quarta-feira, 6 de maio de 2015

Meu aluno morreu na prisão. Fracassei.


Matheus morreu. Aos vinte anos de idade. Morreu de tuberculose na prisão.
Rio de Janeiro, depois de um tempo envolvido com o tráfico de drogas no Morro dos Prazeres, Santa Teresa, ele foi preso e recebia visitas de sua mãe.
Matheus foi meu aluno por anos no projeto chamado Escola de Valores. Nos encontrávamos aos sábados de manhã no Aterro do Flamengo. Na época, moravam no casarão da Tavares Bastos. Era uma família que além dele, mais seis irmãos moravam com a mãe e o padrasto num só quartinho, com uma só cama de casal. O banheiro coletivo ficava no final do corredor do segundo andar do casarão. Ali viviam com muitas outras famílias também apertadas em seus quartinhos. Muitas histórias me vêm à lembrança agora que recebo a notícia de sua morte.
Estou muito triste. Fizemos uma boa amizade. Demos boas risadas juntos. Não foi fácil, mas nosso grupo de trabalho conquistou essa criançada, com música, histórias, brincadeiras e muitos abraços. Ainda assim, permanecia o sentimento de que nosso trabalho estava incompleto porque a agressividade era grande entre eles.
Mais velho entre os irmãos, entre suas histórias estava o dia em que apartou a briga do padrasto com sua mãe, pegou a faca e ameaçou matá-lo se ele continuasse a bater nela.
Matheus não ia bem na escola. Expulso de uma delas, o comportamento era difícil. Mas eu sabia que por trás disso estava o fato de que tinha dificuldade com a leitura, mesmo aos 12, 13 anos.
A família resolveu melhorar de vida, a mãe se separou, saíram do casarão, e foram para uma casinha bem pequena no Morro dos Prazeres. Perdemos, aos poucos, o contato. A irmã de Matheus teve um filho e lá viviam também sob o olhar preocupado da mãe que trabalhava o dia inteiro no asfalto e via os filhos soltando pipa e andando com o pessoal da bandidagem.
Agora Matheus se vai e a minha tristeza se derrama em lágrimas de impotência.
Fizemos pouco? O que será dos outros irmãos? Quem será o próximo?
Nessas horas de morte me lembro do queridíssimo Dom Helder Câmara.
Ele tinha as palavras certas para cada momento.
Com que cores vou pintar a minha tristeza?
Silencio e sinto que meu coração triste abriga frutos de compaixão e revolta.
E antes de dar asas à minha revolta prefiro fazer perguntas, refletir.
Quando pensei em compartilhar minha dor com minha família silenciei. Eles não conseguem entender. Parecem tão enfeitiçados pelas justificativas do sistema que o máximo que conseguiriam seria culpar a mãe por ter tido tantos filhos. Acho que eu precisaria gritar com minha raiva: respeitem a minha dor!
Lembro de Dom Helder quando dizia em meio ao regime militar: “quando dou comida aos pobres me chamam de santo, quando pergunto por que há pobreza me chamam de comunista.”
Fico me perguntando um monte de coisas. Sobre os sistemas. O sistema escolar, o sistema prisional. Como esse menino passa pelos sistemas e os sistemas fracassam?
Onde estão os professores e inspetores, coordenadores e diretores das escolas que tinham problema com a conduta do Matheus? O que será que sentem agora? Será que se perguntam, como eu, o que eles fizeram ou deixaram de fazer? Fico me perguntando como o menino entra na escola, não dá certo, e, apesar dos esforços das pessoas, sai do sistema escolar sem ter dado certo? Não seria o sistema escolar, em essência, um erro? O fracasso escolar é do Matheus ou da escola?
E o que dizer do sistema prisional? Se um menino de vinte anos é preso, qual o objetivo? Quem o recebe lá? Quais as metas reeducativas? Se todo mundo fracassou... a escola fracassou, a família fracassou, a igreja, eu, se todos fracassamos... aí ele chega na prisão. A prisão deveria ter a melhor equipe de educadores, não? Entende o raciocínio? Deveríamos pegar sujeitos com o talento de um Pestalozzi e pagar a ele o melhor salário do mundo para ajudar na educação desse menino.
Mais perguntas. Como é possível uma família de 9 pessoas dividir um quarto com uma cama de casal? Na Cidade Maravilhosa! Que tipo de experiência essas crianças estão tendo num espaço tão apertado? Qual noção de espaço, de limite, privacidade, sociabilidade se constrói aí?
Por que vivemos numa sociedade tão desigual?
Essa família se desenraizou de sua terra natal num êxodo para a grande cidade. Esse capítulo já é antigo. Por que concentramos as condições de vida nas grandes cidades? Já estou me perguntando sobre a lógica das cidades, que tem a ver com a lógica dos lucros num sistema pouco inteligente porque concentra. Lembra: o Brasil é um país com altas taxas de lucros, mas pouco desenvolvido. Será que não tem a ver com o tipo de concentração das atividades e dos lucros? E aí como fica a vida das pessoas? Ou se mora longe demais do trabalho, ou se mora em casebres. Em ambos os casos a qualidade de vida está comprometida.
Outra pergunta não tão óbvia: por que a humanidade inventou armas de fogo? Um instrumento exclusivamente fabricado para tirar a vida de outro ser humano e dar lucro ao fabricante. Por que as pessoas usam drogas? Por que são os pobres e as crianças que morrem na cadeia produtiva da droga? E ainda me pergunto: se a Unidade de Polícia Pacificadora tinha chegado ao Morro dos Prazeres, e a mãe do Matheus estava toda feliz por ter ido morar numa comunidade pacificada, por que ainda havia tráfico de drogas lá?
Mais perguntas: por que essa mãe tem tantos filhos? E por que há tanta carência afetiva na criação desses e de tantos outros filhos das gerações? Ouvi certa vez um psicólogo sugerindo que uma causa pela qual as meninas da favela têm filhos aos 14 anos é o fato de poder mostrar para todo mundo (e para si mesma) que foi amada por alguém. Andar com o barrigão é poder contrariar a baixa auto estima e dizer: alguém me quis.
Afetividade, sexualidade, amor... por que era tão difícil a Matheus, seus irmãos e seus amigos, serem tocados em seus corpos, serem abraçados? Qual o medo do afeto?
A morte do meu querido Matheus me faz pensar tanta coisa.
Me lembro da gente junto. Caminhando pelas ruas, as vezes que ele foi na minha casa, o sorriso sincero e bonito. Forte, seu apelido era Tourinho, nome que ganhou na capoeira. Aliás, a capoeira também passou.
O que ocorre na trajetória de vida desses meninos que nada parece prender muito sua atenção? Nada faz com que fiquem, nada os agarram. Nada preenche o sentido de vida e dá aquela “Eureka! achei algo legal para fazer da minha vida". E aí o tráfico agarra.
Por que parece que há uma condenação ao sofrimento?
Podemos pensar em vidas passadas, em entender essa vida como a continuidade e consequência das ações anteriores. Ainda assim me vêm perguntas: quando será que poderemos construir uma sociedade humana capaz de acolher e encaminhar os desencaminhados? Quando vamos oferecer caminhos ao invés de condenar?
Durante a vida, Matheus foi tão condenado...
Seus irmãos estarão condenados ao mesmo destino?
O que pode ser feito meu Deus?
Termino essa reflexão com mais perguntas do que respostas e a sensação de um fracasso como educador. Matheus não achou lugar nesse mundo. Este nosso mundo não ofereceu lugar a Matheus. Matheus não é mau. Ele é bom. Carinhoso, sorriso sincero, amigo leal. Não encontrou lugar aqui. Este nosso mundo não oferece lugar a todos.  E aí eles vão, de sistema em sistema, sendo excluídos até a morte. Este é o nosso mundo.

