sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Em resposta a uma reclamação de um(a) estudante.

Recebi na Universidade uma reclamação vinda pela Ouvidoria. Não sei quem fez. Mas precisamos responder. Defendo o direito do estudante buscar meios de ser ouvido quando se sente desrespeitado e, reconhecendo a cultura de poder hierárquico existente nas instituições do antigo paradigma, no qual ainda vive a Universidade, compreendo que seja legítima essa busca de um canal de garantia de direitos. Meu coração não deixa de se entristecer, uma vez que procuro estabelecer vínculos de afeto, respeito e proximidade com as turmas. Mas nem tudo é perfeito. Sei que não amei suficientemente meus alunos, e já me coloco a pergunta auto-crítica que aprendi a me fazer com Mohandas Gandhi: "onde estou errando para o meu aluno não confiar em mim?" Então vou procurar oferecer nessas linhas a melhor resposta, vinda do mais profundo amor e respeito de meu coração humano que se fez professor por alguns anos até aqui.

A reclamação dizia que o professor André não segue a ementa e, em disciplinas obrigatórias, oferece práticas de yoga, constelação familiar e biodanza. Diz também que procurou o Centro Acadêmico e que a pessoa do CA disse que não adianta reclamar, que muitas reclamações já foram feitas e que nada resolveu.

Assim, vou começar a responder pelo final, pela resposta que lhe foi dada pela pessoa do CA. Em 9 anos na Universidade nunca fui procurado pelo CA para me trazer críticas, sugestões, ponderações, pedidos representando os estudantes. Na verdade venho nesses anos, recebendo muita aprovação por parte dos estudantes, por minhas aulas serem alegres, dinâmicas, pouco tradicionais, que "quebram a rotina", relaxantes, que trazem paz, que eu escuto os alunos e que os alunos aprendem com facilidade, e retém o conhecimento por anos, porque foi um conhecimento transmitido de forma significativa e afetiva. Longe de ser perfeito, recebo também ao final do semestre, nas avaliações das disciplinas, sugestões e críticas feita pelos estudantes que me permitem ir tentando melhorar. Mas do CA, nunca uma palavra.

Recebi uma única vez uma reclamação oficial vinda pela Coordenação do curso. Vou contar o que houve. Uma aluna se incomodou por eu usar um capítulo de um livro que tinha a palavra "vagina" no título. O livro tinha dados científicos, pesquisas científicas com animais, discutia questões relacionadas a cultura do machismo, a violência contra a mulher, mostrava por exemplo, como o estupro se tornou em nossa civilização uma arma de guerra uma vez que abala a auto-estima dos povos inimigos, por gerações. A disciplina era de metodologia científica e eu quis aproveitar e trazer reflexões socio-políticas atuais (a questão da mulher) enquanto aprendíamos sobre método de pesquisa nas ciência, ratinhos de laboratório em que eram aplicados certos hormônios, grupo controle, etc. Entendi que seria uma boa oportunidade de ampliar o interesse da turma com essa inter-disciplinariedade. Mas o incômodo foi grande, a aluna não falou nada comigo, e foi reclamar na coordenação. Nunca mais usei o livro que, no entanto, recomendo a todos: "Vagina: uma biografia" de Naomi Wolf.

Além dessa reclamação, nunca mais tive nenhuma reclamação oficial. Portanto, não compreendo o que se passa, que ruído de comunicação, ou que falta de comunicação aconteceu ao longo desses anos para a pessoa representante do CA responder da maneira como fez. Reconheço como membro do corpo docente que os estudantes tem muitas demandas que não são atendidas, reclamações que não dão em nada, e sou sensível a essa estrutura de poder que realmente pesa conta o lado mais fraco. Onde dou aula, as condições de vida dos estudantes está bem comprometida. É um bairro caro, e não temos moradia estudantil, nem restaurante universitário. Nossos estudantes estão realmente fragilizados.

Com relação as disciplinas que lecionei no semestre em que foi feita a reclamação, tentarei me explicar aqui. Eram duas disciplinas: Introdução ao trabalho acadêmico (que hoje não existe mais) e Corpo e Movimento na Educação.

