sexta-feira, 29 de maio de 2020

Sobre raiva, fúria e algo mais.


Os encontros da jornada têm sido para nós aqui em casa uma plataforma de auto observação e trabalho pessoal.

Individual e, por transpiração, coletivo.

O coletivo inspirando as questões a serem trabalhadas. E cada um trazendo, ao longo do convívio, suas atitudes e daí surgem as alegrias e as dores de se morar junto.

Desde o meu grito com o menino de cinco anos, muita coisa veio à tona.

A principal delas: a raiva... minha primeira reação às contrariedades do cotidiano.

Nessa conversa com você quero investigar sobre isso. Topa?

Eu não sei como é a raiva em você. Eu acreditava que todo mundo era parecido comigo, que a gente era igual nisso, que diante de conflitos a primeira reação seria igual. Aí depois do estudo da biotipologia ficou mais claro aqui pra mim: com predominância de madeira, em desequilíbrio eu entro num estado de fúria mesmo, vontade de quebrar tudo, derrubar as coisas, e, na rua, já pensei em quebrar ônibus e incendiar os trens por causa do atraso... Mas, descobri que as outras pessoas tem reações diferentes...

Aqui em casa, estávamos os adultos na cozinha e as crianças brincando na sala. De repente elas nos vêm com um conflito, uma disputa por um brinquedo, quanto tempo cada uma pode ficar, a outra que não quer sair, essas coisas humanas de todas as idades. Recebemos aquela informação e comecei a me observar. Um dos adultos foi lá mediar. E eu perguntei aos outros: qual a primeira reação de vocês? Raiva?

Fiquei pasmo! Uma sentia assim uma espécie de preguiça, a outra tristeza... mas só eu tinha ficado enfurecido por dentro, tendo que me segurar para não ir lá esbravejando, mandar as crianças saírem se não conseguem se resolver, e, pra dar uma lição, colocar fogo no brinquedo.

Gente!

Que coisa, né?

Bom, essa é a primeira reação que me vem, quando os conflitos chegam até mim. Quebrar tudo, gritar, ir embora bufando, essas coisas...

Para mim, no oposto da raiva está a calma. E olha que interessante: as pessoas me acham uma pessoa calma! Elas não me veem por dentro. Mas é exatamente isso. A calma que mostro está sustentada na fúria que escondo. Nesse trabalho com a Ana, estamos aprendendo ferramentas para integrar essas polaridades. Vou seguindo.

Percebo que essa fúria vem associada a uma intolerância com relação ao outro. No polo oposto estaria uma atitude tolerante. Escuta essa: escrevi uma tese na área de diálogo interreligioso. Fiz palestras sobre a arte de dialogar, a importância da tolerância. Cansaria menos os ouvidos das pessoas se eu falasse sobre as minhas intolerâncias, não é verdade?

Percebo como é límpido o caminho da vida. A gente anda fugindo da nossa própria sombra. E, no meu caso, e talvez no seu (já que tem gosto de ler) intelectualiza pra entender, justificar, compreender, ensinar, mas nunca se dá conta da tarefa de integrar.

Como integra isso? Como parar de fugir? Como sair do círculo?

Sentei, peguei um caderninho e anotei de um lado intolerância, de outro tolerância. E nessas duas colunas fui fazendo anotações. Percebi que a intolerância surge quando alguém vem e me desfoca, desvia de algo que estou fazendo com interesse. Sabe quando andamos na rua e uma pessoa vem na nossa direção e uma dá um passo para o lado, a outra dá também, depois você tenta o outro e a outra vai também. Às vezes isso acaba em riso. Mas em geral, sou das que ficam irritadas. A loucura é achar que o outro é que está errado. Não é uma graça isso? Lembrei de um amigo, na adolescência, um menino tímido, lidando com sérias questões da sua homossexualidade, encontrou no teatro um caminho do humor... e me lembro dele dizer que brinca nessas horas, dizendo: "me concede esta dança?"

Do lado da tolerância descobri que sou tolerante em coisas que não me afetam diretamente. Quando estou 100% em algo sou intolerante, quando fico distante àquilo, quando o problema é dos outros, é fácil ser tolerante.

Então vi que tem uma outra polaridade atuando em mim. De um lado o calor do interesse. Do outro fico distante, não me afeto com o problema dos outros, a frieza. Então atuo na vida ora com grande interesse, ora com frieza. Ora amor, ora indiferença.

Me lembro do número de vezes das pessoas me dizerem que se incomodam de falarem comigo e eu não dar a atenção devida, não parar para ouvir, continuar fazendo outra coisa. E eu nem percebia isso. Mas dentro de mim ao mesmo tempo havia uma cobrança para ser mais amoroso, que desenvolvesse empatia, etc.

Então cheguei numa polaridade que a Ana vem chamando negativo-negativo. Se entre a intolerência e a tolerência é uma polaridade entre algo positivo e algo negativo, aprofundando chego num lugar entre a intolerância e a ausência. Ou sou intolerante e não escuto ninguém. Ou sou distante e não escuto ninguém.

Como sair disso? Fazer esses mergulhos e ver tudo isso não foi nada fácil. Mas a gente topou entrar nesse percurso... então vamos seguir e ver aonde vai dar.

Olhando para a irritabilidade e a ausência, me vi criança, olhando a dinâmica da relação com meus pais. E, o que ficou muito marcado como símbolos para mim, de pai e de mãe (não é que eles sejam assim, mas o que ficou marcado em mim) é ver minha mãe muito irritada e meu pai muito calmo. Então quando a casa entrava em guerra, ou melhor, quando surgia a guerra entre eu, minha irmã e minha mãe, me lembro do meu pai estar na cozinha, lavando louça, assobiando.

Assobiando!

Evidente que ele fazia isso para se acalmar. Mas sua calma era insustentável. Também me lembro do meu pai ficando nervoso e triste... ele me dava gelo, ficava sem falar comigo e isso me doía muito. Mas era muito raro isso acontecer. Em geral ele mantinha a calma. Mas a que custo? A distância. Ele dava um gelo em seus sentimentos.

Então a polaridade que vejo hoje em mim é a mesma polaridade que vejo nos meus pais (de novo, estou falando das marcas emocionais em mim que os traz como símbolos): raiva e distância. E, daí fiz o exercício: qual o bom do ruin e qual o ruim do bom: o negativo da calma do meu pai era a distância, qual era o positivo de minha mãe, nervosa? A presença de uma pessoa humana, que erra e acerta.

Então desconfiei que eu possa ter feito uma espécie de pacto inconsciente. Herdarei a calma de meu pai e a humanidade de minha mãe.

Assim, respirei, olhei para tudo isso no papel e fiz as seguintes afirmações:

"Eu abro mãe de ser calmo" (não seria uma grande perda, perder uma calma sustentada por tanta fúria contida)

"Eu posso ser uma pessoa humana sem precisar gritar com os outros".

Então, respirei e olhei para o André. Ou seja, limpei o terreno das presenças de pai e mãe e tudo aquilo que os estava representando em mim. Desfiz as imagens que me impus por herança.

O que vejo?

E a resposta que me vem é:

Uma criança que não quer perder.

Aqui abriu um campo de sensibilidade. Me vendo como uma criança na sua luta para não perder. A primeira imagem veio de algum lugar não racional (nem posso dizer que foi uma memória) mas me veio a imagem da criança que está mamando e não quer aceitar a separação.

Olhei isso. Respirei. Senti que ali era um portal para muitas questões.

Desde esse dia tenho sentido falta de ar. Especialmente na hora que inspiro (um dos textos que li do Alexandre foi muito preciso e precioso ao dizer algo como: "que gente não tenha preferência pela inspiração ou pela expiração...").

Eu estava aqui, nessa instabilidade que entrei, desesperado pela inspiração que clamava por completude. Passei alguns dias assim. No encontro com a Ana, uma participante falou de uma angústia. E essa é a palavra que a gente usa (quando tem coragem de proferi-la) para quando dá "a coisa" que a gente não sabe o que é. Eu sinto no alto do peito. Essa falta.

Passei esses dias assim, mergulhando em emoções difíceis. Comecei a ter empatia pelas pessoas que usam drogas. Seria a hora perfeita para a bebida, ou outra droga chegar aqui para mim. O remédio que dê alegria, um veneno anti-melancolia. Fiquei esse tempo observando a sensação, não buscando remédio, não fazendo algo na yoga que pudesse curar (poderiam ter uns asanas para abrir o peito) mas eu preferi seguir o conselho zen: não faça nada! E fui ganhando intimidade com ela. Bom dia angústia! Oi amiga! Ainda tá aqui né? A filha, o céu azul, as árvores... nada cura. Senti empatia pelas pessoas que entram em depressão. Especialmente minha mãe que começou a dela na mesma idade que estou agora. Depois ouvi a Ana dizer do amigo que conheceu, estudo e virou professor da técnica Alexander e não conseguiu curou a dor nas costas. Mas ele foi se transformando, a dor se tornou o talismã. Vista assim, a angústia tá aqui co-autora deste livro, como não? Maravilhosa! Angústia cor de rosa!

