sexta-feira, 29 de maio de 2020

Sobre raiva, fúria e algo mais.


Os encontros da jornada têm sido para nós aqui em casa uma plataforma de auto observação e trabalho pessoal.

Individual e, por transpiração, coletivo.

O coletivo inspirando as questões a serem trabalhadas. E cada um trazendo, ao longo do convívio, suas atitudes e daí surgem as alegrias e as dores de se morar junto.

Desde o meu grito com o menino de cinco anos, muita coisa veio à tona.

A principal delas: a raiva... minha primeira reação às contrariedades do cotidiano.

Nessa conversa com você quero investigar sobre isso. Topa?

Eu não sei como é a raiva em você. Eu acreditava que todo mundo era parecido comigo, que a gente era igual nisso, que diante de conflitos a primeira reação seria igual. Aí depois do estudo da biotipologia ficou mais claro aqui pra mim: com predominância de madeira, em desequilíbrio eu entro num estado de fúria mesmo, vontade de quebrar tudo, derrubar as coisas, e, na rua, já pensei em quebrar ônibus e incendiar os trens por causa do atraso... Mas, descobri que as outras pessoas tem reações diferentes...

Aqui em casa, estávamos os adultos na cozinha e as crianças brincando na sala. De repente elas nos vêm com um conflito, uma disputa por um brinquedo, quanto tempo cada uma pode ficar, a outra que não quer sair, essas coisas humanas de todas as idades. Recebemos aquela informação e comecei a me observar. Um dos adultos foi lá mediar. E eu perguntei aos outros: qual a primeira reação de vocês? Raiva?

Fiquei pasmo! Uma sentia assim uma espécie de preguiça, a outra tristeza... mas só eu tinha ficado enfurecido por dentro, tendo que me segurar para não ir lá esbravejando, mandar as crianças saírem se não conseguem se resolver, e, pra dar uma lição, colocar fogo no brinquedo.

Gente!

Que coisa, né?

Bom, essa é a primeira reação que me vem, quando os conflitos chegam até mim. Quebrar tudo, gritar, ir embora bufando, essas coisas...

Para mim, no oposto da raiva está a calma. E olha que interessante: as pessoas me acham uma pessoa calma! Elas não me veem por dentro. Mas é exatamente isso. A calma que mostro está sustentada na fúria que escondo. Nesse trabalho com a Ana, estamos aprendendo ferramentas para integrar essas polaridades. Vou seguindo.

Percebo que essa fúria vem associada a uma intolerância com relação ao outro. No polo oposto estaria uma atitude tolerante. Escuta essa: escrevi uma tese na área de diálogo interreligioso. Fiz palestras sobre a arte de dialogar, a importância da tolerância. Cansaria menos os ouvidos das pessoas se eu falasse sobre as minhas intolerâncias, não é verdade?

Percebo como é límpido o caminho da vida. A gente anda fugindo da nossa própria sombra. E, no meu caso, e talvez no seu (já que tem gosto de ler) intelectualiza pra entender, justificar, compreender, ensinar, mas nunca se dá conta da tarefa de integrar.

Como integra isso? Como parar de fugir? Como sair do círculo?

Sentei, peguei um caderninho e anotei de um lado intolerância, de outro tolerância. E nessas duas colunas fui fazendo anotações. Percebi que a intolerância surge quando alguém vem e me desfoca, desvia de algo que estou fazendo com interesse. Sabe quando andamos na rua e uma pessoa vem na nossa direção e uma dá um passo para o lado, a outra dá também, depois você tenta o outro e a outra vai também. Às vezes isso acaba em riso. Mas em geral, sou das que ficam irritadas. A loucura é achar que o outro é que está errado. Não é uma graça isso? Lembrei de um amigo, na adolescência, um menino tímido, lidando com sérias questões da sua homossexualidade, encontrou no teatro um caminho do humor... e me lembro dele dizer que brinca nessas horas, dizendo: "me concede esta dança?"

