sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Patanjali livro 2 kleshas e kriya

 Bom dia ☀️


Gostaria de partilhar dois insights com vcs.


O primeiro é: *meditar* !


Estamos estudando Patanjali com Swami Vivekananda e nesse início do capítulo 2 estamos vendo as 5 obstruções: ignorância, egoísmo, apego, aversão e medo da morte. E ele está mostrando por a + b que a ignorância (de nossa natureza verdadeira) é a causa dos outros 4 que nos assolam a vida. E estamos vendo que as sementes (samskaras) desses sofrimentos ficam na mente em níveis mais profundos mesmo que a gente desvie a mente ou deixe passar as ondas de pensamentos negativos quando eles surgem. Ciclos e ciclos da vida vem e vão e continuamos os mesmos e vivemos como nossos pais e repetimos as mesmas coisas que prometemos que nunca mais queríamos fazer/sentir. Continuamos vendo a vida com a mesma ótica estreita. Então a resposta pra verdadeira liberação é o mergulho mais e mais profundo na experiência de Si, do absoluto, e isso se dá na quietude da meditação. Sentar e praticar Kriya Yoga, ou seja, o esforço ardoroso no controle dos sentidos e na manutenção do foco do objeto da meditação (tapas), estudo de si à luz dos textos das tradições milenares que indicam o caminho (svadhyaya), e devoção/anseio/entrega a Deus (Ishvara pranidhana). Então o primeiro insight é esse: arruma tempo, se dedica mais e mais pra essa prática espiritual de sentar em silêncio e praticar, observar a mente, ver as tendências mentais e bater na porta de Deus no íntimo do coração (quem és Tu, quem Sou Eu?)


O segundo insight: em cada momento do dia a dia que conseguir lembrar me fazer a seguinte pergunta:


 *Qual o melhor pensamento que eu posso ter agora?* 


Essa perguntinha vai nos ajudando a observar, comandar e elevar a vibração da nossa mente.


Namastê!

Patanjali capítulo 1

  Encerramos o capítulo 1 dos Yoga-sutras de Patanjali.

Esse é um livro referência do universo da yoga. Quase todo mundo fala dele mas quase ninguém o lê ou o entende. Estamos tentando, começando.

Uma visão geral do percurso todo é:

Cap. 1 Samadhi - o estado de supra consciência da mente.

Cap. 2 Sadhana - a disciplina de prática.

Cap. 3 Vibhuti - os poderes adquiridos com a prática.

Cap. 4 Kaivalya - a liberdade final.

Vou tentar fazer aqui um breve resumo desse primeiro capítulo.

O primeiro capítulo é dedicado ao samadhi e ao estudo do funcionamento da mente, dos obstáculos e meios para se chegar a esse estado.

Começa definindo Yoga como o estado da mente onde não há oscilações nas ondas mentais. Ou seja, a mente calma, sem pensamento. O fundo do lago sem as agitações das ondas. O que é a mente sem pensamentos? Yoga é o caminho para conhecer quem somos em essência.

Patanjali mostra os diferentes tipos de oscilações nesse lago da mente: pensamento correto, pensamento incorreto, fantasia, memória e sono com sonhos.

O exercício de parar esses pensamentos e ficar com a mente calma, lúcida, é o que se chama prática.

Com prática contínua e desapego chegaremos à meta.

Samadhi é o estado de supra consciência onde acessamos o conhecimento da verdade além dos sentidos e além do intelecto. É a meta da nossa prática. É o que purifica a mente das antigas  sementes de novos pensamentos e leva à liberdade.

Patanjali ensina a meditação para chegar a esse estado. E meditações preparatórias que purificam e acalmam a mente.

Qual a meditação ensinada por ele? 

Separar objeto observado, dos órgãos de percepção e da reação da mente. É uma espécie de observação do mecanismo da linguagem. 

Exemplo: uma palavra é dita ou pensada, depois é ouvida e então forma-se um significado (imagem) em nossa mente. Tudo isso se dá quase ao mesmo tempo. Patanjali sugere que se perceba sutilmente a diferença de cada uma dessa etapas. Assim chega-se ao fundo do lago.

Mas isso é uma exercício muito difícil !!!

Então vamos praticando meditações que nos preparam pra essa acuidade mental, essa concentração da mente, essa percepção mais sutil. E que vão fortalecendo a mente e diminuindo os obstáculos (doença, apatia, dúvida, descuido, preguiça, vícios, falsa percepção, impaciência, instabilidade)

Sugestões de prática:

- repetir internamente o Om e refletir sobre seu significado.