Tem algo se reorientando aqui. Estou confiando nisso. Meditar no coração foi bom e foi terrível. Mas estou confiando. Qualquer remédio iria interromper a reordenação e me colocar no velho e confortável sofá de sempre.

Voltei a questão da criança que não quer perder. Não daria para trabalhar de uma só vez tantas dimensões relacionadas a "memória" do desmame precoce.

Então vamos descamando.

Uma tela do holocromos deu uma pista: generosa em excesso no dar, dificuldade em receber.  Lembrei da vez que, num jogo corporal, perdi para uma menina que cresceu em favela. Ela tinha ganas pra correr atrás do que precisava. Eu era morno, as coisas vieram fáceis.

Me veio à memória a dor de um concurso em que ganhei mas não entrei. A banca na entrevista escolheu outro. E na entrega do resultado eu fui lá e tive uma atitude "superior" admitindo que o outro tinha um currículo melhor e se eu fosse da banca também o escolheria. Só que banca não escolhe, dá nota dentro de critérios. Era uma grande falta de ética acontecendo e eu não banquei a derrota, bancando a atitude superior. Dá até uma inveja das pessoas que choram nessas horas...

Então surgiu aqui uma nova polaridade. Superiores e inferiores. Calmos e briguentos. E vi aqui com os dois olhos que Deus me deu, toda a minha história de idealização, tanto sobre o que devo ser quanto sobre as pessoas que escolho me apaixonar. E quando as pessoas ferem essa imagem do meu pai ideal, morro de medo da minha mãe irritável.

Então passei um dia inteiro aqui, brincando a la palhaço de me irritar, de reclamar de tudo. E foi um dia divertido para mim, um pouco chato para as pessoas, imagino. Fiquei reclamando das coisas na hora que acontecia. Foi libertador. Eu posso ser diferente. As pessoa não se afetam. Elas até estão acostumadas. Gera até uma certa empatia. Lembrei daquele meu amigo que me contou a historia da águia e a galinha na trilha (isso está no texto "Expressa-te")... ele era mega carismático e mega reclamão. Isso foi uma imensa mudança nos meus tendões e articulações... não morro se reclamar. Não preciso ficar respirando e bancando o calmo o tempo todo esperando a hora de explodir.

Voltando ao caderno de anotações escrevo: Quando acalmo sou meu pai. Quando enfureço sou minha mãe.
E aí me pergunto: quando sou eu?
Então seguindo os paradoxos resolvo escrever o oposto: quando acalmo sou minha mãe. Quando enfureço sou meu pai.

E foi maravilhoso! Fez todo sentido. Comecei a rever as situações de calma de minha mãe (em especial quando se dispõe a ajudar) e as de fúria de meu pai (em geral destinadas aos políticos e às injustiças contra os idosos, sabe quando o motorista de ônibus não pára pra um idoso? Se vc for do Rio de Janeiro vai saber).

Calmos e furiosos. Limpando o terreno me pergunto:

Quando sou eu?

Volto a frase: não aceito perder...

Mergulho nas lembranças difíceis da infância e adolescência, dos jogos, competições, do esporte...
Outras de adulto: como foram difíceis as perdas... Fico muito colado nas situações, não tenho o olhar panorâmico... fico preso no extremo: lutar para ganhar, abrir mão sem luta.

Mas e se simplesmente depois da luta, perder? Como lido com isso?

Como é simplesmente aceitar que perdi?

Nessa hora meu terreno de memórias me trouxe a lembrança de um amigo querido, o Cristiano, quando tínhamos 15 anos. Me lembro das primeiras vezes em sua casa. Ele tocando violão, cantando Raul Seixas (seguindo as cifras das revistinhas de banca de jornal), o cheiro de incenso, falando de Yin e Yang... uma primeira referência em algo espiritualista... fazia artesanato com durepox, simpatizava com os hippies... e os amigos ríamos dele... e ele não ligava.

Uma vez, andando pelas ruas de Nova Iguaçu, fomos assaltados. E depois do assalto seguimos andando com aquela adrenalina no corpo e ali, cruzando a passarela, ele começa a cantar uma música  que eu ainda não conhecia (clique aqui para ouvir):

"Vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar."

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Carta aberta a Ana Thomaz: meditação


Teresópolis, 28 de maio de 2020.

Querida Ana,

Hoje de manhã me sentei para meditar e coloquei, no início do período de meditação, a gravação da condução que você fez no último encontro da jornada da travessia. Depois da condução eu desliguei o vídeo e fiquei sozinho mantendo a prática.

Começamos com a contenção dada por você com a experiência dos metrônomos. Eles começam com ritmos diferentes. Os metrônomos são aparelhos que tem a função de manter o mesmo ritmo e isso orienta os músicos a marcar o tempo da música quando estão estudando. Só que no experimento os metrônomos são colocados juntos, um "ouve" o outro, e começam em tempos separados. O barulho fica confuso. Mas com o tempo algo extraordinário acontece. Eles começam a entrar em sincronia. Até que todos pulsam juntos em uma só "voz". Aqui um vídeo com esse experimento. E depois de um tempo, você ainda lembrou, eles voltam a pulsar em ritmos singulares, e depois voltam a se unir. Existe uma atração ao centro que é a união.

Com isso em mente fizemos de nossos corações, os metrônomos da nossa prática em conjunto. Observando as batidas do coração e, mesmo sem medirmos, saberíamos que em algum momento eles bateriam juntos. E depois bateriam em separado. Isso nos deu um contexto afetivo à prática... um vínculo entre os participantes... uma sinfonia de corações... e também nos dá um insight da verdade de inter-conexão de todos na teia da vida.

A condução foi mais ou menos assim (recomendo a quem for ler essa minha carta a você que pratique lentamente, dando um tempo entre uma frase e outra):

"Começamos sentindo a pulsação cardíaca. Atenção ao coração, ou a pulsação em alguma outra parte do corpo.

E então vai observando a sua imagem retrocedendo no tempo. A sua imagem o ano passado, o ano anterior...

E assim vai voltando ano a ano, rapidamente como num filme, ficando mais e mais jovem, de ano a ano, vai chegando à adolescência...

E a partir daí além de voltar no tempo e rejuvenescer, você vai ficando menor, uma estatura menor. Você vai ficando cada vez mais criança, diminuindo de tamanho até que se torna um bebê, retorna ao momento do nascimento, muito menor, muito mais jovem...

E depois vai voltando ainda mais, mês a mês no útero, o nono mês, o oitavo, o sétimo, o sexto, o quinto, o quarto e aí a gente já como feto, volta de semana a semana...

Vai voltando até que vira embrião, e aí a gente volta dia a dia, até que vira a primeira célula e volta minuto a minuto até chegar no pulsar.

E ali não tem mais célula, só tem um pulsar.

Você sai do útero e vai para a órbita da sua mãe. Dá uma volta inteira na órbita da sua mãe, o que vai durar 9 meses.

E sai da órbita da sua mãe e há como que um ponto gravitacional que vai puxando todos os pulsares singulares para um único campo. E agora tudo é um campo só, em um único pulsar. Todas as partes se uniram e se misturam e ficaram em um único pulsar. Não há nada mais que esse pulsar.

Mas esse próprio pulsar tem intervalos. E a gente vai alargar os intervalos. Entre um pulsar e outro, o intervalo, o silêncio vai ficando maior.

O pulsar não vai embora, é o silêncio que aumentou. Aumentou de tal maneira que a gente não ouve mais o pulsar. A gente sabe que o pulsar está lá, mas não ouve.

A gente ouve o silêncio, o intervalo. Vamos colocar a nossa atenção nesse silêncio, nesse intervalo.

E a nossa atenção não vai vir da nossa mente que ordena, que presta atenção. Quem vai dar atenção a esse silêncio é o nosso coração, a gente dá atenção a esse silêncio pela pulsação do nosso coração.

Escuta esse silêncio com o coração. E vamos reconhecer que sempre nesse silêncio surge uma pulsação. E é com essa atenção, com esse coração singular que faz parte de uma grande sinfonia, afinando a nossa orquestra, com esse intervalo ativo, a gente volta a conversa."

Com essa condução nós começamos o encontro de ontem.
E com ela iniciei minha prática de meditação de hoje de manhã.

