terça-feira, 30 de junho de 2015

Os anjos e a escola pública


Quando se intelectualiza muito, a pessoa deixa de se abrir às sincronicidades e coincidências maravilhosas da vida.
Eu me intelectualizei o suficiente para deixar aberta a porta às surpresas da vida.
Ou seja, manter o verdadeiro espírito científico. Observar os fatos novos e estar aberto a rever teorias velhas.
(Os epistemólogos mostraram como os acadêmicos normalmente deixam de ser cientistas por rejeitarem fatos ou por terem mania de forçar o encaixe de fatos novos em explicações velhas).
Portanto, em nome do bom e velho espírito científico, vou contar o que aconteceu na escola, hoje de manhã. Vou narrar fatos.

Hoje fui para aquela turma do terceiro ano...
Mas desta vez fui como observador.
No início, as crianças estranharam, mas logo me esqueceram lá no fim da sala, só observando.
Se, por acaso, vinham puxar papo eu dizia: "hoje só vim observar, volta lá, senta lá, vai fazer o dever".
E pude ficar ali, observando a aula, observando cada criança, fazendo o meu verdadeiro estágio inicial na pedagogia.

E como estou estudando a pedagogia Waldorf, fiquei ali observando e tentando decifrar os temperamentos das crianças, além, claro, de observar a rotina e o ritmo das crianças e da professora.
Aprendi muito sobre a necessidade de se ter olhos de águia, para ver o todo e a individualidade e ser implacável nas intervenções. Numa turma de 30 alunos, um professor sozinho precisa estar realmente muito ativo.

E ali fiquei observando, inspirado pelas leituras de Steiner...
Aliás eu estava ali com um exemplar de um livro muito complicado de Steiner sobre a evolução do planeta e dos homens: "A ciência oculta". Nesse livro, assim como em toda antroposofia, Rudolf Steiner fala a partir de uma "ciência espiritual", algo que depende da lógica mas também de uma capacidade de percepção supra-sensorial. E particularmente esse texto intrincado fazia muitas referências ao papel da hierarquia de anjos na evolução espiritual do mundo.

E eu ali, aprendiz de educador antroposófico, procurava olhar as crianças, ao mesmo tempo que auscultar suas almas, seus corações, na sintonia do melhor desejo dos anjos para cada uma delas. Um olhar amoroso e espiritual, procurando essa sintonia dentro de mim, confiante de que essa força cósmica superior está a postos para ajudar o desenvolvimento das crianças nessa existência terrena. (estou falando do meu sentimento no momento, portanto, um fato emocional referente ao observador).

E estava ainda mais inspirado porque ouvira no fim de semana o discurso de Steiner para os professores da primeira escola antroposófica onde ele evocava os anjos e, mais ainda, porque ontem a noite, minha companheira e eu conversávamos justamente sobre a presença e os conselhos dos anjos nessa vocação educacional que temos sentido.

E assim foi. Aula vai, aula vem. Criança vai, criança vem. Uma lida rápida no livro do Steiner, algumas anotações no papel... A aula foi chegando ao fim, quando um dos meninos, que aliás não tinha falado nada comigo a manhã inteira, se levanta de sua cadeira, vem até minha direção e me entrega um papel.

Um presente desses que as crianças nos enternecem com seus bilhetinhos e declarações, pensei.

Agradeci: "Pra mim? Obrigado."

Mas nesse papel não havia texto.

Apenas um desenho.

Esse aqui ó:



Quem quiser que busque explicações...
Quem quiser simplesmente se maravilhar...
Quem quiser que conte outras histórias lindas como essas que tenho vivido na escola pública...

segunda-feira, 29 de junho de 2015

As crianças e a morte - uma aula não planejada


Hoje mais uma vez na escola passei por uma daquelas experiências não planejadas.

Juro que dessa vez eu tinha planejado as atividades todas. Inclusive com várias turmas eu segui o planejamento.

Mas naquela turminha do terceiro ano as coisas sempre acontecem de forma diferente.

O plano era descer com a turma, passar por uma área com árvore, interagir um pouco com a árvore e depois ir para a quadra fazer umas atividades dirigidas de respiração, corpo e música, com dança de roda. Um trabalho que já fiz muitas vezes e sempre dá certo.