- concentrar-se fixamente em um objeto, imagem ou tema

- cultivo de sentimento de  amizade, compaixão, deleite e equanimidade diante de pessoas felizes, infelizes, virtuosas ou não virtuosas respectivamente.  

- observação da respiração.

- concentração em um órgão dos sentidos.

- concentração numa luz em nosso coração

- concentração no coração de uma pessoa iluninada/santa

- concentração no conteúdo elevado de um sonho

- concentração em qualquer conteúdo que te eleve.


Além de tudo isso, tem uma derradeira prática:


Ishwara pranidhana = Entrega a Deus.


Patanjali diz que quanto mais intensa a nossa prática, mais rápido chegaremos à meta.


No capítulo 2 vamos aprofundar sobre a disciplina de prática. Sadhana!

domingo, 17 de outubro de 2021

Incêndio destruidor

Com um pequeno fósforo o papel inteiro é queimado. 

A fogueira acende. 

Uma floresta inteira é incendiada.


O incêndio começou.

Tudo está tomado pelas chamas. 

Não restará uma só espécie viva.


Tu me deste o fósforo.

E o riscaste com o poder de uma simples palavra.

Foi a semente deste incêndio devastador.


Tu, que vestes a roupa cor de fogo. E em cujos olhos brilha a luz da lua. Teu sorriso um dia desarmou minhas defesas e a terrível  destruição agora começou. 


Minha floresta de pecados está em chamas, qual a sarça de Moisés.

Tem fogo em todas as coisas.

Do ardor de cada lenho escorre uma seiva refrescante que deságua em um rio no centro e não se sabe para onde vai.


E tu assistes a toda essa destruição com a imparcialidade amorosa de teu generoso coração.


Niterói, 17/10/2021

sábado, 16 de outubro de 2021

No coração

 Pensei em você com todo o meu coração.


Com a ajuda de meu mestre fui até sua presença.


Sentado, silenciei em sua presença.


Você foi ficando grande grande grande.

E eu na sua frente bem pequeno. E você imenso. Será que é assim que os filhos veem os pais?

Olhei pro alto e só me restou abrir os braços a sua altura.

Abracei a grandeza. Tomei um gole do infinito.

Até que me vi dentro de você.

Você é tudo em volta de mim. O meu quarto, o meu salão (as paredes a minha volta são seus braços, a luz aqui dentro é a sua cor). A minha árvore, o meu bosque de meditação. Será que conseguirei viver assim, em você?


Então com o conselho de meu mestre parei e silenciei novamente. Tudo isso vai passar. Não é isso também impermanente? Voltei meus olhos para dentro com serenidade.

E lá em meu centro estava você. Um pontinho. Pequeno pequeno pequeno. Bem pequeno era você. Você dentro de mim. E cada célula cada partícula era você.

Tudo dentro era você, como a corrente, como o pulsar, percorrendo todo o meu corpo. Você em tudo que existe em mim. O mais íntimo.


Tudo: fora e dentro.

O infinito e o ínfimo.

Você você você.

A contiguidade das coisas.

Todos um.

Que mistério esse seu nome! Que mistério essa sua imagem que me preenche me permeia e me envolve!


Niterói 16/10/2021

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Nem dentro nem fora

 Eu sou dentro. 

Eu sou fora.

Eu sou dentro e eu sou fora.

Eu sou dentro e fora.

Eu sou o dentro do fora.

Eu sou o fora do dentro.

Eu não sou nem dentro nem fora.

Eu sou dentro.

Eu sou fora.

Não pensar mais em superioridade

 

Eu vou te confessar um pano de fundo que tá na minha mente. Quando li a vida de Swami Vivekananda, sua passagem pela pobreza, depois sua jornada pela Índia e suas falas sobre a Força e Libertação do povo... Me veio uma pergunta fulminante : se Vivekananda nascesse no Brasil e estivesse adulto agora entre nós o que ele nos diria sobre tudo isso que estamos vivendo? Quais seriam suas palavras para acordar nosso Espírito como povo? Isso tá virando um programa de pesquisa pra mim.