Do lado da tolerância descobri que sou tolerante em coisas que não me afetam diretamente. Quando estou 100% em algo sou intolerante, quando fico distante àquilo, quando o problema é dos outros, é fácil ser tolerante.

Então vi que tem uma outra polaridade atuando em mim. De um lado o calor do interesse. Do outro fico distante, não me afeto com o problema dos outros, a frieza. Então atuo na vida ora com grande interesse, ora com frieza. Ora amor, ora indiferença.

Me lembro do número de vezes das pessoas me dizerem que se incomodam de falarem comigo e eu não dar a atenção devida, não parar para ouvir, continuar fazendo outra coisa. E eu nem percebia isso. Mas dentro de mim ao mesmo tempo havia uma cobrança para ser mais amoroso, que desenvolvesse empatia, etc.

Então cheguei numa polaridade que a Ana vem chamando negativo-negativo. Se entre a intolerência e a tolerência é uma polaridade entre algo positivo e algo negativo, aprofundando chego num lugar entre a intolerância e a ausência. Ou sou intolerante e não escuto ninguém. Ou sou distante e não escuto ninguém.

Como sair disso? Fazer esses mergulhos e ver tudo isso não foi nada fácil. Mas a gente topou entrar nesse percurso... então vamos seguir e ver aonde vai dar.

Olhando para a irritabilidade e a ausência, me vi criança, olhando a dinâmica da relação com meus pais. E, o que ficou muito marcado como símbolos para mim, de pai e de mãe (não é que eles sejam assim, mas o que ficou marcado em mim) é ver minha mãe muito irritada e meu pai muito calmo. Então quando a casa entrava em guerra, ou melhor, quando surgia a guerra entre eu, minha irmã e minha mãe, me lembro do meu pai estar na cozinha, lavando louça, assobiando.

Assobiando!

Evidente que ele fazia isso para se acalmar. Mas sua calma era insustentável. Também me lembro do meu pai ficando nervoso e triste... ele me dava gelo, ficava sem falar comigo e isso me doía muito. Mas era muito raro isso acontecer. Em geral ele mantinha a calma. Mas a que custo? A distância. Ele dava um gelo em seus sentimentos.

Então a polaridade que vejo hoje em mim é a mesma polaridade que vejo nos meus pais (de novo, estou falando das marcas emocionais em mim que os traz como símbolos): raiva e distância. E, daí fiz o exercício: qual o bom do ruin e qual o ruim do bom: o negativo da calma do meu pai era a distância, qual era o positivo de minha mãe, nervosa? A presença de uma pessoa humana, que erra e acerta.

Então desconfiei que eu possa ter feito uma espécie de pacto inconsciente. Herdarei a calma de meu pai e a humanidade de minha mãe.

Assim, respirei, olhei para tudo isso no papel e fiz as seguintes afirmações:

"Eu abro mãe de ser calmo" (não seria uma grande perda, perder uma calma sustentada por tanta fúria contida)

"Eu posso ser uma pessoa humana sem precisar gritar com os outros".

Então, respirei e olhei para o André. Ou seja, limpei o terreno das presenças de pai e mãe e tudo aquilo que os estava representando em mim. Desfiz as imagens que me impus por herança.

O que vejo?

E a resposta que me vem é:

Uma criança que não quer perder.

Aqui abriu um campo de sensibilidade. Me vendo como uma criança na sua luta para não perder. A primeira imagem veio de algum lugar não racional (nem posso dizer que foi uma memória) mas me veio a imagem da criança que está mamando e não quer aceitar a separação.

Olhei isso. Respirei. Senti que ali era um portal para muitas questões.

Desde esse dia tenho sentido falta de ar. Especialmente na hora que inspiro (um dos textos que li do Alexandre foi muito preciso e precioso ao dizer algo como: "que gente não tenha preferência pela inspiração ou pela expiração...").