O fato é que saiu tudo muito diferente do que eu esperava.

Claro, se vamos observar a natureza não temos como saber o que a natureza quer nos mostrar.
E enquanto estávamos observando a árvore, eis que nos surge um casal de besouros gigantes em pleno ato sexual.
A criançada adorou, claro!

Fizemos algumas respirações mas é óbvio que o sexo dos besouros estava roubando a cena.

De repente: "olha tio, um passarinho morto aqui no chão"
Eu juro que passei ali na árvore antes e vi um besouro, mas solitário, e não havia nenhum pássaro morto. Ou seja, foi um presente totalmente dedicado às curiosas crianças dessa manhã.

Peguei o pássaro morto e todos queriam ver e tocar.

Parece planejado: as crianças em contato com o sexo e a morte, a origem e o fim da vida...

Com certeza é umas dessas aulas que ficam gravadas para sempre em suas mentes infantis.

De lá fomos para a quadra. E claro que não consegui fazê-las sentar em roda como tinha planejado.

Um grupo ficou jogando futebol, com uma bola improvisada de papel que fizeram ali mesmo. E outro ficou embaixo das goiabeiras sob a supervisão da professora.

Depois de um tempo em que fiquei ali atento as intensas relações emocionais e corporais dos meninos em torno do futebol... uma criança me chamou para ver o enterro do Bob.

Enterro do Bob? Pois é. Quando cheguei lá, elas já estavam fazendo uma cruz com gravetos. O passarinho, que ganhara o nome Bob, já estava enterrado. Folhas de caderno coladas nas pedras ao chão indicavam o nome e a data de falecimento do passarinho.

Ali estava um grupo de crianças velando e enterrando o passarinho.
Me aproximei com respeito e admirei a beleza da cena.

O chão com um pouco de matinho, uma tampinha vermelha de refrigerante, o crucifixo, a lápide de papel...


Crianças envoltas no afeto, no cuidado, no impacto emocional da morte.

Sim, comentamos a professora e eu, um pouco mais tarde, a aula mais uma vez não saiu como o planejado. Mas se saísse seria só mais uma aula a ser esquecida dentre tantas outras. Essa tocou em dimensões muito profundas. Essa é daquelas de que vão se lembrar.

E me tranquiliza perceber a espontaneidade das crianças. Sempre achei que me veria embaraçado ante os temas da vida e da morte sendo um professor ligado ao pluralismo religioso em tempos em que as crianças são vítimas tão fortes de fundamentalismos (chegam a dizer que é macumba quando peço para fecharem os olhos e observarem a respiração).

Então o que vou fazer quando o tema da morte estiver entre nós. Orações? Explanações sobre a vida além da morte?
Mas não precisei fazer nada.
Diante da morte a gente vê como os sentimentos das crianças são espontâneos. Sensibilidade natural. Religiosidade natural, como defendia Rousseau.
Tenho adorado essas aulas que dão errado...
Aulas em que as crianças aparecem mais que o professor vaidoso que aqui escreve...


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Com quem as crianças aprendem?


Nessa última semana voltando da escola fiquei com vontade de escrever sobre as dificuldades encontradas com algumas crianças que ficaram muito agitadas na atividade. Crianças com quem não consegui entrar numa relação pedagógica amigável. Elas ficaram me colocando no lugar do poder autoritário, se escondendo, mentindo, amedrontadas, etc. E eu estava querendo refletir em que medida eu retroalimento essas imagens de professor que elas pre-estabelecem...

Fiquei adiando a escrita, esperando a inspiração...
Aí uma pessoa amiga me cobrou: "e aí, essa semana não vai sair nenhum texto?"

Foi então que decidi que escreveria assim que parasse diante do computador.
E, andando pelas ruas, comecei a formular o que eu queria dizer.

Foi aí que a própria rua começou a me dizer coisas.

Um cena: dois homens, próximos a uma esquina, tropeçam um no outro.
Um deles abre os braços exageradamente.
Fico sem saber se era para abraçar o amigo que encontrava por acaso ou se era por reclamação (tal como o atacante quando cai e o juiz não apita falta).
E aí eles começam a bater boca.
"Poxa, você me viu e não parou!"
"Ué, você também não parou!"
E começaram a se xingar e se ofender.

