sábado, 22 de agosto de 2020

Oi Marília. 


Eu estou aqui esses dias vivendo um momento pessoal de transição. Deixando emprego e projeto de anos sem ter ideia do que fazer agora. Abrindo mão pra nascer algo novo ainda imprevisível.


Aí nesse período que eu não faço nada fiquei percebendo como é estranho não pertencer a uma aldeia. Onde as pessoas têm um lugar. Têm um que-fazer conectado a um todo. Isso é dado pela cultura. Se eu soubesse ao menos que preciso ir pescar, ou construir uma casa ou uma canoa, ou rezar, organizar um ritual em grupo... mas não. Estou sem lugar (acho que é a sensação que vc está tendo, apesar de eu não conhecer profundamente nenhuma cultura que me encante). Isso é terrivelmente angustiante. Não sei por quanto tempo se aguenta esse não lugar. Em geral se adoece ou se adere a uma cultura (ou sub-cultura, sub-tribo... dessas que a Ana insiste que não criemos aqui... um lugar de legitimação interna).


Ou seja, não temos saída. 


Então vi que isso não é só um processo de crise pessoal. Essa macro-cultura ocidental moderna nos desligou de qualquer fundamento cósmico e criou necessidades e funções artificiais e desvitalizantes.


Ter um emprego, ser útil, é uma pseudo pertença ao todo da tribo. 

O fato é que não somos uma tribo. Não somos uma aldeia global et cetera e tal.


Não é um novo emprego que vai me dar um pertencimento. Nem oferecer produtos na rede, workshops digitais etc.


Me parece que a delusão é achar que ter um emprego ser um dito cidadão respeitável e ganhar quatro mil cruzeiros por mês é alcançar o nosso lugar cósmico na existência. 


Então, dialogando com suas perguntas, a cultura ocidental moderna do mundo globalizado é uma grande delusão sustentada coletivamente. Sim.


Mas não creio que toda cultura seja uma delusão. Quem me diz isso é meu coração inocente. Acho que nós podemos encontrar um lugar cósmico e fazer isso coletivamente. Acho que é possivel uma criação coletiva de aldeias de lucidez e amor, num contexto de comunidades íntimas, e que podemos começar a achar nosso lugar pessoal (singular) num todo enriquecido.


A forma da cultura não importa tanto. Estar em criação não seria negar as formas culturais mas atuar dentro delas. Senão teríamos, por exemplo, de abolir todas as línguas para recriar uma linguagem natural... Não precisamos disso para estar em criação. Eu acho.


Podemos ver que há culturas vivas e vc mesma pode me responder se as conheceu. Não valeria trazer um discurso secularizado e olhar para culturas que cultuam o sagrado e rotula-las de delusivas.  Não, não. Isso seria exigir que todos pensassem como "nós" modernos e foi esse etnocentrismo  que a antropologia já derrubou há século.

 

E também podemos ver pessoas e, quem sabe, grupos de pessoas que resolveram atuar dentro da própria babilônia como pólo de amor e clareza mental. 


Ou seja, não tem saída, mas tem caminhos. Está difícil mas ainda estamos vivos. E temos razões para estar.


Hj enquanto estava meditando me vi não como uma pessoa mas como um lugar. Um lugar de manifestação do Todo, na grande teia de relações de originação dependente. Se tudo é a manifestação da grande mãe Kali (pra usar uma simbologia que me é cara) o passarinho, a galinha, o ovo, o vento, o sol, a nuvem, o outro ser humano ali a meu lado, se cada coisa é uma condensação em constante transformação do todo, cada coisa é uma parte desse todo em relação... Eu, que me pareço a mim como o grande e auto-centrado espectador  de tudo, eu mesmo sou uma parte do todo, eu sou um lugar de manifestação desse todo, de repente um nó da teia múltipla que se compõe e recompõe continuamente. 

Por um segundo a delusão se foi e senti com clareza de que vazio somos feitos e pela graça da grande deusa negra, que ornamenta sua nudez com um colar de cabeças humanas, pressenti essa comunhão cósmica na unidade. Um belo lugar cósmico para se encontrar não é mesmo? Saio da meditação e me pergunto: tem cultura capaz de conter essa percepção da vida?


Sim e não. Estamos condenados a sofrer. De solidão ou de amor. Não há lugar nesse mundo para uma cultura de tamanho amor como nosso coração anseia.


Mas podemos ter momentos juntos. Como esse agora. E não tem muita cultura humana por detrás da possibilidade de nos comunicarmos assim?


Somos herdeiros de 3 bilhões de anos de vida na Terra. O que vamos fazer com tamanha herança?