segunda-feira, 15 de julho de 2019

O poeta está vivo depois da meditação






Baby, compra o jornal
E vem ver o sol
Ele continua a brilhar
Apesar de tanta barbaridade
Baby, escuta o galo cantar
A aurora dos nossos tempos
Não é hora de chorar
Amanheceu o pensamento
O poeta está vivo
Com seus moinhos de vento
A impulsionar
A grande roda da história
Mas quem tem coragem de ouvir
Amanheceu o pensamento
Que vai mudar o mundo
Com seus moinhos de vento
Se você não pode ser forte
Seja pelo menos humana
Quando o Papa e seu rebanho chegar
Não tenha pena
Todo mundo é parecido
Quando sente dor
Mas nu e só ao meio-dia
Só quem está pronto para o amor
O poeta não morreu
Foi ao inferno e voltou
Conheceu o Jardim do Édem
E nos contou
Mas quem tem coragem de ouvir
Amanheceu o pensamento
Que vai mudar o mundo
Com seus moinhos de vento
* * *
Lembrei dessa música no último dia do retiro, vivido no M.u.d.a., em Piracaia-SP.
Lembrei dela ao fazer anotações no banheiro do meu quarto, às três e meia da manhã no último dia, depois de acordar de mais um pesadelo (de alguns que tive).
Baby compra o jornal e vem ver o sol, ele continua a brilhar apesar de tanta barbaridade...
No retiro, a presença das pessoas que moram na rua, nossos amigos do yoga de rua, trouxe para o campo coletivo, as memórias vivas de muita violência sofrida pelos companheiros. Armas, guerra, infância difícil, solidão...
E o trabalho de conexão que é feito ali, é trabalho de inter-conexão, então todo o grupo mergulhou junto.
Baby, compra o jornal... onde lemos as noticias das vidas das pessoas. E foi também recebendo cartas-noticias das pessoas do sul da Asia que Thich Nhat Hanh em Plum Village meditou sobre tantas violências no mundo, terminando por escrever seu poema, Por favor, me chame pelos meus verdadeiros nomes.
Apesar de tanta barbaridade, o sol continua a brilhar. Aquilo que permanece ao turbilhão de emoções que entramos diante de tudo isso... o que permanece... só o que permanece é a impermanência, a vacuidade. Baby, vem meditar, vem ver a vacuidade. Vem ver, vem experimentar a transitoriedade dos fenômenos, vem ver de perto as ilusões de nossa mente... vem ver o real...
Aliás o sol foi elemento que apareceu em nosso dia a dia de muito frio lá. Aquecer-se ao sol, no silêncio das horas, era parte do nosso cotidiano. O sol nos aquecia e iluminava a paisagem tranquila de grama e morros, céu azul, árvores e pássaros, onde treinávamos a olhar e ver miragem em todas as coisas, ver que tudo é como um sonho.
Também tinham galinhas no sítio, caminhando soltas por lá, e galos cantando todos os dias. Seu canto anuncia a chegada de um novo tempo pra gente. Não é hora de chorar... lembro aqui da instrução na técnica Alexander, inibe as reações... inibe o choro e volta pro corpo, integra tudo isso e vê o que vem... integração, abertura...