Cena forte, risco de agressão física.
Achei tão infantil, até engraçado...
Meu impulso era ir até eles e intermediar a relação.
Quase baixou o professor em mim...
Achei melhor seguir adiante.

E assim foi minha caminhada ouvindo a rua:
Pessoas ao celular, palavrões, brigas, fumantes, agitação, um jovem cuspindo no chão e um senhor também que escarrou, bochechou, mirou e cuspiu com toda a destreza de um adulto que se exibe na rua.

E comecei a pensar sobre a tarefa do educador dentro da escola.
A escola é um espaço artificial de aprendizagem.
A verdadeira aprendizagem se dá na rua.
Por isso acho interessante quando ouço falar em cidade educativa.

E fico pensando na violência simbólica da educação num espaço tão artificial:
Se nós, adultos nos portamos assim no dia a dia, não é uma certa hipocrisia exigir que as crianças ajam de outro jeito?
Ela aprende a não falar palavrão e a não brigar na escola, com medo da repreensão do professor.
Mas, uma vez na rua, ela reaprende a usar os melhores palavrões e as melhores estratégias de violência para se defender.

Quando peço para ela não cuspir ou não brigar é estranho. Parece que, num sentido global, estou agredindo essa criança. Uma criança mais esperta poderia me dizer com plena consciência:
"Pô tio, você fica mandando aí em mim, só pra exercer poder. Todo mundo sabe que na rua a gente pode usar celular, xingar e é até bonito cuspir. Todo mundo sabe que a gente precisa brigar pra defender o que é nosso. Aí o senhor fica tentando me ensinar o contrário. Pô... ou o senhor está por fora da realidade, ou o senhor quer me deixar maluco, ou está só se aproveitando que eu sou mais fraco pra exercer o seu poderzinho sobre mim."

Me sinto numa competição injusta com o "mundo da rua".
Assim como numa situação um tanto incoerente.
A escola parece um espaço bem incoerente.

Sim, mas uma vez que somos nós que estamos diante dessas crianças... o que fazer?

Algo me diz que o "nada a fazer" pode se um bom começo.
Não é questão de fazer. É questão de ser.
Antes da pedagogia exterior, a pedagogia interior.
Precisamos de inspirações nesse campo...

E justamente hoje estava estudando a Pedagogia Waldorf e encontro Rudolf Steiner (Arte da Educação), falando da importância da auto-educação.

"Há uma grande diferença, para um grupo menor ou maior de alunos, se é este ou aquele professor que entra na classe para dar aulas. Essa grande diferença não resulta do fato de o professor possuir maior habilidade que outro nas técnicas pedagógicas exteriores; a diferença principal atuante no ensino decorre da atitude mental do professor em todo o tempo de sua existência, atitude que ele leva para a aula. Um professor que reflete sobre a evolução do ser humano atuará sobre os alunos bem diferentemente do colega que nada sabe a esse respeito e nunca lhe dedica seus pensamentos."

" Temos de ficar cônscios, antes de tudo, desta primeira tarefa pedagógica, que consiste primeiro em educarmos a nós próprios, fazendo reinar uma relação mental e espiritual íntima entre o professor e os alunos, e não apenas as palavras, repreensões e habilidades pedagógicas."

Algo me diz que é por aí que vem o sopro da inspiração...

Há esperança.
Existe um lugar para a educação.
Mas tem um trabalho dentro...
E...
Será que outros adultos podem começar esse trabalho também?