Olha isso:
"Que os latino-americanos em geral e os brasileiros em particular tenham se deixado e ainda se deixem, até os dias de hoje, colonizar com uma concepção racista e arbitrária que os inferioriza e lhes retira a autoconfiança e a autoestima não é apenas lamentável. É uma catástrofe social de grandes proporções. Como as ideias são fundamentais para a ação prática, jamais seremos um povo altivo e autoconfiante enquanto permanecermos vítimas indefesas desse preconceito absuro" Jessé Souza, p. 24. Sobre a construção do paradigma culturalista conservador.

E agora isso:
16 de julho.
(...)
Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas o pobre não repousa. Não tem o privilégio de gosar descanço. Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte (...) catei dois sacos de papel. Depois retornei, catei uns ferros, umas latas e lenha. Vinha pensando. Quando eu chegar na favela vou encontrar novidades. Talvez a D Rosa ou a indolente Maria dos Anjos brigaram com meus filhos.  Encontrei a Vera Eunice dormindo e os meninos brincando. Pensei: são duas horas. Creio que vou passar o dia sem novidade! O João José veio avisar-me que a perua que dava dinheiro estava chamando para dar mantimentos. Peguei a sacola e fui. Era o dono do Centro Espírita da rua Vergueiro 103. Ganhei dois quilos de arroz, idem de feijão e dois de macarrão. Fiquei contente. A perua foi-se embora. O nervoso interior que eu sentia ausentou-se. Aproveitei a minha calma interior para eu ler. Peguei uma revista e sentei no capim, recebendo os raios solar para aquecer-me. Li um conto. (...)".
Carolina Maria de Jesus - diario de uma favelada.

Obrigado amigo por tudo. Essa conversa vai ser longa e que seja prática! Vambora colocar em prática esses ensinamentos

Mais uma vez o peregrino russo

 Para onde vamos em nossa vida de oração?

Eis o diálogo de um professor e um monge.


O professor: Admito e aceito que durante as ocupações materiais seja possível, até mesmo fácil, rezar frequentemente, rezar continuamente, porque o trabalho do corpo não exige aplicação mental profunda, nem muita reflexão. Assim sendo, enquanto a mente o executa, pode mergulhar na oração contínua e os lábios a acompanham. Mas, se devo entreter-me com algo puramente intelectual, uma leitura atenta por exemplo, uma reflexão sobre algum problema grave, ou uma composição literária, como poderei nesse caso rezar com o espírito e os lábios? E já que a oração é antes de tudo uma ação mental, como poderei, ao mesmo tempo, concentrar-me, com um único e só espírito, em duas tarefas tão diferentes?


O monge: A solução de vosso problema não constitui dificuldade alguma se consideramos que as pessoas que rezam continuamente dividem-se em três categorias: em primeiro lugar, os principiantes; em segundo lugar, os já iniciados; em terceiro lugar, os muito habilitados.

Os principiantes conseguem, de tempos em tempos, elevar o pensamento e o coração a Deus e repetir curtas orações com os lábios, mesmo durante um trabalho mental.

Os que já fizeram progresso e atingiram certa estabilidade mental podem exercitar-se em meditar ou escrever na presença ininterrupta de Deus. Eis uma imagem que vos esclarecerá:

Suponhamos que um monarca severo e exigente vos ordene escrever um tratado a respeito de um assunto abstrato, em sua presença, diante de seu trono. Embora possais estar todo entregue a vosso trabalho, a presença do rei, que exerce poderio sobre vós, e que tem a vossa vida entre as mãos, não vos deixará esquecer um só instante que pensais, refletis e escreveis não na solidão, mas num local que exige de vós uma atenção e um respeito particulares.  Essa consciência de proximidade do rei exprime muito claramente ser possível aplicar-se à oração interior permanente, até mesmo durante um trabalho intelectual.

Quanto àqueles que um antigo hábito ou a graça de Deus fez progredirem da oração mental à do coração, esses não interrompem sua oração contínua, durante os exercícios intelectuais mais frequentes, nem mesmo durante o sono. Conforme nos disse o sábio: "Eu durmo, mas meu coração vela" (Ct  5,2).

Aqueles que alcançaram essa espontaneidade do coração adquirem tal aptidão para invocar o nome divino que a própria oração vela e o espírito é inteiramente levado num fluxo de oração incessante, não importa em que condição ele reze e por abstratas e intelectuais que sejam suas ocupações naquele momento.


 "O peregrino russo - três relatos ineditos" p. 96-98.

