terça-feira, 2 de junho de 2015

O vento da mudança...



Logo após as atividades que fizemos na quadra da escola as crianças subiram.

Inspirados na biodanza, havíamos trabalhado roda de integração, brincadeiras de andar em grupo, fizemos massagens nas crianças, recebemos massagem delas, tudo com música, movimento e afeto. Estávamos felizes com o resultado que obtivemos, a professora, as mães e eu. E então as crianças subiram.

Acontece que um dos meninos, no caminho da sala de aula, se estranhou com um menino de outra turma no bebedouro e começaram a brigar.

Quando eu cheguei perto estavam se chutando e expressando muita raiva.
Bem no corredor do segundo andar.
Segurei os dois.
Eles continuaram acertando pontapés um no outro.
Dei um jeito, não sei bem como, já sentado e me espalhando no chão, de segurá-los mais longe um do outro e disse com autoridade: "ninguém mais vai bater em ninguém aqui."
Pararam.

Então nos sentamos na escada ampla que tem ali.
Fiquei no meio dos dois. Dando a mão a cada um, perguntei: "o que houve?"
Um dos meninos contou um pouco do que se passou. Seu coraçãozinho estava agitado e notei que sua mão tremia ainda sob efeito da adrenalina em seu corpo; a voz tremia e a respiração era ofegante.
Ouvi o que ele disse.
Virei-me para o outro e resumi: "ele disse que você bateu nele quando ele estava no bebedouro." (Bem ao estilo Piracanga de intermediar de forma neutra)

Nada. Nenhuma resposta.
Perguntei ao menino: "você quer falar o que aconteceu?"
Silêncio.
Fiquei esperando.
O outro queria falar mais. Pedi que esperasse. Estávamos "escutando" o amigo. Sim, porque há um escutar do silêncio do outro quando damos chance de falar e a pessoa não fala. Nesse "silêncio escutatório" a pessoa tem chance de pensar no que aconteceu, mesmo que não verbalize nada.
Ele estava rígido. O corpo todo tenso. A mão esquerda cerrada, prestes a dar um soco, enquanto a outra mão segurava a minha. Os olhos bem abertos, vidrados, olhando para a frente sem piscar, como num transe. Respiração e coração agitados.
E foi assim que continuamos.
Até que em um momento eu perguntei ao primeiro:
"Como você está se sentindo agora?"
E ele respondeu: "mais calmo."
Então fiz a mesma pergunta ao menino que ainda não tinha dito nada. E ele conseguiu dizer, baixinho e firme, como que soltando uma voz que vinha lá do fundo da alma:
"Estou com raiva."

Opa! Conseguimos uma expressão. E bem do jeito que eu gosto de trabalhar. Porque uma coisa é você contar os fatos do que ocorreu. Depois disso gosto que as crianças consigam perceber os sentimentos que estão tendo no momento. Ele, apesar de não ter dito nada, estava ali, meio que tomado de uma emoção, mas lá do fundo conseguia ter consciência do que se passava: raiva.

Fiquei observando a coerência entre o corpo e a emoção. Os olhos continuava vidrados. Outras crianças já se aproximaram e ficaram ali assistido a cena. Umas obedeceram quando pedi que fossem embora. Outras insistiram em ficar e achei mesmo que não estavam atrapalhando. Estavam realmente atentas, observando como podemos lidar com as emoções.

E juntos observamos o corpo do amigo delas. A raiva se manifestando.
E juntos esperamos pacientemente que o estado emocional fosse se alterando, sem que a gente precisasse dar sermões ou emitir julgamentos de valor.

"Sim a raiva está aí, disse eu, você consegue observar em qual parte do corpo ela se manifesta?"
Nada. Silêncio. Os mesmos olhos vidrados.

Até que perguntei de novo: "como você está se sentindo agora?"
E ele respondeu: "estou tenso."
"Onde está a tensão no seu corpo?"
Ele ficou um tempo pensando e respondeu: "na cabeça."

"Muito bom, pensei eu. Estamos num processo excelente, apesar de bem demorado". Acho que já tinham se passado dez minutos ali.

Sugeri: "então vamos fazer o seguinte. Fecha um pouco os olhos, respire fundo e fique observando a cabeça e veja o que acontece."

E ficamos ali juntos.
E as crianças em silêncio junto comigo, às vezes conversando um pouquinho entre si enquanto esperávamos o processo do nosso amigo.

Eis que, de repente, ali naquele corredor um pouco escuro, começo a sentir um vento. Um vento gostoso, arejando o ambiente. Olhei para o menino. Ele estava com um leve sorriso, e um pouco mais relaxado.

"Ei, ei, estão sentindo o vento?" sussurrei.
As crianças pararam e sentiram, sorrindo para mim.
"Esse é o vento da mudança."

"Olhem só para ele. E apontei com os olhos para o menino. Já tem alguma coisa nova aqui.
Enquanto ele estava tenso, o ar estava parado. Agora vejam só, tem um bom humor aparecendo aqui, tem um sorriso surgindo. E aí quando ele relaxou, permitiu a entrada do vento. Esse vento significa a mudança da emoção."

As crianças envolvidas na situação me perguntaram:
"É verdade, tio?"

Em uma fração de segundos, todo o meu caminho acadêmico, científico, se defrontou com as minhas experiências místicas. Lembrei da leitura de Carlos Castañeda em diálogo com seu mestre xamânico que falava exatamente nessa linguagem da natureza.
Optei por falar a verdade para as crianças, ao invés de ficar na fantasia. E disse:

"Sim. É verdade. Esse é o vento da mudança."

E ficamos ali, em silêncio, observando o vento passar por nós. E trazer um sorriso nos lábios do nosso pequeno companheiro.

Estava na hora de ir embora. Ainda havia raiva nele. Mas juntamente com a raiva um começo de bom humor.
E para além dos dois sentimentos, a consciência de estar ali observando tudo isso dentro dele.
Então, me coloquei agachado à sua frente e ofereci um abraço abrindo os braços e o coração. "Vem aqui, me dá um abraço para essa raiva acabar de passar. Aperta forte o tio e deixa a raiva ir embora."

E assim, ele me olhou nos olhos e me abraçou demoradamente.
Suspiramos o ar da mudança.

E descemos juntos as escadas até a saída da escola, onde sua mãe o aguardava.

Ainda há muito a aprender, mas estamos no caminho.

2 comentários:

  1. Muito legal, André. Lembrei da situação ocorrida no documentário "O quanto sinto que já sei" que assistimos em sala. Em uma das cenas ocorreu uma briga entre dois estudantes que foi mediada pela educadora. Ao ler teu relato, lembrei imediatamente daquela cena. Linda experiência.

    Forte abraço, professor.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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