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Para falar com Jesus

Estou querendo falar com Jesus.
O senhor marcou hora?
Não, tem que marcar?
Aquela fila ali é de quem não marcou hora.
Achei que fosse mais simples.
Tempos modernos, meu caro.
Tem um lanchinho pra esperar?
Você não trouxe de casa?
Casa? Era sobre esse assunto mesmo que eu queria falar com Ele.
Hum, milagres hoje não tá saindo muito não.
Não?
Povo anda sem fé.
Mas Ele...
E com essa política toda aí... fica difícil até pra Ele.
Só aqui que Ele atende?
Onde mais?
Não sei... é que achei que Ele estivesse pelas ruas...
Rua hoje tá um perigo!
Não tem nem um pãozinho?
Você pode tentar com o pessoal da fila. Mas acho difícil, solidariedade tá em baixa.
Hum... deve ser bom trabalhar aqui, diretamente pra Ele.
O emprego até que paga bem. Mas é muito tempo em pé.
E o senhor, fala sempre com Ele?
Eu? Nunca.
Ué, mas o senhor trabalha aqui.
É... mas Ele é muito ocupado, não sobra tempo.
Nossa, achei que por estar mais perto...
Anda, anda que tem mais gente chegando.
E o senhor acha que se eu entrar na fila consigo falar com Ele ainda hoje.
Não tenho a menor ideia. Aquele pessoal da fila, já está ali há muito tempo.
E nada?
Nada.
Meu Deus, como é que se fala com Jesus?
Não faço ideia. Dizem que ele não tem facebook.Mas ouvi dizer que tem uns encontros com ele.
E tem que pagar?
Claro! Em que mundo você vive?
Ai, mas é que eu estou meio sem emprego.
É... você não é único. O pessoal ali da fila...
Estou cansado. Queria ao menos falar com Jesus do meu cansaço.
Vai ao médico ver o que é isso.
Achei que Ele...
Vamos, vamos, o senhor está atrapalhando a fila.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

A criança, a dança, a arte...


Hoje na escola muncipal estava a crer que voltaria para casa sem nenhuma história inspiradora para contar.
Estava naqueles dias... sabe?
Aqueles dias em que as crianças estão agitadíssimas e você propõe atividades legais (que você julga legais) e elas não entram, estão por demais aceleradas, agressivas, se machucando...
Dessa vez fui pra escola animado com vivências de biodanza. Levei música, tinha a quadra à disposição, som legal.
Mas a relação das crianças dessa turma com o corpo, a noção de espaço, a relação com os colegas, o nível de repressão a que ainda estão submetidos pela professora... é começar um movimento corporal e entram na loucura inconsciente, se machucam sem querer... mas apesar de tudo, se divertem bastante. Só não atingiram o objetivo que eu estava planeando que é chegar num relaxamento e numa integração mais harmoniosa. Interrompi a aula no meio.
Mais tarde olhando-as no recreio até que deu para perceber que estavam mais donas dos seus movimentos, mais alegria, mais ritmo...
Quando a gente trabalha com olhar amoroso, liberdade por princípio, respeitando o tempo da molecada, sempre terá algo proveitoso no trabalho.
Mas eu estava meio frustrado com meu dia.

Foi quando...

Estava andando sem ter o que fazer (as melhores atividades sempre surgem quando estou não-direcionado)...
E vi na escada, aguardando os responsáveis, um casal de irmãos, que estão frequentemente por ali após o horário da saída. Por algum motivo, a mãe sempre atrasa para buscá-los.

Eram mais de duas da tarde e desde o meio-dia, ninguém.

Então perguntei: querem ir pra quadra fazer uma aula comigo?
Aceitaram.

Com músicas calmas fizemos alongamento, umas posições de yoga, depois meditamos sentados. Andamos um pouco pela quadra.

Deitamos.
E quando deitamos...
O menino veio perto e se deitou ao meu lado e segurou na minha mão.
E ficamos ali, contemplando as estrelas do céu do afeto entre um adulto e uma criança.
Acolhimento, confiança, união.
Me emocionei com a simplicidade e a facilidade do encontro.

Depois caminhamos os três pela quadra, caminhada com ritmo, e começamos a dançar como aves, batendo as asas...

Foi então que resolvi me sentar e propor que eles dançariam para eu assistir.

Nunca tinha tido essa ideia antes.

Ele foi até a minha playlist e escolheu a música: Villa Lobos. Aria Cantilena, das Bachianas brasileiras. Uma soprano, ópera, muito dramático e belo.

Da outra vez que usei essa música na hora das massagens me perguntaram na escola se as crianças realmente conseguiam música clássica.

Bom, dessa vez, lá estava o menino. A quadra inteira era dele. Eu e sua irmã ficamos assistindo. Ele andava. Parava. Levava a mão ao peito, a outra ao alto, e imitava a voz cantando. Que drama. Que belo. Descobri um dançarino. Ou melhor, se bem aprendi com Isadora Duncan... as crianças nascem dançando. Dançar é o movimento mais natural da vida. E ali estava a beleza em seu olhar inocente e trágico, em seus braços estendidos ao alto qual uma estátua grega, em suas mãos delicadas...