Trisuparna mantra

 "Que a verdade de Brahman supremo me alcance!

Que a Realidade com as características de felicidade suprema me alcance!

Que a indivisível, homogênea, doce realidade de Brahman manifeste-se em mim!

Ó Ser Supremo, que és eternamente consistente com Teu poder de revelar a consciência de Brahman a todos os Teus filhos - Devas, seres humanos e outros - a Ti possa eu, Teu filho e servo, ser um objeto especial de compaixão!

Ó grande Senhor, destruidor do sonho mau dos mundos, destrói todos os meus sonhos maus, a percepção da dualidade!

Ó Ser Supremo ofereço como oblações minhas forças vitais e controlando meus sentidos, coloco minha mente em Ti somente. Ó Uno que brilha, que diriges todo ser, remove de mim todos os defeitos que são obstáculos ao conhecimento correto e ordena que o conhecimento da Realidade, livre de absurdos e contradições, surja em mim!

Que todas as coisas do mundo - o sol, o ar, a água fresca e pura dos rios, grãos como cevada e trigo, árvores, etc., ordenados por Ti, iluminem e ajudem-me a alcançar o conhecimento da Verdade!

Tu estás manifestado no mundo, ó Brahman, em várias formas com força especial. Ofereço oblação a Ti que és fogo, visando alcançar, pela pureza do corpo e da mente, a capacidade de reter o Conhecimento da Realidade. 

Sê gracioso comigo!"


Conteúdo do Trisuparna-mantra


Recitados na abertura do sadhana do Mestre de acordo com a Vedanta, guiado pelo Guru Tota Puri.


Página 291 da edição deste livro da foto.

sábado, 24 de julho de 2021

A doçura do amor em tudo

 - Você pode amar os meus filhos como você ama a sua filha?

Depois de um silêncio:

- Eu não consigo.

Ela então disse:

- Deixa que eu amo.

- Eu posso observar o seu amor por eles?

- Você pode ficar observando.

- Vou ficar observando todo esse jogo do seu amor por eles.

sábado, 19 de junho de 2021

Uma só

Por quantos retiros de silêncio terei de passar até que eu possa te ouvir outra vez?

Por quanto tempo meus olhos precisarão ficar fechados até que eu possa te ver uma única vez?

Quantas noites escuras, quantos desertos, quantas estações, quanto tempo enredado em ilusão até que a luz da tua presença venha me acordar?

Quantas palavras ao vento, quantos lamentos, quanta secura, quantas gotas de passageiras euforias, até que enfim o teu amor me oceane?

Quantas guerras, cruzadas, ditaduras, quantas esperanças, guerrilhas, rebeliões terei de enfrentar, liderar e sofrer até que minha mente resolva aquietar em tua humilde casa?

Quantas horas de espera para que me abras a porta de casa, até que teu convite sussurre em meu ouvido: 'entre, você está em casa'?

Quantos passos, quantas jornadas, longínquas viagens, até que me perca e me ache de novo e te descubra sempre a meu lado?

Amor. Amor. Amor.

Disseste-me que me bastava abrir o coração. 

Quantas palavras desperdiçarei em sutis poesias até que um silêncio ainda mais suave me faça sentir que me dás a mão?

Por que não me calas a voz com a doçura de teus lábios?

Por que não apaziguas essa saudade com o pousar de tua mão em meu peito?

Por que não me vens tu até este leito acariciar meus cabelos e me guiar para um sono sem sonhos na direção do infinito?

Por que me deixas sem paz a espera daquela paz prometida em teu olhar?

Tu que me amas tanto.

Tu a quem amo tão pouco.

Ouve! O coro de minhas irmãs e irmãos já se ergue em tua direção e percebo-te dançando entre nós.

Diga uma só palavra e rompa esse duro silêncio de minha solidão. 

Uma só que me faça curar desse amor insatisfeito.

Uma só que me faça voar e dançar no céu do teu amor.

Tu danças em meu peito. Livre! 

Tu danças em meu peito. Infinita! 

Tu danças em meu peito. Danças a vida e a morte!

Tu danças em meu peito. Sou teu!


sábado, 12 de junho de 2021

O que colore a minha alma?

A experiência de Ser.

