sábado, 12 de outubro de 2019

Yoga, sexualidade, violência, política, amor


Ultimamente eu só tenho escrito por necessidade.

As pessoas anseiam por amor.

Quem me dera pudesse escrever pouco. Poesia. Expressão profunda e ambígua. Aberta. Misteriosa como todo sentimento. Inacabada. Ainda alcanço essa imprecisão.

Debaixo do viaduto íamos começando mais um encontro do yoga de rua. Eu, cerca de doze pessoas que moram nas ruas e muitos outros em volta. Dia de chuva. Se não estaríamos sob a árvore do parque. Mas hoje era ali, no turbilhão de vento frio, chuva, carros e buzinas e pessoas dormindo, pessoas passando e nós ali.

A professora ia chegar. Fui começando as apresentações. Cada um fala o nome e o nome do outro e do outro e do outro (dificil pra quem fica por último) e esse exercício de memória sempre deu bons frutos em nossas rodas.
Depois abri se alguém queria falar ou tinha perguntas antes de começarmos a prática.
Filosofia do yoga antes da professora chegar. Da outra vez yamas e niyamas nos renderam ótimas reflexões.
Uma senhora que vinha pela primeira vez perguntou: o que é yoga?

O que é yoga?

Quando acordei de manhã na casa de meus pais em Niterói a primeira reação foi: puxa, está chovendo acho que não vou tão cedo, o corpo está precisando de descanso, senão posso acabar adoecendo, vou deixar pra chegar mais tarde e aproveitar para estar com meus pais mais um pouco aqui, tomar café da manhã com calma com eles. E vou aproveitar que acordei tarde pra tirar um tempinho para meditar. Quando sentei para meditar a primeira resposta que o silêncio me trouxe foi: você precisa ir, de que vale essa meditação aqui isolado, vá lá, e faça desse encontro com as pessoas a sua meditação... e... que importa o corpo?

O que é yoga?

Quando comecei a responder à senhora... pontapés!
Um moço entrou em nossa roda e começou a dar pontapés em um de nossos alunos.
Na mesma hora me levantei para me colocar entre os dois. E assim apartando a briga fomos vivendo esse caos que ninguém compreendia.
Nesse ambiente violento, de gritos, as informações foram chegando: ele tentou me estuprar enquanto eu tava dormindo, disse uma jovem. Ele se masturbou olhando pra minha namorada, disse o rapaz. Falei para o então meu aluno: corre, vai embora daqui, foge. Ele não me ouviu. Depois de um tempo, no momento de uma nova investida do rapaz, dessa vez me seguraram para que eu não atrapalhasse mais: deixa eles, professor, estuprador tem que apanhar mesmo.
E assim me aquietei tentando me acalmar enquanto via a briga dos dois, que dali foram para o meio da rua cada um com uma ferramenta maior que a do outro.
Então alguém do grupo sugeriu: vamos fazer o Om.
E assim ficamos entoando o Om.
Quando as pessoas da roda se distraíam, alguém do grupo dizia: concentra no Om. Visualiza a luz chegando para eles dois, para os envolvidos na briga enquanto fazemos o Om, disse mais um. Concentra! Om, Om, Om.
A briga parou.
O menino voltou.
Senti medo que depois de tanto segurá-lo ele pudesse vir tirar satisfações de mim.
Om.
Ele passou direto e foi pro canto dele junto de um grupo grande de amigos que estavam deitados num dos cantos ali do chão.
A professora chegou e fomos conversar. Contamos pra ela o que aconteceu. E voltamos a pergunta:

O que é yoga?

Diante do que vivemos, o que é yoga?

Então o moço acusado de estuprar vinha voltando. Ai não, essa não, de novo, falamos.
Então um dos meus outros alunos, abriu a mochila e tirou uma tesoura lá de dentro, pronto para usar como arma contra o "estuprador".
Mais uma vez me levantei e falei emocionado e num tom secreto com ele: não, você não. Você tá na pista também. Não se meta nisso. Você não.
Ele se segurou, se reprimiu com tanta força que ficou ali sentado, tremendo de raiva, chorando cabisbaixo.
O moço só veio pegar as coisas dele e foi embora.
Ficamos aliviados.

O que é yoga?

Voltamos a pergunta.
Yoga é autocontrole.
É não estuprar ninguém. Isso significa nem mesmo forçar a namorada a transar quando ela não quer.
Isso apesar de óbvio soa como uma verdade necessária de ser lembrada nessas nossas rodas.
Autocontrole das pulsões sexuais. Respeito a vontade de outro.
O grupo falou um pouco sobre isso. Existem asanas que ajudam a esse autocontrole: paschimottanasa, sarvangasana, a professora falou que iria mostrá-los durante a prática que faríamos em breve.

