segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Não quero ser sua amiga (com frases de Riobaldo, Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa)

Hoje eu acordei de um sonho. Estava procurando resolver algum enigma da minha vida de afetos.

“Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto”.

Era como um jogo de cartas, havia de duas e de três imagens. Lembro de estar empenhado em tomar as decisões certas. Tranquilo mas comprometido, algo se fazia ali.

Acordei e quis lembrar. Não consegui mas a voz amiga da Bia Machado me disse que mesmo sem lembrar o sonho fez o seu trabalho. 

“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”.

Acordei com a música do Caetano, "dom de iludir", na cabeça. Fui ouvir. Achei antes que seria eu dizendo pra alguém e entendi que era alguém dizendo pra mim: "Você sabe explicar, Você sabe entender tudo bem, Você está, você é, Você faz, você quer, você tem. Você diz a verdade, A verdade é o seu dom de iludir, Como pode querer, Que a mulher vá viver sem mentir."

É a minha história de desejar, ocultar, explicar, justificar, querer e querer impetuosamente e criar minhas narrativas parciais, me fazer de vítima, imaginar, delirar, e me impor, invadir, colonizar o outro. É também a história de homens e mulheres. 

“Viver é um descuido prosseguido”.

Hoje mais tarde vi minha cachorra animadíssima e o gato imóvel encarando. Pensei nesse encontro que não houve. Eu animadíssimo querendo. E ontem eu recebi uma coisa inédita, uma mensagem dizendo: não quero ser sua amiga, ter essas trocas, entre nós é só algo profissional. É a primeira vez que uma pessoa me diz não querer amizade. 

“Sertão é o sozinho”.

O sentimento de rejeição é muito forte. Hoje chorei daquele jeito. E agradeço por isso. Fazia tempo que não chorava assim. Travessia. Dois mil e vinte e cinco foi o ano que li o Grande Sertão, fazendo as pazes com as guerras que a vida traz, e termino fazendo as pazes com a tristeza lendo Valter Hugo Mãe. Junto com a travessia de meu pai, que é o pano de fundo de mais difícil acesso, teve isso: gente que me bloqueou, gente que não respondeu quando eu chamei, gente que disse com todas as letras: não quero ser sua amiga. 

“Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é”.

Tempos de solidão. 

Em nenhuma das rupturas uma conversa presencial. Solidão estranha mesmo.

“Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas”.

Mas ela está certa. Se ela não me vê nem como amigo (e eu sabia que no fundo ela não me via como amigo), foi muito bom que ela expressasse a verdade dela. Assim eu paro de usar o meu dom de iludir. Que bom que finalmente encontrei alguém suficientemente ninja que soube cortar antes que nascesse qualquer mentira, qualquer ilusão.

E nesse jogo de quereres fiquei me sentindo muito mal como alguém que provoca náuseas em outra pessoa. Alguém indesejado porque indelicado, impetuoso, invasivo, desrespeitoso, grosseiro. Alguém que também é confuso, não sabe bem o que quer, mistura sentimentos, transfere os papeis, gera confusões. Melhor que haja distância. E tem uma ferida interna que odeia ter que sofrer esse controle externo: eu quero proximidade e a pessoa pede distância. 

“O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”.

E me senti mal nesse lugar típico da violência masculina: "você faz, você quer, você tem." Que bom que uma mulher pode cortar isso.

Por que ela não me quer, nem como amigo? Não importa. A pessoa não querer é suficiente. 

“Obedecer é mais fácil do que entender”.

Eu vinha recebendo as mensagens, os sinais. Silenciar, dar espaço. A carta do tarot do Osho do Centramento. A carta do tarot do Yogananada chamada Recato. Que é bem também uma qualidade dela. 

Como ela é? Ela é bem mais nova e por isso mesmo eu nem pensava em amor romântico. Mas ao longo dos dois anos que a conheço fui tendo admiração por suas qualidades. Por ser uma pessoa delicada, por agir baseada em princípios, por ter um enraizamento na sua tradição religiosa e ancestral, e com certeza ter a habilidade de operar as contradições. Por ter o espirito crítico e a força corajosa de ir além das convenções, sem por isso deixar de amar as tradições. “Tudo que é bonito é absurdo – Deus estável”. Por ser calma e firme, correta, profunda. Uma pessoa legal, divertida, coerente e aberta ao dar e receber, dessas que dizem sim, que aceitam receber favores e ajudam sempre quanto podem. E por ter tantos conhecimentos, e a sabedoria de viver a essência e o mistério da vontade de Deus, eu queria tanto poder aprender com ela. 

“Passarinho que debruça – o voo já está pronto”.

E sim, estou aprendendo. 

“O senhor ache e não ache. Tudo é e não é …”

Especialmente com essa resposta: não quero ser sua amiga, deixa a nossa relação assim profissional, eu recebo de presente um super aprendizado. É doloroso mas é o tipo de remédio que eu precisava.

“Deus é paciência. O contrário é o diabo”.

Quem me dera ser mais respeitador, ter esse recato como ela tem. Na carta do Yogananda para crianças e jovens diz:  "Quem conhece essa virtude, sabe respeitar o seu corpo e o corpo do amigo. Sabe que só devemos tocar no corpo do outro com respeito e gentileza. Cuidar de nosso corpo como se ele fosse o templo da Mãe Divina, respeitando cada parte dele como sagrada, é aprender a viver em harmonia com a gente e com todos ao nosso redor."

“Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

Ao longo dos anos também vou percebendo quais as buscas da alma. Nas qualidades das pessoas que admiro, estão os incentivos pros meus passos. Nos conhecimentos que a pessoa possui, vou fazendo também as minhas pesquisas. Não é a toa que comecei a ler alguns temas que fazia tempo que eu não estudava.

“O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando”.

Minha amiga mística que me vê, no espelho de seus olhos bons, como um místico também, me perguntou: será que você não busca amores impossíveis só para ser arrebatado por Deus?

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas”.

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