É difícil falar sobre o que se passa quando estamos sentados. Porque estamos parados. Para quem vê de fora parece que nada acontece. Mas muita coisa acontece para que nada aconteça.

Fiquei sentado por uma hora. Antes de ouvir a sua condução, coloquei o relógio para despertar para daí a uma hora.

Não consigo ficar quase nada de tempo observando só o silêncio, o intervalo entre a pulsação. Mas era assim, estavam presentes ao mesmo tempo a pulsação, a pulsação do meu coração e o silêncio. Ora um, ora outro, ora ambos, ora a dispersão em pensamentos, imagens... isso é parte do exercício, creio eu.

E o corpo estando presente... volta e meia chamava a atenção para outras partes. Uma coceira no rosto por exemplo. Um pontinho na maçã do rosto coçando. Uma sensação de ar. E aí vem a vontade de coçar. Lembro do que você chama de inibir a ação. Então não mexi o braço. Mas senti o ombro, de uma forma muito sutil, criar uma tensão (como a dizer: vou me mexer) e no momento seguinte ele relaxar.

Depois veio uma percepção que me pareceu mais profunda. Anterior mesmo ao estímulo a me mexer, um pensamento. Um pensamento que reconhece a coceira. Então comecei a entrar num zigue zague entre o pensamento e o retorno ao coração e o espaço foi alargando, o espaço entre o pensamento e o silêncio da mesma maneira que você havia conduzido o espaço entre um pulsar e outro. Estava mais claro para mim os momentos em que o foco saía do coração e ia para os pensamentos.

E ficou nítido que variava a frequência mental. Quando surgiam os pensamentos, eles eram frutos de uma certa dispersão, uma oscilação maior da frequência. Quando voltava ao coração, havia uma outra frequência, mais concentrada, mais aqui, mais presente (não sei bem que palavra usar).

E assim o tempo foi transcorrendo. Idas e vindas, vindas e idas. Admirado desta vez de estar mais afiado, mais astuto, a perceber a hora em que os pensamentos começam, as alterações na respiração, uma sensação e outra... E eu acho, não lembro bem, que até comecei a dar atenção a alguns pensamentos, não do lugar da dispersão, mas do lugar do coração. De qualquer forma, estava ali sem nenhuma busca por êxtase, sem nenhuma busca por algo em especial. O simples observar. O reconhecer o que é, aqui e agora.

Num determinado momento, quis experimentar a possibilidade de sentir o corpo, parte por parte (tal como venho fazendo em minha prática pessoal de vipassana), mas mantendo o centro nesse lugar do coração. Fiquei na dúvida se faria sentido essa mistura, essa junção de técnicas... Porque em minha prática de vipassana não é um simples passar a atenção, mas uma investigação da impermanência, da mudança nas sensações.

Investigação...

Quando a investigação vem da frequência da mente que analisa?
Quando a investigação vem da frequência da mente que só sente?

Nos textos que ensina vipassana, Buda fala: observe a sensação na sensação, o corpo no corpo, a mente na mente, os conteúdos mentais nos conteúdos mentais...

Então não é a mente que observa o corpo... é o corpo que observa o corpo!!!

Como fazer isso?

É porque é muito sutil e é difícil falar disso aqui fora. Mas lá no interior da gruta do corpo, onde há silêncios e ecos de silêncios... faz sentido.

Estamos falando da qualidade da observação. Uma observação que reconhece mas não entra em elaborações, não nomeia, só sente. E vez ou outra se dá conta da mudança, da impermanência, da vacuidade, do campo todo, da parte, do todo, da vontade, do amor, do surgir dos pensamentos, do desaparecer dos pensamentos, das memórias, das polaridades e de uma realidade além das polaridades...

Tomei a decisão fiz uma passagem da atenção pelas partes do corpo... e fui experimentando essa possibilidade. Cada parte do corpo sendo vista ora pelo coração/gruta/silêncio/pulsar, ora da mente/superfície/pensante/avaliativa. Oscilando e trabalhando...  Me lembro de quando retornei àquela coceirinha e ia aprofundar as percepções ali...
O despertador tocou.

A manhã foi passando, tivemos outro encontro da Vila XI, e ao final fiquei relembrando isso e fui conversar com a Gabriela sobre os nossos próximos passos. Como estamos vendo nossa ligação com a Vila XI e nossos processos pessoais.

Contei pra ela que mudou muita coisa nas minhas expectativas com relação a vida, trabalho, local de moradia... para nada disso tenho planos definidos. Mas que eu gostaria de pedir ajuda a você nesse meu processo de aprendizado da meditação.

E aí ouvi também a Gabriela falar da vontade dela em aprender a meditar e que ela via em você uma pessoa que poderia ajudar. Uma bela sincronia de corações, não é mesmo?

Conversando aqui... vai ficando claro que são muitas ferramentas, muitos processos que transbordam e ressoam, e que existe um lugar que é anterior a tudo isso.

Anterior, do anterior, do anterior...
Interior, do interior, do interior...

Gostaria de aprender a meditar.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Expressa-te


Eu estava aqui ao longo do dia pensando em vir escrever o texto e não sabia bem como começar.
Fiquei disperso com tanta informação, tantas dimensões que estamos tocando nessa etapa da jornada.
Não sabia onde essa criação aqui, que agora está em suas "mãos" iria chegar.
Se seria mais informativo, mais pessoal, ou mais ficcional...
Se teria citação dos relatos emocionados de outras pessoas do grupo...
Não sabia mesmo como começar... nem por onde seguir...

O começo, dependendo da estrutura do fenômeno, pode ser determinante para o desenho do conjunto...
Vamos pensar assim: o texto todo é um conjunto... que é mais que a soma de suas partes...
Em certo sentido o conjunto vem antes das partes
Mas também é verdade que das partes pode-se ampliar a visão e perceber o conjunto.
Me lembro de ler o Rubem Alves e ele dizer que as ideias têm vida própria...
Vão se ligando umas às outras como as contas de um fio...
Isso me levou a ler Hermann Hesse em seu imenso O jogo das contas de vidro, uma outopia futurista. E me apaixonar por ele.
E depois descobrir que ele é sempre igual. Depois de O Lobo da Estepe, li Sidarta (aliás, um livro mais budista que os próprios budistas) e um dia, de repente, ouvindo a música do Teatro Mágico, Sonho de uma flauta (clique aqui para ouvir também), soube de seu pequeno conto citado ali no título da canção e fui ler.
Descobri naquelas quatro páginas o Hermann Hesse inteiro!!
Mil páginas em quatro.
O todo na parte.

O matemático Mandelbrot, estudando as formas altamente complexas da natureza, exemplificava a teoria dos fractais mostrando como nos pequeninos pedaços da couve flor, estava a forma da couve flor inteira.
Lendo a Teia da Vida do Capra, entendemos que a geometria dos fractais e uma série de novas teorias nas diversas ciências inauguram um novo paradigma que ele chama de ecologia profunda, entre tantos nomes que estão sendo usados. Uma perspectiva que vem mostrando a ligação de todos os seres numa grande teia de inter-relações, uma visão sistêmica da vida.
Assim, no pequeno conto do Hesse, estava toda a sua obra e sua busca de compreender os caminhos da vida que levam a sabedoria na simplicidade.
Mas é claro que eu não saberia disso se não tivesse percorrido o trajeto todo.
O Rubem Alves, depois que se tornou avô, fala que percorreu o caminho da vida para se deleitar brincando com as crianças.
A gente poderia brincar a vida inteira se seguisse o conselho dele.
Só que não ia dar certo.
Precisa percorrer pra saber que não precisava sair do lugar.
Mas se não saísse do lugar, não saberia.
Portanto, estamos destinados a viver!
A viver a travessia que chamamos vida.
A viver, enfrentar o percurso e depois retornar de onde saiu.
Mas retorna diferente. Igual, mas diferente.
É sobre isso que vamos falar hoje: para trás não há caminho.
Na verdade já falamos. Mas vamos percorrer um caminho juntos.

Essa questão entre todo e parte envolve a história do pensamento humano nas diferentes áreas.
E aparece aqui na hora de escrever um texto.
E vai aparecer na forma como nos relacionamos.
Existe pessoa fora da relação?

A vida inteira me encantei com os pensadores sistêmicos.
Visto pejorativamente como ecléticos pelas diferentes escolas científicas, eu achava que eles é que eram sábios.

Articulavam saberes diversos e o que diziam ressoava em um lugar profundo em mim.
Então eu sempre quis esse caminho de pensar de forma sistêmica.