Os moinhos de vento, Cervantes, D Quixote, seus devaneios, ilusões. Estudamos a mente em sua ignorância, apego e raiva. Roda da Vida. Circulo de vida e sofrimento, vida e sofrimento. A grande roda da história. O poeta aqui é mais um prisioneiro. Cá estamos presos. Por mais que se tente mudar o mundo com bons pensamentos e boas intenções, é sempre a mesma historia, em círculo.
Então voltamos o olhar para dentro. Apegos, aversões, preferências, gostos, indiferenças, insensibilidades, lembranças, obsessões, agitação, decepções... que bom que você não precisa ser forte o tempo todo, seja pelo menos humana... olhar tudo, tudo, tudo o que te surge. E acolher. Perceber tudo como parte de si. A força e a fraqueza que te fazem a cada instante. Sem idealizações, sem moralismos, sem julgamento, de papas e seus rebanhos. Atitude zen. Ouça sua mente como quem ouve os sons, como quem vê os objetos. Todos os seres são suas mães. Frase de Buda. E todas as coisas que chegam, incluindo os pensamentos são o que te fazem. Então seja isso. Perceba-se sendo feita a cada instante por tudo isso, de fora e de dentro. Perceba-se sendo o que você já é. Agora. Seja pelo menos humana: simplicidade zen. 
Mergulha aqui, observando a dor e a sua raiz e vê como todo mundo é parecido. Medita então nessa equanimidade entre o eu e o outro. Todo mundo quer a mesma coisa: evitar o sofrimento e ser feliz. Você quer sair do sofrimento e ser feliz. Então não há motivo para você querer ser melhor e mais importante do que ninguém. Tenha apreço por todas as pessoas, tanto quanto você tem apreço por você.
Quem é agradável a você, pode ser desagradável a outro, quem te é desagradável pode ser amada por outros. Não há motivo para aumentar as qualidade de uns, amplificar os defeitos de outros, ser indiferente a ninguém. Tenha apreço por todos. Tenha uma atitude calorosa e amigável por todas as pessoas. Deseje que todos os seres possam ser felizes.
Nu e só ao meio dia... nos vejo ali em silêncio debaixo do sol... vivendo processos sem se distrair com conversas e passatempos (o silêncio é essencial em retiros assim) é muito, muito, muito tentador mesmo cair na lamentação e ficar remoendo as dores pessoais. E sentir-se vítima de tantas coisas... mas o fato é que eu não sou tão importante... o eu mesmo nem existe... daí o amor... "só quem está pronto pro amor!" Essa reviravolta... sair de si e ver o outro...  Amor a todos os seres... esse é o verdadeiro amor.
Nesse retiro fomos juntos ao inferno das dores humanas, das complexidades estruturais de nossa sociedade.
Mas, há que se admitir, fomos também ao Édem. Os momentos de paz mental, no cultivo de verdades simples, como apreciar o outro, reconhecer a impermanência de tudo... e ainda, perceber a vacuidade do corpo, e do eu...
Vacuidade. Que é isso?
Todas as coisas são vazias de existência inerente.
Tudo está interconectado, vinculado.
Sentimos isso de várias maneiras.
Deitados em semi-supina, ouvindo as instruções da técnica Alexander, por exemplo. Sentir no corpo que o corpo é um organismo vivo, de células, bactérias, vírus... moléculas, partículas... nada sólido. Sem fronteiras. Uma pulsação, totalidade.
Meditando na inter-existência de todas as coisas. Em mim, está o meu pai e minha mãe, e os pais de cada um deles e assim por diante... em mim está o alimento, e tudo que está presente também na existência do alimento (o sol, a nuvem, a chuva, quem plantou...), e em mim está o ar que respiro agora, e agora o ar que saiu já não faz de mim outro... mudança, mudança, mudança...
Meditando na vacuidade... as cosias nos aparecem como existentes, mas se olharmos bem são como miragens... por trás do nome e forma, o vazio de existência inerente... perceba o vazio do seu corpo, perceba o vazio do eu. Você sentiu vergonha, medo, raiva, o eu se intensifica, você procura o eu, e ele desaparece.
Moinhos de vento... miragens... depois de ir ao inferno e voltar, de ir aos jardins do édem... o poeta agora traz um novo pensamento, que vai mudar o mundo... aqui os moinhos de vento estão nesse mundo, esse mundo é uma miragem e esse pensamento novo, pós inferno e édem muda porque não muda, muda porque desfaz a solidez, mostra a existência e não-existencia, a existência vincular de todas as coisas...
Inter-existência é vacuidade. Vacuidade é vínculo. Numa dessas idas ao édem, meditando sobre a morte, percebi que Jesus quando se aproxima do dia de sua morte, convida os amigos para um jantar e ritualiza... seu corpo agora é o pão. E hoje os cristão comem esse pão, e Jesus está em todos eles. Vacuidade e amor... minha carne está em toda parte e é alimento de todos os seres. Assim como, em mim, vivem todos os corpos de todos os seres... 
O poeta não morreu... o poeta somos nós.


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