quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Do fogo eleitoral à fogueira do conselho


"O dom da fala foi concedido aos homens não para que enganassem uns aos outros, mas sim para que expressassem seus pensamentos uns aos outros." Santo Agostinho.

Em tempo eleitorais, venho refletindo muito sobre que tipo de mecanismo democrático tem mais sintonia com os novos tempos da evolução humana.

Venho assistindo a disputa eleitoral, e mesmo tomando partido por um candidato, não posso deixar de me sentir triste com o processo democrático que me parece muito ultrapassado para valores que hoje já compartilhamos.

Nessas últimas semanas fiquei perplexo com a grande inconsciência das pessoas e de como a propaganda eleitoral afeta as opiniões de forma a deixar as pessoas menos reflexivas e mais preconceituosas.

Senti-me imensamente desanimado com a falta de sensibilidade com relação ao sofrimento das pessoas mais pobres e vítimas da crueldade e violência sistêmica que vivemos. Conversar com as pessoas é como "cair na real" e ver que o espírito de compaixão anda muito distante quando se pensa no todo.

Vi-me decepcionado também com a falta de motivação das pessoas para a participação e em acreditar que elas podem "fazer a diferença".

E para piorar meu estado de ânimo, senti-me altamente afetado com o clima de disputa que aumenta a emoção do ódio na cidade.

Entretanto, em meio a essa crise íntima, buscando alguma luz, eis que fui presenteado, só nessa semana, com três encontros em que falamos e fizemos um ritual conhecido como "bastão da fala". O que me fez pensar sobre: "afinal, o que significa todo esse processo eleitoral e qual democracia precisamos buscar?"

A inspiração do "bastão da fala" vem dos povos nativos da América do Norte e está concretamente presente nas formas de organização política das pequenas comunidades ecológicas atuais.

"Quando precisam tomar decisões que afeta a nação, os povos nativos das Américas recorrem a um ritual que pode durar toda a madrugada. Os membros desse conselho que se reúne em torno da fogueira são pessoas que já viveram muitos anos, sempre demonstrando lealdade, bravura, compaixão e altruísmo, além de ser um bom ouvinte, um conselheiro discreto, um juiz justo e um honrado membro da tribo.

Em cada tribo, todos reverenciam os anciãos com grande respeito por terem dirigido os caminhos da nação com desprendimento, coragem e sabedoria. E então, nos momentos de difíceis decisões, eles se reúnem enrolados em seus cobertores em volta da fogueira para passar a noite: é a Fogueira do Conselho.

E ali evocam a presença de todo o parentesco dos homens. Os espíritos dos antepassados, guias e conselheiros espirituais do povo, bem como o avô sol, a avó lua, as estrelas... e os animais, as plantas, as nuvens, as pedras... todos igualmente sagrados, assim como o vento, a terra mãe, o pai céu... E todo esse conjunto de seres, é colocado dentro do Cachimbo e a fumaça do Cachimbo conduz o espírito de todos os parentes para que participem e inspirem o Conselho.

Todos os pontos de vista são ouvidos. E ali cada um fala segurando o bastão que dá voz a quem o segura. Cada um escuta atentamente. Há silêncio reflexivo entre as falas. Os problemas pessoais são deixados de fora do círculo. Todo talento que possa ser útil para resolver as questões é trazido para dentro. Qualquer discórdia entre os membros do conselho é solucionada enterrando-se o Fornilho antes de fumar o Cachimbo. Ao final de cada reunião é realizada uma prece de gratidão, e muitas vezes um banquete festivo.

O objetivo é sempre manter a Paz. E quem convoca um conselho deve estar sempre pronto para acatar as decisões do mesmo. Quando um mau comportamento de alguém é levado ao conselho, admitir o erro e corrigi-lo ajuda a forjar o caráter e fortalece a Nação. A pessoa não passa vergonha, não é humilhada, e toda vez que tenta sinceramente corrigir seu erro, isso é visto como um ato de coragem.

Só quando todo o povo está bem, um indivíduo pode estar bem.

Quando essas diretrizes forem seguidas por todos os povos, os Filhos da Terra conseguirão, finalmente, romper os grilhões da desigualdade e da ditadura."

(citação livre do livro: "As Cartas do Caminho Sagrado" de Jamie Sams)

Viver a realidade dessa fala sincera e dessa sensibilidade para a escuta do outro, faz relativizar o que chamamos democracia hoje.

Não. Não é democracia. É disputa de poder. Democracia é outra coisa. E são os índios, em sua profunda conexão com o sagrado e a irmandade dos povos viventes, que têm algo a ensinar...

E assim, depois dessa reflexão e das práticas de bastão da fala entre estudantes e amigos, seguirei até domingo com a sensação de estar com a alma curada... tenho clareza de que o candidato que escolhi compartilha valores democráticos que se aproximam deste ideal, mas também tenho clareza da distância que há entre esse processo que estamos vivendo e o que sonhamos... já sei por quais caminhos devo investir minhas energias para ajudar a construir a socio-cosmo-cracia do futuro.

Vamos em frente. Há muito a ser feito.

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