Eu estava aqui, nessa instabilidade que entrei, desesperado pela inspiração que clamava por completude. Passei alguns dias assim. No encontro com a Ana, uma participante falou de uma angústia. E essa é a palavra que a gente usa (quando tem coragem de proferi-la) para quando dá "a coisa" que a gente não sabe o que é. Eu sinto no alto do peito. Essa falta.

Passei esses dias assim, mergulhando em emoções difíceis. Comecei a ter empatia pelas pessoas que usam drogas. Seria a hora perfeita para a bebida, ou outra droga chegar aqui para mim. O remédio que dê alegria, um veneno anti-melancolia. Fiquei esse tempo observando a sensação, não buscando remédio, não fazendo algo na yoga que pudesse curar (poderiam ter uns asanas para abrir o peito) mas eu preferi seguir o conselho zen: não faça nada! E fui ganhando intimidade com ela. Bom dia angústia! Oi amiga! Ainda tá aqui né? A filha, o céu azul, as árvores... nada cura. Senti empatia pelas pessoas que entram em depressão. Especialmente minha mãe que começou a dela na mesma idade que estou agora. Depois ouvi a Ana dizer do amigo que conheceu, estudo e virou professor da técnica Alexander e não conseguiu curou a dor nas costas. Mas ele foi se transformando, a dor se tornou o talismã. Vista assim, a angústia tá aqui co-autora deste livro, como não? Maravilhosa! Angústia cor de rosa!

Tem algo se reorientando aqui. Estou confiando nisso. Meditar no coração foi bom e foi terrível. Mas estou confiando. Qualquer remédio iria interromper a reordenação e me colocar no velho e confortável sofá de sempre.

Voltei a questão da criança que não quer perder. Não daria para trabalhar de uma só vez tantas dimensões relacionadas a "memória" do desmame precoce.

Então vamos descamando.

Uma tela do holocromos deu uma pista: generosa em excesso no dar, dificuldade em receber.  Lembrei da vez que, num jogo corporal, perdi para uma menina que cresceu em favela. Ela tinha ganas pra correr atrás do que precisava. Eu era morno, as coisas vieram fáceis.

Me veio à memória a dor de um concurso em que ganhei mas não entrei. A banca na entrevista escolheu outro. E na entrega do resultado eu fui lá e tive uma atitude "superior" admitindo que o outro tinha um currículo melhor e se eu fosse da banca também o escolheria. Só que banca não escolhe, dá nota dentro de critérios. Era uma grande falta de ética acontecendo e eu não banquei a derrota, bancando a atitude superior. Dá até uma inveja das pessoas que choram nessas horas...

Então surgiu aqui uma nova polaridade. Superiores e inferiores. Calmos e briguentos. E vi aqui com os dois olhos que Deus me deu, toda a minha história de idealização, tanto sobre o que devo ser quanto sobre as pessoas que escolho me apaixonar. E quando as pessoas ferem essa imagem do meu pai ideal, morro de medo da minha mãe irritável.

Então passei um dia inteiro aqui, brincando a la palhaço de me irritar, de reclamar de tudo. E foi um dia divertido para mim, um pouco chato para as pessoas, imagino. Fiquei reclamando das coisas na hora que acontecia. Foi libertador. Eu posso ser diferente. As pessoa não se afetam. Elas até estão acostumadas. Gera até uma certa empatia. Lembrei daquele meu amigo que me contou a historia da águia e a galinha na trilha (isso está no texto "Expressa-te")... ele era mega carismático e mega reclamão. Isso foi uma imensa mudança nos meus tendões e articulações... não morro se reclamar. Não preciso ficar respirando e bancando o calmo o tempo todo esperando a hora de explodir.

Voltando ao caderno de anotações escrevo: Quando acalmo sou meu pai. Quando enfureço sou minha mãe.
E aí me pergunto: quando sou eu?
Então seguindo os paradoxos resolvo escrever o oposto: quando acalmo sou minha mãe. Quando enfureço sou meu pai.