O que é yoga?

Começamos também a olhar para a forma como em geral acusamos e condenamos os outros. Nessa hora um dos participantes, aquele que havia tirado a tesoura da mochila e ainda estava muito nervoso, contou-nos que sua vida na rua começou justamente quando não conseguia mais suportar o contexto em que vivia em casa. Disse que sua filha foi violentada e essa foi a maior dor da sua vida. E vendo o sofrimento de sua filha depois do ocorrido, resolveu ir para a rua, "à caça" do estuprador.
Diante desse relato uma pessoa tentou fazê-lo ver que além de não ser bom para ele, também não era bom para sua filha...
Mas ele estava fechado para qualquer argumento. Estava ardendo com o calor de suas memórias.
Então fizemos assim: ficamos de pé, todos ficaram em pé, nos demos as mãos e ficamos bem pertinho uns dos outros. E dissemos algo assim: quando a gente está dentro da fogueira, a gente precisa sair da fogueira e se jogar na água para sobreviver. Depois a gente pode tentar fazer algo para apagar o fogo. Da mesma maneira quando a gente está no fogo de emoções muito fortes, precisamos sair desse calor intenso para depois pensar com tranquilidade.

O que é yoga?

Eu não tenho palavras para te dizer nessa hora. Diante da tua dor, mas quero te convidar a uma oração. Um dos meios de sair da fogueira e resfriar a mente é através da oração. Vamos colocar tudo isso que você nos contou diante de Deus. Existem formas de se relacionar com Deus. Vou falar de algumas, de um jeito que eu tenho feito. Vou partilhar com vocês. Eu falo assim:

Deus, Criador, aqui estou, criatura. Aqui estamos todos nós. O Senhor é o criador, há de dar um jeito em tudo isso que o senhor criou. Então nós entregamos nas tuas mãos todas essas situações de sofrimento e injustiça, assim como a chuva cai sobre bons e maus, e o sol brilha para justos e injustos.

Deus, Pai, Deus, Mãe, aqui estamos teus filhos. O senhor cuida como um Pai, uma Mãe, cuida de seus filhos. Com o máximo de atenção e responsabilidade pelo bem estar deles. Se ocupa de nosso crescimento. Possamos nos sentir seguros sob o teu olhar. Que possamos nos sentir em casa.

Deus, Mestre, aqui estamos aprendizes. Tudo que nos acontece é caminho de aprendizado. Para sermos mais parecidos com o senhor.

Deus, Amigo, aqui estamos amigos teus. Tem coisas que a gente só fala pra um amigo, tem segredos... só para um amigo abrimos nosso coração...

Deus Amado, aqui estamos amantes... queremos ansiosamente nos unir a Ti, aqui estamos cheios de desejo de amor, para nos fundir em Ti, que nos completará.

Deus, criança divina, aqui estamos, contemplando a tua pureza, dá-nos olhos de ternura para perceber tua presença em todas as coisas...

O que é yoga?

Depois desse momento de oração, combinamos de seguir com a prática de asanas. A professora começou a conduzir o grupo. Nesse tempo, fui lá conversar com o casal de jovens. Estavam lá no canto, com garrafinhas na boca, cheirando solvente, se drogando. Converso com eles que me parecem ainda mais duas crianças indefesas na rua. Sugiro que denunciem o rapaz. Ficamos ali um tempo conversando na medida do possível.

O que é yoga?

O que levam as pessoas a viver nas ruas? Para além da miséria econômica, a fragilidade dos laços sociais... que elementos da cultura que nos envolve a todos... que tipo de pressões um homem sofre, por exemplo, que fica pesado demais e não consegue dar conta e vai pra rua em busca de alívio e liberdade?

Quanta dor se torna impossível de suportar? E onde está a força de suportar? Que base emocional pode ser reencontrada por essas pessoas para se equilibrar e ter decisões sábias diante de desafios tão grandes?

O que leva alguém a perder o freio de seus impulsos e cometer atos de violência sexual? Que base de emoções essa pessoa precisa encontrar para fazer sentido a ela deter-se? Quem podemos ser para essa pessoa? Em que medida, nós como projeto que se volta a população em situação de rua pode se constituir como a base de afetos capaz de acolher esse homem, por exemplo, num processo de reconstituição do equilíbro da mente e reconstrução de suas próprias escolhas?

As pessoas anseiam por amor.

Lembro de Jesus dizendo: os sãos não precisam de médico, mas os doentes, não vim chamar os justos, mas os pecadores...

O que é yoga?