Por Zeus, de onde esse menino aprendeu a arte clássica?

O que eu faço agora?

Meu coração transborda de paixão pela dança, pela arte, pela criança...

terça-feira, 9 de junho de 2015

Ser Homem


O homem e o infarte
Ser homem é aguentar pressão
Um dia, coração não aguenta
a pressão de ser homem

Homem não chora
E como não implora
Implode

Homem tem que sustentar a casa
Se não consegue
Homem é um fracassado
Derrubado, não sustenta
Impotência

Homem tem que fazer cara de mal
Se fica muito alegre
Parece mulher
Homem não tem prazer
Homem tem que bater

Religião é coisa de mulher ou de padre
Aí homem se apaixona
Mulher vira deusa
Deusa vira santa, santa é virgem
Homem precisa de amante ou de puta

Homem só pode ter prazer com futebol, porrada e mulher
Homem pereba e cansado de briga
Vira escravo de mulher

Homem não pode ser frágil, nem vulnerável, nem ter medo de nada.
Homem aprende a mentir

Se fosse permitido aos homens sentirem prazer
A sociedade do trabalho capitalista desmoronaria

Homem fere porque foi ferido
A ferida do homem está aberta
Sangra purulenta
Quantos ais, quantas dores sufocadas, quantos choros engolidos, gritos calados
Homem sofre ainda a dor maior de todas
A dor de ter feito sofrer a mulher
A dor de ter feito sofrer a criança
E homem continua a ferir a ferro da sua própria ferida

Homem não pode sentir dor
Mas sente

Homem não pode pedir ajuda
Mas adora carinho

Homem tem medo de homem
Homem não tem medo de mulher
Mas quando mulher diz: Eu te amo
Homem tem medo.

Todo mundo dança
Homem fica sentado
Diz que não gosta.
Se tenta, não consegue
Treme todo.
Homem pilota avião
Constrói prédio, ponte, navio
Homem vai a marte
Mas não dança.

terça-feira, 2 de junho de 2015

O vento da mudança...



Logo após as atividades que fizemos na quadra da escola as crianças subiram.

Inspirados na biodanza, havíamos trabalhado roda de integração, brincadeiras de andar em grupo, fizemos massagens nas crianças, recebemos massagem delas, tudo com música, movimento e afeto. Estávamos felizes com o resultado que obtivemos, a professora, as mães e eu. E então as crianças subiram.

Acontece que um dos meninos, no caminho da sala de aula, se estranhou com um menino de outra turma no bebedouro e começaram a brigar.

Quando eu cheguei perto estavam se chutando e expressando muita raiva.
Bem no corredor do segundo andar.
Segurei os dois.
Eles continuaram acertando pontapés um no outro.
Dei um jeito, não sei bem como, já sentado e me espalhando no chão, de segurá-los mais longe um do outro e disse com autoridade: "ninguém mais vai bater em ninguém aqui."
Pararam.

Então nos sentamos na escada ampla que tem ali.
Fiquei no meio dos dois. Dando a mão a cada um, perguntei: "o que houve?"
Um dos meninos contou um pouco do que se passou. Seu coraçãozinho estava agitado e notei que sua mão tremia ainda sob efeito da adrenalina em seu corpo; a voz tremia e a respiração era ofegante.
Ouvi o que ele disse.
Virei-me para o outro e resumi: "ele disse que você bateu nele quando ele estava no bebedouro." (Bem ao estilo Piracanga de intermediar de forma neutra)

Nada. Nenhuma resposta.
Perguntei ao menino: "você quer falar o que aconteceu?"
Silêncio.
Fiquei esperando.
O outro queria falar mais. Pedi que esperasse. Estávamos "escutando" o amigo. Sim, porque há um escutar do silêncio do outro quando damos chance de falar e a pessoa não fala. Nesse "silêncio escutatório" a pessoa tem chance de pensar no que aconteceu, mesmo que não verbalize nada.
Ele estava rígido. O corpo todo tenso. A mão esquerda cerrada, prestes a dar um soco, enquanto a outra mão segurava a minha. Os olhos bem abertos, vidrados, olhando para a frente sem piscar, como num transe. Respiração e coração agitados.
E foi assim que continuamos.
Até que em um momento eu perguntei ao primeiro:
"Como você está se sentindo agora?"
E ele respondeu: "mais calmo."
Então fiz a mesma pergunta ao menino que ainda não tinha dito nada. E ele conseguiu dizer, baixinho e firme, como que soltando uma voz que vinha lá do fundo da alma:
"Estou com raiva."

Opa! Conseguimos uma expressão. E bem do jeito que eu gosto de trabalhar. Porque uma coisa é você contar os fatos do que ocorreu. Depois disso gosto que as crianças consigam perceber os sentimentos que estão tendo no momento. Ele, apesar de não ter dito nada, estava ali, meio que tomado de uma emoção, mas lá do fundo conseguia ter consciência do que se passava: raiva.

Fiquei observando a coerência entre o corpo e a emoção. Os olhos continuava vidrados. Outras crianças já se aproximaram e ficaram ali assistido a cena. Umas obedeceram quando pedi que fossem embora. Outras insistiram em ficar e achei mesmo que não estavam atrapalhando. Estavam realmente atentas, observando como podemos lidar com as emoções.

E juntos observamos o corpo do amigo delas. A raiva se manifestando.
E juntos esperamos pacientemente que o estado emocional fosse se alterando, sem que a gente precisasse dar sermões ou emitir julgamentos de valor.

"Sim a raiva está aí, disse eu, você consegue observar em qual parte do corpo ela se manifesta?"
Nada. Silêncio. Os mesmos olhos vidrados.

Até que perguntei de novo: "como você está se sentindo agora?"
E ele respondeu: "estou tenso."
"Onde está a tensão no seu corpo?"
Ele ficou um tempo pensando e respondeu: "na cabeça."

"Muito bom, pensei eu. Estamos num processo excelente, apesar de bem demorado". Acho que já tinham se passado dez minutos ali.

Sugeri: "então vamos fazer o seguinte. Fecha um pouco os olhos, respire fundo e fique observando a cabeça e veja o que acontece."

E ficamos ali juntos.
E as crianças em silêncio junto comigo, às vezes conversando um pouquinho entre si enquanto esperávamos o processo do nosso amigo.

Eis que, de repente, ali naquele corredor um pouco escuro, começo a sentir um vento. Um vento gostoso, arejando o ambiente. Olhei para o menino. Ele estava com um leve sorriso, e um pouco mais relaxado.

"Ei, ei, estão sentindo o vento?" sussurrei.
As crianças pararam e sentiram, sorrindo para mim.
"Esse é o vento da mudança."

"Olhem só para ele. E apontei com os olhos para o menino. Já tem alguma coisa nova aqui.
Enquanto ele estava tenso, o ar estava parado. Agora vejam só, tem um bom humor aparecendo aqui, tem um sorriso surgindo. E aí quando ele relaxou, permitiu a entrada do vento. Esse vento significa a mudança da emoção."

As crianças envolvidas na situação me perguntaram:
"É verdade, tio?"

Em uma fração de segundos, todo o meu caminho acadêmico, científico, se defrontou com as minhas experiências místicas. Lembrei da leitura de Carlos Castañeda em diálogo com seu mestre xamânico que falava exatamente nessa linguagem da natureza.
Optei por falar a verdade para as crianças, ao invés de ficar na fantasia. E disse:

"Sim. É verdade. Esse é o vento da mudança."

E ficamos ali, em silêncio, observando o vento passar por nós. E trazer um sorriso nos lábios do nosso pequeno companheiro.

Estava na hora de ir embora. Ainda havia raiva nele. Mas juntamente com a raiva um começo de bom humor.
E para além dos dois sentimentos, a consciência de estar ali observando tudo isso dentro dele.
Então, me coloquei agachado à sua frente e ofereci um abraço abrindo os braços e o coração. "Vem aqui, me dá um abraço para essa raiva acabar de passar. Aperta forte o tio e deixa a raiva ir embora."

E assim, ele me olhou nos olhos e me abraçou demoradamente.
Suspiramos o ar da mudança.

E descemos juntos as escadas até a saída da escola, onde sua mãe o aguardava.

Ainda há muito a aprender, mas estamos no caminho.