Me lembro de uma vez fazendo uma trilha na floresta e meu amigo me contava de um livro do Leonardo Boff. Ele partia da história da águia e da galinha, para falar de dimensões muito diversas. A história, contada por James Aggrey, um educador popular, incentivou a luta pela independência do povo de Gana. Leonardo Boff pegou essa história e trouxe seus símbolos para a atualidade e mostrava os arquétipos águia e galinha como estruturadores da realidade das emoções humanas, assim como da constituição do universo, das forças físicas, biológicas, da espiritualidade, da filosofia, da política... Essa conversa era tão interessante porque era um saber que me ligava ao todo. Um conhecimento da realidade que não era uma curiosidade, mas uma ética, um estar no mundo de forma ativa e consciente do meu lugar aqui.

A contação de histórias, seus símbolos, tem esse poder de tocar a inteireza, mais do que o entendimento racional. Mas quando eu falava de Leonardo Boff na faculdade, os professores torciam o nariz: era pseudo-ciência. Quando falei de Rubem Alves na teologia torciam o nariz, diziam que ele era um bom poeta. Assim fui... buscando algo diferente. Algo que tivesse alegria junto com crítica. Nada me marcou mais nos anos de juventude do que ouvir Milton Santos numa palestra no Planetário do Rio de Janeiro. Falando de estrelas, da Terra, da opressão colonial e de uma nova era... e... sempre sorrindo. Eu não queria só o conhecimento, queria o sorriso também.

A parte e o todo.
O pensamento e a inteireza.
Como eu disse, as ideias têm vida própria. Estamos sem planejar, citando Fernando Pessoa:

Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.

Agora imagine... a inteireza e profundidade do que somos como humanos. Então olhamos para o mundo e não vemos, não deciframos a ordem inerente às coisas e aos fenômenos. Chamamos de caos. Não parece ter um padrão, uma forma, uma explicação. Mas imagine que haja uma forma, ainda não decifrável pela mente. E essa forma também existe dentro da gente, afinal somos natureza. Imagine que essa forma de dentro possa reconhecer a forma de fora... desde que a mente não atrapalhe. Uma espécie de linguagem intuitiva. E ao combinar a forma de dentro e a forma de fora, através dessa linguagem própria, você possa extrair alguma informação compreensível para você. Esse é o holocromos que a Ana apresentou no décimo encontro da jornada.

O holocromos é um sistema terapêutico desenvolvido por Moni Oliveira que apresenta 64 telas com desenhos de fractais. Há uma ressonância entre a tela e o inconsciente, e a pessoa vai escolhendo as telas, que depois vão ser lidas, trazendo luz às questões para serem trabalhadas. Sob a condução da Ana fizemos uma leitura coletiva com as 8 telas escolhidas por participantes do grupo.

É um sistema interessantíssimo!

Lembra um Tarot, nesse mecanismo simbólico de expressão do inconsciente. Mas a leitura não aponta tanto para previsões e sim para introvisões. Que acabam levando para orientação de caminhos.

Lendo as 8 telas a Jane, uma professora de holocromos que faz parte do nosso grupo, disse mais ou menos o momento em que estamos vivendo:

"Começamos com um sentimento de abertura para viver esse processo de autocriação, com um sentimento de saber-se espiritual e que temos capacidade de exercer uma liderança. Mas há uma confusão: são tantas as dimensões envolvidas que ficamos querendo integrar todas elas mas ficamos sem saber como. Estamos abertos para transitar na multidimensionalidade. Mas, apesar de perceber que tudo isso faz sentido e que estamos vivendo intensos processos de transformação, estamos num momento de dispersão, tendo dificuldade em trabalhar com nossa capacidade criativa. Não estamos conseguindo organizar essas interações.

Há muita emoção contida, oprimida. E a capacidade criativa que precisa se expressar não está encontrando caminhos. Estamos revisitando nossa criança interna, vendo em nós uma polaridade entre um movimento de doação excessiva e uma retração de se fechar para receber. A confiança fica abalada e reprimimos.

Precisamos ir para um lugar de neutralidade, equanimidade, para olhar essa feridas e confusões e encontrar clareza. É preciso se expressar para clarear. É o movimento de expressão que vai trazer clareza. Caso contrário correremos o risco de ficar em pensamentos fixos, repetitivos, causando uma intoxicação, um embotamento dos chakras.

A leitura sugere o resgate da criança interna, um aterramento, buscar a vitalidade e força de realização e materialização. Usar a força de agressividade que libera e constrói ao mesmo tempo.

A criança interna precisa de acolhimento e amorosidade. Sentir que fomos amados na infância. Assim abrimos a possibilidade para nos transformar. Não ficar no desequilíbrio do dar e receber, mas entrar no movimento das emoções, ganhando flexibilidade, aceitando o fluxo das coisas, liberando-se da rigidez da mente, da resistência. Enfim: "se joga!"

Ela nos disse que há um força enorme e que a mudança será inevitável. Em algum momento vamos ter que dar o salto para o novo. E acessar o potencial de se perceber único."

Ao final ela e Ana lembraram que a leitura retorna ao começo: uma abertura. É o que estamos fazendo, continuamente em processos não lineares. Dar a volta e retornar a si mesmo. Cria o caos e retorna para uma nova integração.

Não sei exatamente o que me faz estar na jornada com a Ana. Mas é muito forte nela essa articulação sistêmica de saberes de uma forma que nunca fica só no plano do intelecto. Ela está sempre usando os saberes como artifícios para processos de transformação e autoconhecimento que levam a uma radicalidade de conexão com a fonte original da vida, de sermos quem somos, sem se deixar determinar pelo que vem de fora, sem se perder nos condicionamentos da mente e nas interferências das emoções estagnadas.

Eu poderia ler o livro do Capra e ficar cheio de saberes... mas sem saber muito bem o que fazer com tudo aquilo. Transformar aquilo numa nova ideologia, tentar convencer as pessoas a pensarem de uma forma diferente para, assim, mudarmos o mundo. Como se a mudança de paradigma dependesse de convencimento. Mas ora! convencimento era parte do paradigma anterior.

Aí vem a Ana e já trilhou um caminho que articulou esses saberes com um processo de integração nela mesma. Então, ouvir a Ana é um processo muito semelhante ao de ouvir as histórias, porque ressoa em algum lugar na minha inteireza. Só que ao invés de recorrer a símbolos ela relata seus próprios processos. E o faz inteira e verdadeira. Então ressoa dentro da gente que a ouve. E daqui de dentro vamos viver os nossos próprios processos.

Isso dá uma liberdade de ser singular. Não é um convencimento, não é uma ideologia, não é um acúmulo, não é uma organização institucional. É uma pessoa que conta de seus processos, das ferramentas que usa, dos artifícios que vai criando para lidar com sua própria mente e, nesse transbordamento de si nos afeta. Vamos fazendo nossos próprios processos pessoais também. E como um dos frutos do processo dela é o amor, uma vinculação muito amiga e carinhosa, naturalmente nos sentimos ali acolhidos e visceralmente em processo junto.

Nesse dia ela contou de um biólogo, Candace Pert, que descobriu que as nossas células, mesmo fora do corpo, continuam reagindo às emoções que sentimos. A capacidade de perceber, sentir e pensar não estão circunscritas no cérebro, estão nas células do nosso organismo. E continuam atuando como micro-mentes mesmo fora do corpo, como é o caso da saliva. Esse é um tipo de conhecimento que você não consegue deixar engavetado: minha mente não está no cérebro e eu não estou circunscrito ao meu corpo.

Onde está a mente? Está no corpo, num lugar perto do coração, dizem algumas tradições muito antigas.

Se eu não estou limitado pelo corpo... onde estou?
Na teia da vida, na rede de inter-conexão, onde estamos todos...
No nível sub atômico, estamos todos conectados.
No vasto campo sistêmico estamos inseridos.
Na campo primordial da vida.

Por isso o processo que um vivencia afeta o caminho do outro.
Estamos tão vinculados...

E o que fazemos quando estamos aqui?
Nada. O fazer se faz por si mesmo.

Hoje mandei para minha prima aquele texto sobre minha criança ferida ferindo um menino de 5 anos... (o texto se chama "Eu e...")
Ela me ouviu falando algo a respeito e quis saber o que tinha acontecido em nosso passado. Quem eram os adultos maus da minha infância.

Enviei para ela e fiquei fazendo yoga ao sol.
Provavelmente quando ela terminou de ler... a quilômetros de distância...
O menino de 5 anos veio até mim, me viu deitado em relaxamento e começou a fazer carinho nos meus cabelos.

Uma atuação no campo. Um movimento na teia. E eis que há um retorno.

Nossa criança precisa de acolhimento, sentir que fomos amados...