Algo acontece que me traz uma experiência de que sou mais do que pareço, e de que estou conectado a algo maior, e de que há um transpor do nível comum de consciência para uma consciência mais ampliada (como ir para fora de um quarto fechado). Mais calma e intuitiva. Mais em paz. Mais amorosa e quase angustiada em compaixão pelo mundo. Mas sobretudo em paz.

Como pode minha mente produzir um pensamento que me arrepia? Que é isso?

E quando esse pensamento é dito em voz alta? Aos 21 anos foi quando tive a minha primeira experiência de oração. Como é isso de quando me dirijo a um Tu, algo se acende em mim?

De onde vêm as lágrimas de emoção ao meditar no amor? Sentir-se absolutamente amado. Graça e misericórdia.

Que são essas coisas? Quem somos?

Que tipo de ligação é essa entre o interior (pensamento) e algo mais (a vida, o todo, o sentido, o doador de sentido)?

Uma vez uma lágrima desceu-me dos olhos ao comer um bolo de Natal.

A emoção de cantar junto. O que é tudo isso que promove algo em meu interior? O estudo, a abertura de uma nova compreensão interna que arrepia os cabelos. A ação social que une, que promove amor.

Há tantas coisas que me encantam. Que me apaixonam. Mas o que colore a alma é algo além do sentimento. Além do sentir amor. Além do sentir o outro. Além do sentir o nós. O nós que nos liga a um sentido. A um enredo da história humana sobre a terra. 

O humano, a casca da árvore. O tronco cascudo da árvore é só uma casca de árvore. Mas o que é a casca da árvore quando eu a chamo Deus? E me dirijo a um Tu.

Será tudo isso um auto engano? Será tudo isso um mistério científico a ser estudado? Ou será tudo isso um mistério a ser adorado?

A abertura ao desconhecido.

Encarar o aberto. O medo. Medo de um gozo. Não suportar o gozo desse amor e me perder. O roçar do sagrado. Como o rio que beira a margem. Não exatamente a poesia, não as palavras, mas o algo que ela toca. E da qual me retraio.    

E então a própria melancolia dramática de não me submergir nesse mar. A melancolia de não ser esse amor. 

A falta, não de um amor comum, mas de não me reconhecer o próprio amor maior. A angústia da ausência de paz. A paz que se insinua, que vem de visita, que me desafoga por instantes.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Conversas diante do altar

"Revela-te a mim.

Quem és?

Para além desse corpo, dessa aparência, quem és? Mostra-me quem és de verdade?"


Pergunto isso e te sinto tão perto. Como se permeasses tudo. Dentro e fora de mim. Como se uma chuva de doce néctar caísse sobre mim. Sinto a pele arrepiada. É tão prazeroso. Uma respiração se faz profunda. Exalo em um suspiro de alívio como se voltasse para casa depois de haver esquecido que existia casa. Sinto paz e abertura ao intemporal.


"Mostra-me quem sou. 

 Quem sou eu?"


Pergunto isso e me sinto tão unido a ti, sinto nossa identidade. 


"Quem és tu? quem sou eu?"


Te olho.


"Quem és tu? quem sou eu?"


Te olho e uma neblina turva o olhar.


"Quem és tu? quem sou eu?"


Te olho e te sinto como as raízes profundas em minha natureza, no tempo e no espaço de onde habito. Como se fosses minha verdade ancestral, abismal.


No centro da Terra girante, um só ponto. Piso a Terra e percebo que somos, todos aqui, filhos da Terra. No centro do círculo da vida nos encontramos a todos. Caminhar para o centro é pisar no mesmo chão, chegar exatamente no mesmo ponto, de meus irmãos e irmãs. No centro, o encontro.


Encarno em um irmão. De dentro dele abro um rosário de orações. Procuro a divindade e peço: olha por mim (ou melhor, por ele, ou melhor, por nós).


"Não sou eu que oro por ti, irmão que habito, como quem enviasse uma luz daqui para aí. Como doar o que não tenho? Sou teu irmão na procura. Numa imagem de Santo Antônio doando o pão, me identifico com o faminto que recebe o pão, agradecido. Sou eu em ti que clamo pela presença da divindade em ti, em nós. Que o amor desperte. Que o amor desperte. Que o amor desperte nesse irmão."


Será essa uma forma de orar pelo outro, de ajudar?


Sempre senti prazer em orar pelas pessoas, enquanto caminhava na beira do mar. Sentia Deus presente em mim imaginando participar dessa descida do amor de Deus a seus filhos. E uma forma de oração levava a outra até que eu chegava na melhor oração que encontrei: que era agradecer a Deus pela existência de cada um em minha vida. E agradecendo, vendo as qualidades, parecia-me que boas sementes eram regadas. 


