarem cegos. As idas e vindas do casal, a forma como lidam com seus sentimentos, tudo isso vão nos trazendo à reflexão sobre a vida.
Filosoficamente, o filme toca na raiz da nossa experiência com o que é real. Percebemos o mundo pelos sentidos. É interessante notar, por exemplo, o nexo entre memória e sentidos. O olfato nos remete a memórias antigas. A perda do olfato vai apagando também nosso passado. Afinal, quem somos? quem somos sobre essa terra? somos mesmo quem pensamos ser? quando ferimos ou carregamos mágoas, quem nos magoou? uma pessoa ou uma onda de sentimento que ultrapassa os sujeitos individuais? somos realmente os mesmos? nossos relacionamentos são reais? Enfim, um filme que nos faz pensar muitas coisas.
Pessoalmente gostei da relação entre sentimentos e sensações, experiências da mente e experiências do corpo. Sinto que o filme toca no enigma do que os cientistas começam a buscar compreender, e que tem a ver com as descobertas que os místicos vem fazendo à milênios sobre o a relação mente-matéria e a existência do que somos. Certamente Buda tem algo a dizer sobre a impermanência, a partir das suas experiências, dentro da moldura de seu próprio corpo, no seu caminho de iluminação. Sensações, sentimentos, ideias, tudo possui a natureza de surgir e desaparecer. E o filme, apesar de trágico em suas conclusões, deixa a sensação final de que ao fim de todos os sentidos (corporais) resta um sentido (significado) na vida: o amor.