Chego a pensar que toda pessoa que está em criação, na sua conexão com a fonte, é, ela mesma, um fractal. Sem as distorções da busca por finalidades, compensações, legitimidade, a pessoa sendo ela mesma, quando ela até esquece que é ela e simplesmente é, essa pessoa é um fractal, aponta para a fonte, revela o todo. E olhar, ouvir, conversar com essa pessoa, é olhar, ouvir e conversar com a fonte, com o todo.

É assim que a verdade se revela na nuvem, na folha, na árvore, no pedacinho da couve flor, na criança brincando, no conto do Hesse, na música do Teatro Mágico... e pode estar numa pessoa também, assim que ela abandona toda a casca de condicionamentos em sua visão, deixa de lado as marcas e ressentimentos em sua emoção, se esvazia das certezas, entra nesse estado de vacuidade e pode ver simplesmente as coisas. Visto daí: o mundo é perfeito. E o que essa pessoa faz, ressoa... revela a verdade sobre quem somos.

sábado, 23 de maio de 2020

Transmutações à beira do mar


Eu venho contando a você um tanto do que estamos vivendo nessa jornada com a Ana.

E essa é mais uma das nossas conversas e para começar quero te sugerir a pensar que, apesar de estarmos no começo do texto, o final da conversa já está em você.

Não é que você vai pular todas as linhas, que vai dar uma passada de olhos e ler só o último parágrafo. Não, não. Quero dizer que vamos tecer aqui juntos umas ideias e que o final já está aí, dentro de você. Eu não sei o que é. Mas não é algo que venha de fora. É algo que já está dentro. 

Preciso também te dizer que o grupo todo da jornada está tão criativo que conversas como essas, em diferentes linguagens, já se espalham de uma forma incontável.
Então quero que você saiba que essa aqui é só uma pequena parte do todo.
E isso não diminui em nada o valor da nossa simples e boa conversa.
Afinal, a parte contém o todo.

Se você estiver aqui de uma forma inteiramente presente, vai conseguir, não sei bem como, ouvir também as outras histórias e saber das múltiplas criações que aconteceram ao longo desses encontros. 

Palavras alusivas...
Um dia escreverei um texto puramente alusivo, em alusão ao mistério.
Um texto puramente silencioso. 
É o sonho de todo escritor.
Cada palavra uma delimitação... cada não dito, uma expansão.
Palavras e silêncios... assim a vida se compõe no livro do universo.

Talvez se junto com a leitura, a gente conseguir perceber o silêncio. No silêncio talvez lhe venham as outras vozes, já que estamos quebrando paradigmas e fronteiras de tempo e espaço. Então lhe chegarão outras cores, sons, texturas, ritmos, risos, lágrimas, experiências... que irão compor com a sua própria experiência essa nossa jornada da qual somos todos a (p)arte e o todo.

Um só livro pode conter a biblioteca inteira. 
Mas isso depende mais do leitor do que do livro.
Um leitor que, assim que lê, começa também a escrever as páginas da sua própria vida, suas próprias histórias é, ele próprio, um livro.
Então já não sei se falo com uma pessoa, ou se com os diversos personagens de uma história de vida.

Além disso, nesse continuum de mudanças e influências mútuas... o que garante que quem trouxe esses pensamentos ao escritor não foi você mesmo quando saiu em busca de um pensamento?

Enquanto faço o que amo, escrever, sinto que estou simplesmente cumprindo o destino.

Um destino que gira como um carrossel.

Não é linear. É cíclico.

Você consegue levar sua imaginação ao passado, em algum momento da vida, e de um momento a outro, ligando os diferentes pontos, saber qual foi o momento inicial que fez com que essas palavras partissem em sua direção? Por que foi que você me fez escrever tudo isso? De onde você tirou essa ideia da Ana nos propor uma jornada? De qualquer forma, te agradeço por tudo isso. Você que é o início e o fim desse texto.

(às vezes me pergunto se converso com o leitor ou o próprio criador)

Vou te contar o que aconteceu no dia em que a Ana convidou todo o pessoal da jornada para fazermos nosso encontro na praia. O grupo se reuniu e a Renata conduziu uma prática de yoga. Ao final ela cantou uma música, de Troy Rossilho, chamada Inimaginável (clique aqui para ouvir a música). 

Então ficamos ouvindo a música sentados de frente para o mar. Ficamos olhando o ir e vir das ondas, ouvindo a música, o som do mar, sentindo o calor agradável do sol da manhã, fazendo uma viagem para dentro:

"Um dia eu vou me perder
Eu vou entrar fundo
Eu vou atravessar a fronteira
Mais escura do mundo
Um abismo nublado
Pode estar tramando algo
Inimaginável
Inimaginável
Eu vou fazer turismo
Dentro do próprio organismo
Eu vou me aventurar no meu centro
Não posso fugir de mim se só tenho saídas pra dentro"
Ana agradeceu pela aula e pela música e conduziu um exercício mais ou menos assim: (sugiro que você faça pausadamente, dando um tempo a cada frase)

"Chamei vocês aqui para observarmos os ciclos das ondas junto com os ciclos internos e os ciclos da  vida.        

Comece observando a sua respiração.

Em especial vamos perceber os ciclos.

Assim como o ciclo da nossa vida começa na primeira inspiração e termina na ultima expiração.

Ciclos dentro de ciclos.

Perceba o ciclo da respiração. A inspiração começa. A expiração conclui. E um novo ciclo se abre.

E ao mesmo tempo a pulsação do coração também está aí.

E mesmo a inspiração tem um começo, uma duração e um fim. 

E a expiração também tem seu começo, seu meio e o seu fim.

Perceba todos esses ciclos. O ciclo da inspiração, o ciclo da expiração... e o ciclo que se inicia quando o ar entra e expira quando o ar sai.

E assim temos um número de batimentos cardíacos por minuto, uma quantidade de vezes que respiramos por minuto. Temos o ciclo dos minutos. Um minuto, outro minuto e assim por diante.

E dos minutos, sentindo o a respiração e a pulsação do coração, lembre-se que há o ciclo das horas. 

E depois os ciclos dos períodos do dia: manhã, tarde e noite. Perceba como são cada um desses períodos para você. E o ciclo do dia e da noite.

E aí com sua respiração e pulsação, lembre-se do ciclo dos dias da semana, de segunda a sexta, as atividades que transcorrem do início da semana até o final da semana.

O sábado e domingo tem seus ritmos próprios também, para muitas pessoas.

Temos os ciclos da lua que é um pouco mais do que os 7 dias para cada uma das suas quatro fases.

Os ciclos dos meses. E as estações do ano. E a passagem dos anos.

Para alguns aqui do grupo é comum perceber os ciclos por setênio, de 7 em 7 anos... reveja sua passagem no tempo de 0 a 7, de 7 a 14, e assim por diante...

Existe o ciclo de 10 em 10 anos...

Ou ainda um ciclo mais amplo: a infância, a adolescência, a fase adulta, a velhice...

Existe o ciclo de 100 em 100 anos...

Os ciclos das gerações...

E assim, um círculo dentro do outro.

Perceba todos esses círculos... da respiração, às gerações, passando pelas fases da vida, pelas fases do ano, do dia...

Agora que internalizamos os ciclos, vamos olhar as ondas do mar.

A cada vez que você expira, a onda vai até a areia da praia.

A cada vez que inspira, as águas retornam ao mar.

Na sua respiração, as ondas do mar.

Agora imagine-se dentro da água, boiando no fundo, sentindo a passagem das ondas que te elevam a cada onda.

Então você faz como um surfista. Que numa prancha, vai junto com a onda... e quando entra na onda, não há movimento, ele consegue ficar em pé. E assim ele vai até a areia...

Eu trouxe vocês aqui hoje para dizer essencialmente uma coisa: não subestimem o poder da observação. É isso que temos falado a cada encontro.

Para mim, o que chamamos de inibir as ações, no significado que é dado na técnica Alexander. Não é ficar inibido, tímido. É inibir a primeira reação que vem a mente. E observar. Um caminho de observação. E agir depois dessa percepção. Ao invés de agir no automático.

Assim como o surfista, ir com a onda, estando parado. Ficar parado sobre o prancha enquanto a onda o leva é a grande aventura. Observar é a grande aventura. Um caminhar para dentro, a aventura de ir para o próprio centro, se despindo das marcas emocionais que aprisionam nosso olhar, e por isso só temos saída para dentro.

É isso que estamos chamando de amor. 

Entrar em relação sem um pensamento e uma ação pré-determinados, sem reatividades.

Sem escudos. Sem velhos condicionamentos.

E isso gera uma transformação pessoal.

Só então acontece o amor.

Amar é se transformar."

Depois de ter dito isso, Ana ficou em silêncio e o grupo ficou um pouco em silêncio também. 