6 comentários:

  1. Muito triste com a morte do Matheus. Obrigada pelo seu esclarecinento. Paz para ele na nova caminhada.. paz para a mãe dele. Que Deus tenha piedade. Paz

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  3. Penso o mesmo!! Mas me chateio em ver que estes questionamentos deveriam estar em pauta em discussões abertas com toda comunidade, de como e o que poderemos, de fato, fazer pra dar as respostas a estes questionamentos. Triste!

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  4. Você não me conhece... Triste demais em ler o seu relato... relato poético e tão triste, tão lamentador pelos olhos de uma educação alheia à causas... trabalho há 20 anos numa favela, hoje, mais conhecida como comunidade, numa EM, mudaram o nome e o perfil continua o mesmo ou pior. Vi muitos se perderem mas, não tive, nesses 20 anos, o saber de um aluno se perder para sempre, dessa forma. Vi os pais se indo, pelas balas perdidas, pelas vinganças, pelas doenças físicas... Pela doença da alma, do coração, como o Matheus, esse seu aluno e de muitos outros, não vi e não quero sentir... já doeu em mim a sua dor... obrigada pelo relato! Que mundo mais controverso, sem parâmetros, sem amor!

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  5. Me identifiquei quando disse que não poderia desabafar com sua família, pensei: Que bom! Não sou só eu que sou vista como um ET pelos meus, e imediatamente pensei: Que ruim! Isso mostra que somos uma imensa minoria no sistema. É triste sim o fim do Matheus, mas você não pode pensar que fracassou, você é apenas uma parte do sistema, a parte boa! Essa música vai dizer o que penso de você:

    Vai tua vida
    Teu caminho é de paz e amor
    A tua vida
    É uma linda canção de amor
    Abre os teus braços e canta
    A última esperança
    A esperança divina
    De amar em paz

    Se todos fossem
    Iguais a você
    Que maravilha viver
    Uma canção pelo ar
    Uma mulher a cantar
    Uma cidade a cantar, a sorrir, a cantar, a pedir
    A beleza de amar
    Como o sol, como a flor, como a luz
    Amar sem mentir, nem sofrer

    Existiria a verdade
    Verdade que ninguém vê
    Se todos fossem no mundo iguais a você

    Sinta-se abraçado.

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  6. "Matheus não achou lugar nesse mundo. Este nosso mundo não ofereceu lugar a Matheus. Matheus não é mau. Ele é bom. Carinhoso, sorriso sincero, amigo leal. Não encontrou lugar aqui. Este nosso mundo não oferece lugar a todos. E aí eles vão, de sistema em sistema, sendo excluídos até a morte. Este é o nosso mundo." Desculpe André, não encontrei palavras melhores que as suas para falar do Matheus... Espero que ele esteja melhor agora, ele merece um mundo melhor. Paz e Bem.

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