Pisando a Terra girante também me agrada dançar. Danço em louvor. Meus braços se abrem, se erguem, expõem meu coração a ti que me infunde a força da vida, Deus em movimento. Meu corpo dança e inventa o passo para fora de todo hábito.

Me agrada girar. Distribuo de dentro para fora e recebo de fora para dentro, de todas as direções. Girar me faz voar. Já na segunda volta a beleza se mostra a meus olhos. E a beleza é o voo da alma. Girar me põe no ritmo da Terra e aqui também toco meus irmãos na roda da vida. 


E sou tocado. Ah é tão bom ser tocado. Um dia, a profissão mais valorizada e estimulada no mundo vai ser a de massagista. Se bem que há toda uma arte em abrir a pele ao toque. E da pele ao abismo... ah isso leva muitos anos de prática para se libertar inteiramente o corpo. E o corpo é o céu!


"Podes me levar até o Mestre? Abrir a estrada que me leva a Ele? Mostra-me o Mestre."


Com esse pedido sinto o amor imenso. Parece possível uma espécie de transmissão: quem muito ama ensinar aqueles que pouco amam. Não exatamente ensinar, mas derramar um dom, como é da natureza de todo ensinar.


"Sim, mas não me queira para si. Ela me diz. Você está pronto a não rivalizar com o Mestre? Está pronto para ver meu amor por Ele e não querer que te ame a ti da mesma forma? Porque a beleza de meu amor poderia te confundir. Eu eu não posso amar a alguém tanto quanto a Ele. Estás pronto para olhar, não para mim, mas para onde olho?"


Lembro-me de Buda dizendo para as pessoas olharem para a lua e não para o dedo que a aponta.


Quero dizer sim.


Saio das camadas da superfície e desço mais e mais para perto do desejo original.


Digo sim.


Toco a pedra e sinto a fonte do Ser, de tudo, de Deus e do que sou. O mesmo Eu sou.


"Oh grandiosa fonte do Ser".


Finalmente olho o Mestre.


"Eu e Tu somos um."


Silencio. E amo. E sou. 


E é tudo tão rápido até que eu volte ao grande véu.


Passou. 


Ah minha vida seria um desespero sem o conhecimento de que, além do eterno amor, és a própria impermanência de tudo que não és.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Conversa com minha mãe na igreja

 Conversei com minha mãe no interior de uma igreja.

Ela me ajudou a silenciar um pouco e então me falava do André e de todos nós. 

Somos uma espécie de compressão do Todo na esfera do indivíduo.

E cada um é uma manifestação particular do que somos em essência.

Quando voltamos nossa percepção à Fonte vemos com clareza e assombro: somos um! O grande todo, oceano em movimento.

"Tudo é o meu eu."

(Palavras sugeridas por Vivekananda: "Ah como eu sou abençoado. Sou a liberdade. Sou o infinito. Minha alma não tem começo nem fim. Tudo é o meu eu").

E eis que o Todo vem à vida como André. 

Com seus limites, suas heranças genealógicas, seu corpo. O Ser vem aqui e vai atuar no e a partir do André. 

Só pela luz de sua presença já será uma purificação e uma evolução na estrutura da matéria.

E assim o ser se manifesta em incontáveis indivíduos. E em diferentes épocas. Começos e recomeços em ascensão.

E eu sou todos!

Um laço de fraternidade universal. O amor.

Tudo isso minha mãe me diz em silêncio de haustos amplos e lentíssimos, quase insuportáveis (ao inspirar preenche-te do Todo, ao expirar esvazia-te dando lugar a chegada do Todo). E suas explicações fazem sentido. E dão sentido à vida também.

Aceitar incondicionalmente o que se apresenta, com amor às próprias limitações, e fazer o que pode ser feito a partir de onde estou, de onde posso atuar. 

Minha mãe também me mostra como ela mesma está em diversas formas, em diversos tempos. 

E ela se faz tão bonita que me comove o coração a tal ponto que já não sei se busco a mãe para que me ajude a chegar ao filho ou se procuro no filho a brecha que revele o segredo da mãe oculta por trás de tudo o que diz e faz.