E aos pouquinhos cada um foi fazendo seu movimento. E ainda juntos, algumas pessoas cantaram umas músicas. Foi um momento artístico muito sensível. A Jaqueline trouxe um poema. Nesse momento já estávamos em um círculo. Ela foi até o centro e disse:

Ciclos do encontro

a relação.

da relação,
o conflito.
do conflito,
a potência.
da potência,
a ação.
da ação,
o não.
do não,
o sim.
do sim,
a vida.
da vida,
a morte.
da morte,
o novo:
ENCONTRO

Só há verdadeiro encontro, e portanto verdadeiro amor, quando se permite viver o fluxo desses processos todos. Que geram a morte de tudo aquilo que sustenta a identidade fixa. E essas mortes dos condicionamentos, esse ficar pobre de crenças que vai permitir a chegada do novo. 

Repletos de vida e coragem, cada um foi seguindo um caminho, tínhamos o dia inteiro para integrar tudo aquilo que estava sendo sentido na relação com o mar...

Eu fiquei me observando, mas ao mesmo tempo, estava muito curioso para ver o que aconteceria com as pessoas ali. Acho que pela vontade de vir aqui te contar tudo isso, fiquei com vontade de registrar o que se passava com cada um. 

Não deu para acompanhar todos mas posso te dizer que uma moça, que tinha grande paixão pela música, foi caminhando até a água, molhou os pés e estava encantada com o som das ondas, seu ritmo, sua profundidade... e ali naquele ambiente de abertura e criatividade ela ficou curiosa para ouvir o som de dentro do mar. 

Mergulhou. E nadou para um pouco mais fundo. Debaixo d'água foi ouvindo, ouvindo e aprendeu a discernir as canções das baleias, que se comunicam umas com as outras a centenas de quilômetros de distância. Nossa amiga ficou tão encantada com a sonoridade e percepção das baleias que se desencantou inteiramente com os limites da mente humana. E naquele misto de encanto e desencanto, cantou uma canção triste... que foi se transformando num êxtase de vida a tal ponto que sua pele foi se transformando... e passo a passo a moça se tornou uma baleia e seguiu junto com as outras da espécie que vivem no fundo dos oceanos. E as amou.

E assim o grupo conduzido pela Ana na jornada da travessia foi, um a um, se transmutando.

Um amante das ideias ganhou asas e seguiu com as gaivotas, e viu como estava cansado dos pensamentos rasteiros a que se dedicava ao longo de toda a vida. Voou feliz. Uma amante dos ciclos mais longos, cansada da ansiedade humana em sua busca por finalidades facilmente substituíveis, pode sintonizar e ouvir as histórias que as pedras contavam umas às outras na beira do mar e ficou ali parada, reconhecendo ter nascido para contemplar. Floresceu pedra. Outros foram seguindo e se transformando guiados pelo encanto e pela redescoberta de si mesmos. Teve gente que virou areia. Vento. Peixe. Palmeira. Um outro virou formiga, encantado pelas miudezas. Uma menina queria virar bambu mas fazia tanta questão de começar broto que surpreendeu-se bambuzal, e descobriu a origem da paz, palavra tão procurada e jamais atingida. Ficou sem palavras e a alcançou. Um outro floresceu no cacto e desvendou o segredo do amor. Teve gente que se iluminou vaga-lume. E um ardoroso comunicador,após a meditação guiada, silenciou tão profundamente que pode adentrar o mundo dos ecos e começou um diálogo no universo dos morcegos e, assim, já não pode voltar atrás. Uma amiga foi ao mar, nadou até a chegada do rio e descobriu na subida seu caminho: virou rio ou montanha, não se sabe. E teve um que virou sal e mergulhou feliz no mar da dissolução.  

Eu via aquilo tudo e não conseguia acreditar. Não tinha ideia até onde essa observação dos ciclos poderia nos levar. Estavam todos felizes com tamanho acontecimento. E ninguém ansioso querendo ir atrás um do outro. Cada um, cada uma, em sua escuta, sentia quando era seu momento de seguir e transmutar. Sem competições, sem comparações. Apenas um reconhecimento. Um destino. E ninguém sofria com a ideia que estaríamos perdendo nossos amigos para sempre... uma estranha intuição nos dava a confiança que entraríamos num outro tipo de vínculo. 

De repente, ao meu lado, um menino sentado na areia, começou a dedilhar o violão.
Cheguei perto, me sentei ao seu lado, e ficamos ali aquecidos pela fogueira.
O som do violão me levou a um estado muito relaxado de paz.
Começou a cantar uma música que começava assim:
"O sol Manhã de flor e sal E areia no batom" (Para ouvir a música inteira clique aqui)

Naquela mesma hora não acompanhei mais a letra da música exatamente, mas fui embalando um voo na direção do sol...
Percorri toda a superfície da água do mar...
E quando parecia que eu ia chegar ao sol que se punha no horizonte
Ou a um país além do mar
Percebi que eu já não sentia o frio do entardecer.
Mas um calor.
Percebi que voltei à barriga de minha mãe.
Pude nos ver construindo em parceria a placenta.
Eu e minha mãe.
Dela, de seu dentro, e depois de seus braços, seu colo, seus peitos, seus beijos
recebi abrigo quente
Suficiente
Para hoje estar aqui
Pleno de carinho e calor
Sorrindo amor
Ternura, compaixão
Renconciliação

E meu amigo, enquanto terminava a música
cantou o último verso: "Todo homem, precisa de uma mãe."
deixou de lado o violão
e virou mãe.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Uma conversa de casal