E foi maravilhoso! Fez todo sentido. Comecei a rever as situações de calma de minha mãe (em especial quando se dispõe a ajudar) e as de fúria de meu pai (em geral destinadas aos políticos e às injustiças contra os idosos, sabe quando o motorista de ônibus não pára pra um idoso? Se vc for do Rio de Janeiro vai saber).

Calmos e furiosos. Limpando o terreno me pergunto:

Quando sou eu?

Volto a frase: não aceito perder...

Mergulho nas lembranças difíceis da infância e adolescência, dos jogos, competições, do esporte...
Outras de adulto: como foram difíceis as perdas... Fico muito colado nas situações, não tenho o olhar panorâmico... fico preso no extremo: lutar para ganhar, abrir mão sem luta.

Mas e se simplesmente depois da luta, perder? Como lido com isso?

Como é simplesmente aceitar que perdi?

Nessa hora meu terreno de memórias me trouxe a lembrança de um amigo querido, o Cristiano, quando tínhamos 15 anos. Me lembro das primeiras vezes em sua casa. Ele tocando violão, cantando Raul Seixas (seguindo as cifras das revistinhas de banca de jornal), o cheiro de incenso, falando de Yin e Yang... uma primeira referência em algo espiritualista... fazia artesanato com durepox, simpatizava com os hippies... e os amigos ríamos dele... e ele não ligava.

Uma vez, andando pelas ruas de Nova Iguaçu, fomos assaltados. E depois do assalto seguimos andando com aquela adrenalina no corpo e ali, cruzando a passarela, ele começa a cantar uma música  que eu ainda não conhecia (clique aqui para ouvir):

"Vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar."

Um comentário:

  1. Acabei de expor minhas ideias no grupo Voar sobre o foco dos trabalhos... Eles querem fazer um jornalzinho enquanto temos outras necessidades importantes para dar assistência... E falei que precisávamos de foco em nosso trabalho e não perder tempo com coisas que não acrescentam tanto.

    Foi uma enxurrada de reclamações e fui enumerando cada prós e contras de nosso trabalho com os irmãozinhos de rua.

    Destilei o passado, pois me sentia injustiçado...

    É neste momento que jeralmente a fúria vem... A injustiça...

    Como se eu fosse dono dela, mas só é possível pensar nisso depois.

    Pois me deixa incomodando ao ver um grupo de ajuda voluntária preupada, com: bolsas, canecas, adesivos jornalzinho como logo do Voar. Quando perdemos 2 chuveiros na Casa Terra, onde os irmãozinhos podiam tomar banho. Eles fecharam por falta de grana para o aluguel... A Ioga teve problemas semana passada com Walace, estão precisando de uma moral, etc...

    Bem, estas foram as minhas justificativas, para não fazer o jornalzinho e darem foco ao que realmente interessa...

    E chamei de purpurina todos os supérfluos do Voar.

    Aí, eu já estava afim de brigar... E fui me defendendo o quanto pude... rsrsrs...

    Mas a raiva me tomou conta mais fácil, pois tem muito tempo que não discuto no Voar, pois discuti com meu filho, de 19, e ele me faltou o respeito. Acho que já estava pronto, faltava um acender o fósforo...

    Mas tudo bem descarreguei uma injustiça que acho que fazem com o projeto VOAR de desviar àquilo que acho a proposta maior do projeto que é manter os cafés e os parceiros unidos e ajudar no que precisarem...

    Como tenho muita dificuldade com a justiça, todas as vezes que percebo e sinto que ela está sofrendo algum abalo moral eu me perco em meus sentimentos, e me revolto.

    Como seu eu fosse o dono da justiça... Estou trabalhando para transformar este sentimento, e não deixá-lo me dominar e desestabilizar. Ou seja, sentir a raiva mas não extravasar de for impulsiva e ao mesmo tempo não me sentir mal comigo mesmo.

    A Oração é o silêncio tem sido um aliado importante...

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