Uma visão que com certeza seria insuportavelmente arrebatadora a meus olhos tão pequenos, a meu peito tão apertado.

Fiquei com essa fala de minha mãe, essa sua explicação. Contemplei seu pensamento ao longo do dia, depois de já termos nos despedido lá na igreja.

Até que um outro pensamento surgiu como uma indagação. 

E o milagre da transmutação? E se André morrer inteiramente para essa vida? O que virá?

O problema que parecia resolvido, o espirito consolado, ressurgiu em uma nova agitação. Não é um gradual processo de evolução na aceitação dos fluxos evolutivos de cada estrutura. 

É uma inquietação por um salto, uma morte, uma simplificação extrema da estrutura. 

Viver não é só viver. É também morrer.

Queria levar esse pensamento a minha mãe numa próxima conversa.

Pressinto que ela mesma tenha-me intuído e confundido como se, para além das explicações compreensíveis à mente, em segredo ela me flechasse o espírito convidando-me à entrega total do coração.

Que força de atração!

Orar sem cessar.

"Levante, desperte e não se detenha até que a meta tenha sido alcançada" (ainda Vivekananda).

E afinal somos mãe e filho também um na fonte? Como requerer essa herança total?

Isso é coisa grande demais a se pensar e dizer. Não é coisa que caiba em palavras e permaneça imaculada. Minha mãe não o diria. Ela me sorriria isso.

Morrer não é só morrer. É também viver.

Onde estás?

 Ontem perguntei: "onde estás?"

E a pergunta soou sem sentido.

Como se Ele mesmo, em mim, fosse o autor da pergunta. Ele em busca de si mesmo? Realmente não faria muito sentido. 

E a falta mesmo de sentido da pergunta foi um estremecimento, uma suspensão de toda a forma de pensar.

É isso o Ser? Uma suspensão do pensar?

Nem faria sentido Ele dizer: "estou aqui, mais perto de ti que a tua veia jugular. Estou aqui dentro."

Não. Não. 

É tão sem sentido que é como se Ele dissesse: "sou tu, tua voz é a minha, as palavras proferidas pela tua boca são as minhas."

Estranho pensar que sendo tudo é quase como se Ele não existisse. Ao mesmo tempo eleva e sacraliza tudo o que há. E Ele é.

"Sou também todo som que ouves... a voz da cigarra e do grilo e do sapo."

(Ah feliz encontro do entardecer e da noite!)

Lembrei de um poema do Rumi: "estava batendo numa porta, ela se abriu, percebi que estava batendo pelo lado de dentro."

Segui caminhando perguntando também por ti, amiga do caminho, irmã de minha alma. "Onde estás?" E a resposta também é uma batida na porta de dentro. Deliciosa dor de um afeto presente. No mesmo lugar por onde Ele chega. A mesma dor.

A meus olhos também estás em toda parte.

Penso que perguntar por Ele e por ti é praticamente o mesmo. Não será Ele mesmo em ti o que nos une? Às vezes penso que sois duas. No núcleo do teu ser é com Ele mesmo que falo e é de lá que Ele mesmo chega até mim. E para fora desse centro podes ser tu, com tua doçura e teu brincar solto e tua liberdade, por onde falamos ternamente sobre pés, cabelos, pequenos apegos e solenes poemas. 

Oh doce mistério! Ainda creio que sem ti eu não chegaria a Ele. E por uma trágica e eterna lei, pressinto que não chegarei a Ele sem desvencilhar-me inteiramente de ti. Por ora silencio e escrevo. Mas é claro que a verdade está no silêncio. Mas és tu ainda quem me faz falar. Ah como eu temo o silêncio. Quem sabe Ele levasse em conta cada palavra de ternura e de louvor a nossa amizade como louvores a Ele. (Podes tu fazer isso por mim? Creio que sabes muito bem levar cada palavra ao coração). Isso seria a glória e então Ele, finalmente, dirá a mim: "vem, teu amor te salvou!" E brincaremos e riremos juntos em Seu Reino.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Já posso te olhar

Vens e vais

Por que não ficas?

Quando vens já não sou eu.

Já não há mais eu ou Tu.

Somos um. E a vida é um jardim de delícias.

E quando vais a solidão me agita e minha alma é lançada a um transpor de si. 

Não tenho controle e perco os limites do eu e do calmo e do normal e do "todas as coisas em seus lugares."

Tua presença é doce e calma. 

Tua ausência um turbilhão.