Quando ela chegou, eu estava na cozinha externa, sentado no banco comprido do mesão.
- Oi.
- Oi, bom dia!
- Bom dia. Dormiu bem?
- Sim... estou bem descansada. Fazia tempo que não dormia bem assim. E você?
- Não sei bem. Tive muitos sonhos, não me lembro direito.
- Mas como você tá agora?
- Pois é. Não sei, tô meio estranho, tá tudo meio esquisito.
- A jornada né?
- Acho que sim. Estamos vivendo uma travessia. E o processo está muito intenso.
E sentou-se do outro lado da mesa.
- Sim, tá muito intenso pra mim também. Pra todo mundo.
- Nossa! Não imaginava que poderia ser tão intenso. Não é um simples aprender alguma técnica ou um conhecimento novo... remexe em coisas internas e aí desestabiliza, tudo parece virar de cabeça para baixo.
- Sim. Uma coisa que me ajudou bastante foi a sessão de estudos de astrologia com a Lívia. Olhando para a mandala ela foi trazendo os símbolos de cada casa e eu fui me vendo, me descortinando. Estou vendo essa coisa da raiva ser minha primeira reação às contrariedades e lá ela falou de uma coisa escondida (talvez no inconsciente) de uma necessidade de ser valorizado... então estou vendo essas coisas como uma polaridade, de um lado eu busco valor, de outro sinto raiva pois desvalorizo o outro (e na verdade a mim mesma) e esses dois polos fazem triângulo com uma vontade de amar e cuidar que acabam me levando a querer resolver as coisas, implementar as soluções justas, sem dar chance aos outros encontrarem por si mesmos seus caminhos.
- Uau! Quanto material para se olhar.
- É... mas isso é tudo muito intuitivo, não dá pra ficar só racionalizando. Ela mesma falou: ouve isso e deixa todo esse material ir decantando em você... tenho a impressão que isso vai se integrar nas minhas ações e eu mesma nem vou precisar fazer nada.
Ficamos um pouco em silêncio. Daí eu falei:
- Eu tenho uma sensação estranha: parece que eu nunca te vejo. Esse tempo todo juntos... eu olho pra você, mas... sem te ver. Sem te ver de verdade, sabe? Ver quem você é.
- Como assim? O que você vê então?
- Não sei bem... parece que é uma imagem turva, às vezes parece que há um véu que distorce seu corpo, suas expressões faciais. Isso vai parecer uma loucura... não sei bem como explicar. No último encontro com a Ana, enquanto ela falava de biomagnetismo, liberação de emoções, eu fui te olhar e parecia que a imagem ficava turva, como se duas imagens diferentes se sobrepunham, e havia um pequeno deslocamento para lá e para cá, como se eu visse duas: uma, a pessoa que eu costumo ver... e outra... uma pessoa nova, que quase nunca vejo, mas que às vezes aparece, que parece ser a verdadeira.
- Fala mais.
- Não é que você seja duas... é que meu olhar primeiro, vem totalmente antecipado por uma emoção minha. Que pinta você das cores da minha emoção. Sempre estou achando que você pode estar zangada, querendo mandar em mim.
- Sim, sim, são projeções.
- Pois é, eu projeto o filme e você é uma personagem, mas... eu sei que tá errado, mas não consigo sair disso.
- Eu sinto a mesma coisa. É difícil interpretar suas expressões. Às vezes você está só calado eu acho que você está triste ou com raiva, e logo acho que é comigo. E aí já vem uma enxurrada de pensamentos para contra argumentar coisas que você nem falou.
- Loucura, né? Eu às vezes olho para você e você parece estar brava. E você está bem, mas eu não consigo perceber assim. Ouras vezes é assim: quando você vem e pergunta se eu estou bem. Pronto. Eu já sei que você não está bem, porque você deve estar achando que eu estou mal, mas eu estou bem, mas você está vendo tudo com cores do seu mal estar... nossa! Isso é uma embolação! Então qualquer coisa que eu responda você já leva a mal... você já percebeu isso?
Silêncio
- Ah... eu prefiro não responder agora. Senão pode vir uma resposta muito do mental.
- Verdade. E essa confusão toda não é só da vida de relação. Isso é da própria mente. Quantas vezes a gente tá nesse estado, cheio de pensamentos, com as marcas emocionais na superfície da mente. As estrelas estão no céu e não vemos. O céu tá azul e a gente não percebe. Então é uma mente inferior mesmo. Essa é a nossa mente. Acho que a gente vai evoluir, mas preciso reconhecer que minha mente é muito assim. Aí junta uma pessoa de mente inferior com uma pessoa de mente inferior... e o cotidiano da relação fica assim...
- Projeção em cima de projeção em cima de projeção... sintoma sobre sintoma sobre sintoma. E às vezes tem um campo a nossa volta, né? Então por vezes eu sinto emoções que parecem que não são minhas, mas das outras pessoas que convivem com a gente.
- Sim, às vezes eu me pego com um gestual e um sentimento que acho que são de um amigo. Esse é o nosso mundo. A Ana quando falou do biomagnetismo estava dizendo que pode acontecer de uma bactéria patogênica se alimentar de um vírus estruturante. Depois vem um fungo e se alimenta dessa bactéria. Isso gera um equilíbrio. Mas um equilíbrio no adoecimento.
- A gente se acostuma com o que tá ruim. E se esquece do que somos quando conectados com a fonte original.
- Então nosso trabalho não é simplesmente tomar um remédio para eliminar o fungo e eliminar a bactéria... ou atuar com os pares de ímãs seguindo o protocolo do Dr Goiz, ou seja lá qual técnica de cura poderíamos usar. Mas mudar o comportamento. Acolher os sinais que os sintomas trazem, para uma mudança de comportamento, de relação... ir mais profundamente nas causas... que estão em nossa busca por controle, garantia, segurança, aceitação... para lidar com algo que ficou marcado lá atrás, em geral na primeira infância, um sentimento de rejeição, um medo, um desamparo. Passamos a vida nos protegendo... e não aprendemos o que é verdadeiramente cuidar.
- Proteger e cuidar. Interessante isso. Me protejo e deixo de viver. E chamo isso de cuidar. Um belo engano.
- E integrando tudo isso, controle e desproteção, rejeição e necessidade de legitimidade, nos abrimos à vida, às relações... e entramos num equilíbrio que é dinâmico.
Ela se levantou, pegou o copo e se sentou do meu lado, no mesmo banco, virada para mim. Servi o suco de uva, e comemos juntos umas castanhas caramelizadas que preparei. Ficamos um pouco em silêncio. Eu me virei me sentando em sua direção. Entrelaçamos nossas pernas. Nos abraçamos. E ficamos assim por um tempo. Pude inibir os óbvios pensamentos sensuais que surgem em momentos como esse e me abri para sentir, sem fazer nada, simplesmente estar ali. E uma das coisas que fiz foi falar. Isso foi uma grande novidade porque em geral evito falar para não perder a conexão que é só corporal. Abri mão do controle de controlar... fiquei muito a vontade para falar e conversamos assim, pertinho um do outro.
- Nossa, me veio um insight nesse abraço!
- Sim, parece que tudo mudou. Tudo que estava aqui agora se desfez.
Ficamos nos olhando, olhos nos olhos. Depois de um tempo sentindo esse esvaziamento que nos chegou, perguntei:
- O que você sente?
- Amor.
Depois de um silêncio que acolheu a grandeza do momento:
- Tem uma coisa estranha.
- O quê?
- Eu olho nos seus olhos e vejo o desconhecido. Quero dizer: eu vejo sua pele, sua forma e é como se isso fosse uma casca. Uma casca que reveste algo que é desconhecido. Eu não conheço você. E essa angústia de não conhecer é também amor. É até estranho dizer “eu te amo” porque eu não sei o que quer dizer esse “te”.
- Sim, mas quando eu digo que sinto amor não quero dizer que amo você como pessoa. Eu amo. Percebo o amor como algo universal, pelos vizinhos, por todos, um amor que está aqui, e o sinto por você também.
- Abraça mais um pouco.
Ficamos assim abraçados. E ela disse:
- Esse abraço parece como um chá quente que desce para a alma e a energia sai da cabeça que estava aqui cheia de pensamentos. Isso dá uma paz.
- E eu sinto que o amor no relacionamento não é um fim para se alcançar. Sabe? Esse desejo de ser feliz num relacionamento... não... o relacionamento é um meio para a gente ir mais fundo na gente mesmo.
- É um meio e um fim, né? Bem no caminho do zen. É o meio e é o fim.
Deitei-me com a cabeça em sua coxa e fiquei. Ela me fez um carinho bom. E me disse:
- E isso que a gente faz aqui também influencia o campo a nossa volta. Estarmos aqui em amor... leva algo até os outros.
- Sim.
- Seria bom se a gente fizesse isso sempre, né? Quando algo não vai bem a nossa volta a gente se conectar assim...
- Pois é, mas a gente não consegue controlar isso tudo... 
E perguntei:
- Posso incluir essa nossa conversa no livro?
- Sempre que você estiver sem inspiração para escrever pode me chamar, ela disse se insinuando.
- Só se tiver abraço.
- Seria ótimo!
- Acho que a gente tá entrando na Era de Aquário.
- Aquário para mim é muito limitado. Eu quero a Era do Oceano.



terça-feira, 19 de maio de 2020

Eu e...


Depois dos estudos dos cinco elementos, Ana voltou a lembrar da importância de estarmos livres das tipologias e mantermos a mente aberta aquilo que nos singulariza, que nos torna únicos. Se ficarmos buscando ideais, comparando, vamos entrar num desequilíbrio que, em todos os tipos, o resultado é o mesmo: o desvalor. Quando nos sentimos menos, além de arder na inveja, começamos uma busca para compensar e aí o desequilíbrio aumenta e ficamos ainda mais distantes do que somos. 

Então que a gente fique aberto a possibilidade de um ter sucesso e isso não me gerar a sensação de fracasso. Cada um pode ter sucesso no seu próprio modo de ser. E as relações nesse ambiente rico pode ser de ganha-ganha. E não é isso que significa amor? Estamos nessa arte de viver, subindo o monte da arte de amar. E quem sabe lá do alto do penhasco mergulhemos no mar daquilo que não se pode nomear. 

Essa conversa toda sobre comparação e sobre a natureza de cada um me lembrou de um poema de Chuang Tzu, chamado “Grande e pequeno”
“Quando olhamos as coisas à luz do Tao, nada é melhor, nada é pior.”
Cada coisa manifesta-se do seu próprio modo.
“Todo cosmo é um grão de arroz e a ponta do fio de cabelo é tão grande quanto a montanha – e conclui – Esta é a vida relativa”

No fim do poema ele fala do dragão que inveja a centopéia, que inveja a serpente, que inveja o vento, que inveja o olho, que inveja a mente que não inveja ninguém. Kui, o dragão perneta inveja a centopéia por ela movimentar suas cem pernas enquanto ele movimenta uma com dificuldade. Ela responde: “Não sou eu quem movimenta. Elas se espalham por toda parte como gotas de saliva.”
A centopéia inveja a serpente que se movimenta tão rápido sem nenhum perna. A serpente lhe diz que tem uma maneira natural de deslizar que não pode ser modificada, “para que necessito de pés?”
A serpente inveja o vento que, sem ossos, nem músculos, nem método, sopra desde o Mar do Norte ao Oceano Meridional. O vento lhe respondeu que conduz-se sem obstáculos nesse trajeto. Mas que cada olho que o observa é superior a ele, assim como cada asa que o utiliza, e ele os inveja por isso. Mas conclui: São superiores a mim, “mesmo se desenraízo as maiores árvores, ou se derrubo grandes edifícios. O verdadeiro conquistador é o que não se deixa conquistar pela multidão dos pequenos. A mente é este conquistador – mas só a mente do sábio.”
Não se deixe conquistar pela multidão.
Não se deixe determinar pelo que vem de fora. Nos lembra Ana, encontro após encontro, citando Benedito Espinosa.