A única vez que me lembro ter feito uma aula citando o apreciável método terapêutico desenvolvido por Bert Hellinger foi numa das turmas de Introdução ao Trabalho Acadêmico, para os alunos do primeiro período. E houve um contexto muito específico. Passei uma atividade de estímulo a escrita. Para isso usei o seguinte dispositivo de inspiração: pedi que escrevessem num formato de carta a seus pais, sobre o que estavam aprendendo na Universidade. Os conteúdos das disciplinas, o saber acadêmico em confronto com o senso comum, etc. Já fiz isso outras vezes, inspirado por outros professores que tive. Escrever para um leigo, nos estimula a explicar melhor nossa ciência. E assim os estudantes escreveram. No entanto, minha enorme surpresa foi o conteúdo das cartas. Em mais de 90% das mesmas os estudantes não falaram de conteúdos acadêmicos. Mas de suas questões emocionais. Das dificuldades que estavam vivendo em uma nova cidade, com poucos recursos financeiros. E a grande maioria falava de suas dores emocionais nas relações com seus próprios pais, das histórias de abandono, de abuso, de violência. Uns que fingiam perdoar, outros que nunca perdoariam. Alguns alunos relataram emocionantes histórias de perdas, de seus pais, de seus irmãos, de seus cachorrinhos. E alguns falavam da sua vontade de cometer suicídio. Outros não conseguiram escrever para um de seus pais, ou o pai, ou a mãe. E vinham até a mesa emocionados e me falaram que não conseguiram. Eu, sem saber exatamente como reagir, disse que tudo bem, que entregassem em branco, mas que não deixassem de entregar, uma vez que entregar em branco ao menos seria um movimento que poderia trazer algum efeito.

Depois de ter lido as cartas passei a semana sem saber exatamente o que fazer. Senti que precisava dar alguma resposta a eles que haviam me confiado aquelas confissões e que tinham vivido aquela experiência. Aliás, alguns alunos pediram para me mostrar que fizeram mas que não queriam que eu lesse!

Sou um educador! Diante de uma turma que me traz esse movimento carregado de dor, me sinto na obrigação de minimamente oferecer algum acolhimento. Então preparei no quadro algumas citações de Hellinger e apontei para a constelação familiar como uma forma de inspiração para lidarem com tantos conflitos familiares.

Yoga e Biodanza nunca ofereci nessa turma de Introdução ao Trabalho Acadêmico. Nas turmas de Corpo e Movimento, busco cumprir a ementa com a possibilidade de, além das reflexões teóricas necessárias a formação do educador, oferecer espaços de vivência de atividades corporais com vistas a capacitação dos profissionais da educação que vão utilizar o corpo e serão, em geral, levados a atuar sobre os corpos das crianças e jovens nas escolas. Ao longo dos anos lecionando na pedagogia sempre ouvi as reclamações dos estudantes de que as aulas são muito teóricas, que eles tem pouca prática, pouca possibilidade de vivenciar o que estão aprendendo. Imagine uma turma de corpo que se fale sobre o corpo, se critique a escola pelo seu tradicionalismo no aprisionamento dos corpos nas carteiras dentro das grades da escola, e essa disciplina sendo dada sem que se saia da cadeira! Então a gente precisa buscar coerência. Nós começamos a oferecer atividades, dinâmicas, oficinas, práticas corporais na disciplina. Chamamos convidados de outras áreas: dança, biodanza, capoeira, temos práticas de jogos e esportes, consciência do corpo, do movimento, yoga, teatro, método feldenkrais, danças circulares, brincadeiras, exercícios de ritmo e o que mais a gente consegue criar em conjunto com a turma e com os convidados que conseguimos trazer. Gostaria de poder oferecer mais e estamos em constante procura de profissionais na cidade de Angra dos Reis que possam fazer parceria e vir, gentilmente, oferecer um pouco de seus saberes e práticas. Além de oferecer uma discplina optativa para aprofundar nas vivências.

Creio ter podido compartilhar um pouco das experiência e que podem talvez chegar como resposta aos estudantes. Estou absolutamente aberto ao diálogo com colegas e estudantes para aprimorar mais e mais nosso trabalho.

Um abraço

André

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