Escrevo-te com a pena da saudade. Como estás?

Saudade desponta quando nasce o entre.

O entre não é o Tu, nem o eu. É o que nos aconteceu. E o que nos permanece. É o amor.

E não era para ser calmo o amor? Não é isso que dizem os mais experimentados no caminho?

Eis que o furacão de tua ausência se aproxima. Estou afundando enquanto segues andando sobre as águas. 

Já não há escolhas. 

Uma voz diz: "Precisas passar por isso. Vai!" 

E vou! 

Já não sou mais o mesmo

Perco as referências.

O céu já não é o mesmo céu 

E nessas horas meu corpo chora e geme.

Gemido: comoção que me toma e transborda em som. Tua existência se insinua em algo, uma nuvem, uma joaninha, uma palavra, uma lembrança. Como quando vemos a primeira aparição da lua no céu ainda claro.

Assim sou atacado por gemidos estranhos quando algo teu penetra meu sentir. Gemo como um louco vendo assombrações.  Que pensarão se me virem nesse estado? Andando na rua e de repente soltando gritos abdominais? 

Algo me fala de ti e subitamente sou jogado ao êxtase de prazer e agonia. Uma expiração que não se explica de onde sai tanto ar.

Amor e saudade.

O Amado penetrou meu quarto íntimo. 

Suspiro um mantra

Me lanço ao Tu

O gemido é de um transpor de todo o conhecido.

Não há palavras.

É como a língua dos bebês, dos animais e dos monstros.

É minha alma animal dizendo: vem! Ou: recebe-me!

E é desejo, tem a força daquelas paixões que aprisionam. E me sinto livre. Tu me convidas ao voo. Tuas palavras são doces.

Não é um eu que floresce e se abre silenciosamente ao infinito.

Quem me dera essa passagem fosse serena, suave.

Desde que Tu chegaste minha agonia cresce

E cada vez que vens deleito-me em Tua presença.

E o tempo é sem tempo e o mundo é feito de matéria e alegria.

E Tu vais e entre nós fica o vazio da plenitude e eu já não caibo em mim e não me basto. 

Tenho o desejo de estarmos em comunhão o tempo todo.

Tem horas que olhar o céu é  insuportável.

E eis que algo de novo acontece.

Uma caminhada.

Um céu.

Um instante.

Tua inocência vem, derrama sobre a minha mente uma gota de tuas vitórias e me diz: "Eu estou aí. Entre o céu e teus olhos não há distância. Tu também estás no céu, a minha paz é também a tua. Eu lhe disse que ainda hoje estarias comigo nesse paraíso. Vê, tua sede passou, assim como a minha."

Sim, sim. Posso agora olhar o céu e dizer: posso te ver.

Posso te ver.

A agonia passou, o gemido acalmou e, guiado por uma borboleta, fiz morada em teu castelo infinito.

Existe a paz.

Que bom que estás aqui comigo em todas as formas e nomes.

Ah! Como eu te amo!

Faça-se em mim conforme o amor.

Trem de palavras com destino ao silêncio

 Vou iniciar uma jornada criativa em minha vida. 

De agora em diante caminharei com meus próprios pés.

Vou olhar mais o caminho e a paisagem do que os mapas.

De agora em diante me abro ao sentir e darei tempo ao sentir.

A verdade será percebida por mim mesmo. 

Vou abrir mão das soluções e das verdades prontas.

Vou silenciar mais.

Aberto ao amor vou até onde for preciso para descobrir a fonte da felicidade.

Aberto aos mistérios vou fazer amizade com o tempo.

Vivo, observarei as transformações. 

O que muda quando mudo o meu olhar?

De onde vêm, verdadeiramente, os bebês? E a visão poética das coisas, a beleza, a amizade?  

Qual o tamanho da semente  da flor da bondade? 

De que cidade distante chega a convicção? 

Qual trem de palavras tem como destino o silêncio supremo? 

Em que toca de árvore se esconde a paz? O que ela come?

Qual a cor das nuvens de onde descem as chuvas de plenitude? 

Em que pedaço de cor do céu mora a saudade de cada amigo? 

O que me dizem essas paredes a minha volta?

Quem é o visitante que me chega pelo ar em cada respiração? 

Quem é essa pessoa que, vez ou outra, invade minha casa, rouba meus sentidos e arrebata minha alma?

O que eu ouço para além das palavras?