Eu olho para mim... e ouço uma multidão! Estou percebendo como estou me deixando me determinar por isso tudo que me vem de fora. 

Que vozes são essas que aqui estão, que necessidades não atendidas estão aqui dentro, impulsionando reatividades, padrões, crenças, busca de intervenções no mundo para corrigi-lo?

Quero nesse momento de nossa conversa trazer um exemplo do que tenho vivido aqui. Peço licença para partilhar meus sentimentos e processos e peço, acima de tudo, seus ouvidos amigos para uma escuta de uma pessoa que tá quase morrendo afogada em sentimentos. Espero que essa conversa possa retornar ao começo e nos singularizar e abrir caminhos de novas integrações.

Nesses encontros com a Ana venho mergulhando nessas possibilidades, e me observado, e observando os conflitos que surgem aqui, a minha volta, fora e dentro.

Ela lembra que os conflitos revelam. Geram atrito, que intensificam as singularidades, que trazem transformações e um novo fluxo de acontecimentos, fora e dentro. Assim aconteceu aqui em casa um mergulho desses a partir de uma ação muito agressiva.

Eu gritei com um menino de 5 anos! Foi assim: Ele estava com as outras crianças brincando na casinha da árvore. Aí, lá em cima, ele estava cuspindo. Por um lado era um cuspe inocente, ele vinha apresentando sinusite, salivando muito e estava ali, nos seus cinco anos de idade, aflito sem saber o que fazer, então andava cuspindo nos últimos dias, enjoado com o cheiro do catarro. Mas eu não sabia de nada disso. Eu estava ali embaixo e ouvi as outras crianças dizendo: para de cuspir! Eu não sabia exatamente o que estava se passando até que de repente um dos cuspes veio em mim.
Me senti muito mal veio aquela fúria, velha conhecida, tomando conta de mim. Reagi com raiva, me senti ofendido, e gritei com ele. Gritei o nome dele em voz alta. Me levantei e questionei: "o que é isso, cara?" Nesse momento parecia que estava confuso em mim se se tratava de uma criança ou de um adulto. Todo um universo de projeções simbolizadas no ato de cuspir como algo ofensivo, um jogo de poder, um ato de submeter o outro a sua força, a sua violência. O menino não teve nenhuma intenção, eu sabia. Mas nessa hora, tomado pela raiva e inundado de uma memória de dor, e com todas as ideologias em mente, eu gritei. Assim como os professores que sentem que precisam educar. Ele ficou paralisado. Certamente impactado com a minha reação. Para ele, não havia nenhuma má intenção e ele, certamente, não podia imaginar que o cuspe pudesse representar tanta coisa para uma pessoa. Um pouco me segurando consegui dizer algumas palavras menos condenatórias e me satisfiz em dizer: “eu não gosto que cuspam em mim”. E saí de lá. Outros adultos ficaram por lá e conseguiram cuidar das crianças, em algum nível, diante dessa explosão.

Então fui beber água e pensar em tudo aquilo. E olhar para dentro de mim o que era tudo aquilo que estava acontecendo. A vergonha de ter explodido com uma criança, o arrependimento. Claro que eu poderia ter agido diferente. Poderia ter a calma suficiente para explicar a ele para tomar cuidado onde cuspir, essas coisas... Para onde a raiva me levou? De onde veio tudo isso? Inevitavelmente fui fazendo esses mergulhos e buscando ampliar as dimensões do fato.

Mergulhando nos conteúdos da minha mente vi como o cuspe era um gesto carregado de sentimento de violência, de agressão, isso é muito ancestral. Um símbolo do exercício de poder, condenação, esconjuro. E daí me dei conta de que isso, em minha mente, é parte de um universo típico do masculino, das imagens que trago do que é ser homem, desde a minha infância.

Vinha na minha mente, com muita aversão, a imagem do homem, em rodinhas com outros homens, bebendo cerveja, cuspindo, coçando o saco uns olhando para os outros, contando vantagens de como são seus casos com as amantes e, ainda, da alegria de ser o todo poderoso em casa e bater na mulher. São cenas que presenciei e entendi desde menino que não queria fazer parte desse grupo, desse universo que depois ganhou, para mim, o nome de cultura machista. Percebi como era difícil ser homem. Você não cabe no grupo. E de outro lado não é por isso vai deixar de receber toda a carga das dores das mulheres que se sentem vítimas desse mesmo machismo. Então os machos te chamam de gay e as mulheres te chamam de macho, diante de suas atitudes machistas que você acaba reproduzindo. E você não se encaixa, e permanece um menino assustado no meio da guerra.

Pensei na guerra dos sexos e me perguntei se no meu grito contra um menino, não estava também a raiva das nossas mulheres contra os homens... as mulheres espectadoras da cena, em algum nível fazem parte dela, mesmo que perplexas diante do que viam. Daí me lembrei de um mini documentário que vi sobre uma aldeia matriarcal, que habita uma ilha africana. E lá a divisão do trabalho é muito semelhante a todas as outras aldeias de povos originários: Os homens caçavam e pescavam; as mulheres fazia a cestaria e preparavam a comida. Mas as decisões coletivas, a política, estava na mão das mulheres. As pessoas entrevistadas, homens e mulheres, eram unânimes em dizer: “os homens são o sexo frágil, não conseguem dar conta de tanta coisa, ter a sabedoria, a visão do todo.”

E aí me peguei olhando para nossa cultura ocidental, e em que cilada estamos, já que vivemos com nossa política nas mãos do sexo frágil, que se constrói culturalmente como sexo forte, num regime de submissão da mulher. Lá na aldeia o poder decisório estava nas mãos delas: o sexo forte, quem gera a vida. Elas que são líderes capazes de acolher, cuidar, e empoderar os homens, seus liderados, para que possam fazer o seu melhor.

Mulheres empoderadas são aquelas que tem a força de superar as dores da cultura hegemônica e empoderar seus homens naquilo que de melhor eles podem oferecer. Como podemos criar ambientes em que esse mútuo empoderamento floresça?, me perguntei.

Continuei minha pesquisa interna, para não ficar só intelectualizando, e vi como em minha mente os ditos homens fortes aparecem como violentos. Quando eu era criança havia um homem na minha família, eu o encontrava só de vez em quando... era sogro de um tio... eu ia brincar atrás da casa dos meus avós, perto de uma pequena horta e, de repente, ele aparecia sozinho. Ficávamos só nós dois. Ele estendia a mão e era meio que uma regra que você precisa apertar a mão quando um homem estende a mão. Ele apertava com força e machucava minha mão. Me olhava nos olhos e eu sentia medo. Ele dizia: eu vou matar teu pai.

Isso era muito forte para mim. Eu morria de medo dele. Quando ia para a casa dos meus avós já ia com medo se ele estaria lá. Às vezes ele me constrangia e olhava com esse olhar firme e dominador mesmo na frente dos meus pais e outros adultos e eu não entendia como ninguém fazia nada para detê-lo. Se achavam aquilo tudo um simples brincadeira, “cumprimenta o tio”, eles diziam nesse ímpeto de que criança educada cumprimenta as pessoas. Mas eu tinha razões para não querer apertar aquela mão. Um lado meu sabia que era brincadeira dele (uma brincadeira muito sem graça para mim). Mas o meu corpo inteiro morria de medo de tudo aquilo. Era o arquétipo do homem mau. Com o tempo meu tio se separou da mulher, e aquela família sumiu da minha vida. Lembro de uma vez ir numa casa de praia onde ele estava com a família dele e descobri que ele tinha um neto com uma grave deficiência, uma má-formação do corpo que permanecia um corpo de criança. E me lembro dele sendo muito carinhoso com o menino, ali na frente de todos, beijando todo o seu corpo com muito amor, na piscina, inclusive o pênis. Aquilo tudo era muito confuso na minha mente... e até hoje acho o ser humano, em sua diversidade, um grande mistério. Na outra polaridade, a referência de homem que não era violento, o homem bom, era “um banana”. Não era tão forte e perderia uma briga com o homem mau... (essas fantasias de crianças)... além disso, era submisso à esposa de temperamento forte que era quem, na verdade, mandava em casa, mas que longe estava do empoderamento feminino de acolhimento e liderança sábia das mulheres africanas.

Então ali estava eu, que não quero ser nem banana nem mau, intervindo no caminho de um outro menino.(Esse o problema, a desconexão... não querer ser isso nem aquilo o que faz de mim isso e aquilo) