sábado, 22 de dezembro de 2012

Poema de um Natal sem paz


Naquele dia ouvi tua voz.
Me chamavas para perto de ti.
E me lançavas como instrumento teu
À ação em teu nome.

O tempo passa.
E já não ouço tua voz há tantos anos.
Bem que gostaria de ouvi-lo
Temo, no entanto, não ser capaz de oferecer agora o que pedirias.

O tempo passou
E me chamas novamente, desta vez sem voz,
Para perto de ti.
Como faço
se já não queres vãs ações exteriores?
O que preciso mudar em mim para te alcançar
e recomeçar?

Sinto-me tão vazio de ti
errante em busca de tantas coisas, perdido na multidão dos sentidos.

Me chamas novamente.
E já não sei ao certo o que queres de mim.
E me demoro em mim.
Na esperança de que estás no comando
Dessa inquietante transformação.
De que sairei desse deserto
mais aberto ao Amor.
Às exigências do teu amor, ó meu Amado.
Meu adorado, a quem eu sou capaz de sacrificar tudo.
E que me completas
Ao me deixar perplexo ante teus chamados.

Estranho paradoxo: me sinto pleno quando me anuncias um novo começo.
Essa dinâmica só encontro em relação a ti
Com tudo mais é o inverso.
No entanto me envergonho de tardar em entender os teus sinais.

Contigo é assim
Estou sempre certo e convicto da bondade de teu chamado
Estou sempre incerto das minhas respostas.
E assim caminho sem a paz prometida, sem a liberdade esperada.
Me ajuda, suplico-te.
Já não te peço que afastes de mim essas dores
Mas que me ajude a entender o sentido deste novo chamado.
Sei que um dia vai parar essa procura toda.
E já não ouvirei teus chamados
Pois serás chama em mim.

Mas até lá ainda suplico tua ajuda.
Tua voz?
Ó como seria doce e encantador ouvir-te novamente.
Até quando me farás esperar?
Nesse Natal sem paz
Choro. Choro o choro sem lágrimas. O teu choro de criança nascente.
E não sei quando chegará o momento de sorrir.
Mas me felicito com esse Natal doloroso.
Sim, estás em minha dor.
Sei que estás no desconsolo de minha alma nascente.

“No tempo da cólera tornou-se rebento” (Eclo 44,17)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Aristocracia Brasileira


Hoje fui ao Rio Sul, shopping localizado na Zona Sul carioca.
Interessante observar, logo ali na entrada, a existência da radical divisão de classes que vivemos no Rio, especialmente quando a gente entra pelos fundos. O pessoal que trabalha no shopping sai um pouquinho para poder fumar, e também ali estão, nas idas e vindas de seus postos de trabalho, demais funcionários, todos em contraste com a chegada animada e triunfal dos clientes. A diferença é visível, ao menos para quem vive a cultura por dentro. Está na qualidade das roupas, nos cortes de cabelo, na postura, no jeito de andar, de falar, de respirar e, até, de flertar. Tudo é símbolo de distinção. Vivemos numa sociedade radicalmente dividida. Até mesmo naquilo que seria um campo equalizador, por nos aproximar a todos da natureza, do lado cru da vida, o campo do flerte sexual, a diferença surge impondo muros de distinção e proibições. Raro, muito raro, um proletário acreditar que tem chance com a princezinha zona sul, daquelas "tão lindas que acho que cresceu só comendo filé". Muito difícil, quase impossível, o homem rico mexer com a pobre, sem que seja no jogo sujo do sexo imaginário violento e despudorado, mas que não seja nunca para casar, pois afinal, não vão aceitar lá em casa. Casamento só dentro da casta. Sim, lembro que li, há alguns anos, em Gilberto Freyre sobre o Brasil colonial: "negra pra trabalhar, mulata pra f... e branca pra casar". No que pese as (poucas) mudanças na cor, a regra continua valendo. É engraçado quando brasileiro se horroriza com a sociedade de castas indiana, com suas delimitações rigorosas e a vergonha dos intocáveis. Ora, ora, ser humano é ser humano, aqui e na China (e na Índia). Aqui também há castas: internalizadas no nosso imaginário. Tem gente que se a gente toca na rua, precisa correr pra lavar a mão. Sim, Brasil aristocrático. Lembro da aula da filósofa Marilena Chauí sobre a filosofia política em Baruch Spinoza (seu preferido). Segundo ele o que marca um regime democrático ou aristocrático de sociedade não é a forma de se contar os votos, é a busca por distinção social que há nas aristocracias. E não é que o judeu excomungado e expatriado tinha razão? Não é que a corrida simbólica em nossa sociedade é, mais do que dinheiro e poder, corrida por distinção? Brasil, eis a tua cara. Homem, ei-lo homem. É tudo humano. É tudo humano.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Conto de Rumi: Moisés e o Pastor


Certa vez, Moisés ouviu um pastor que rezava de forma espontânea: — Ó Deus, mostra-me onde estás, para que eu possa me tornar Teu servo, para que eu amarre Tuas sandálias e que eu penteie Teus cabelos, para que eu lave Tua roupa, mate Teus piolhos e traga Teu leite. Oh!, meu adorado! Que eu beije Tua mão amada, que eu massageie Teu pé amado e no momento de dormir, balance Tua pequena cama. Ó Tu, a quem todas as minhas cabras são ofertadas em sacrifício; ó Tu em quem eu penso, lânguido, pleno de desejo de amor. Ao ouvir a oração do pastor, Moisés, o profeta legalista, repreende-o severamente, identificando-o como alguém perverso e ímpio, por se referir ao Deus juiz de forma assim tão familiar e estúpida. Para ele, o grande Deus não necessitava de um semelhante serviço. Diante de tal atitude, o pastor, envergonhado e transtornado, com a alma queimada, rasga suas roupas e se retira para o deserto. Neste momento, veio do céu uma revelação de Deus a Moisés, que dizia: — Separaste meu servidor de Mim. Eis que viestes para reconciliar meu povo comigo, e não para afastá-lo de Mim. De todas as coisas, a mais detestável a Meus olhos é o divórcio. Dei a cada povo uma forma de expressão. Não tenho necessidade de seus louvores, estando acima de toda necessidade. Não considero as palavras que são ditas, mas o Coração que as oferece, pois o Coração é a essência e a palavra o acidente. Ó Moisés, aqueles que amam os belos ritos são de uma classe, aqueles cujos corações e almas ardem de amor são de outra. Não é preciso se virar para a Caaba quando se está nela, e mergulhadores não precisam de sapatos. A religião do amor é diferente de todas as outras religiões, pois, para os amantes, Deus é a fé e a religião. Em seguida, Deus infundiu no íntimo do Coração de Moisés os mistérios que palavra humana alguma alcança. As palavras invadiram seu Coração, transformando radicalmente sua visão. Após compreender a reprovação de Deus, Moisés correu ao deserto em busca do pastor. Ao se encontrar com ele, assim se expressou, movido de compaixão: — Não busques regra alguma, nem método de adoração; diz tudo o que teu Coração aflito deseja. Tua blasfêmia é a verdadeira religião, e tua religião é a Luz do Espírito. Estás salvo, e graças a ti um mundo inteiro se salvou igualmente.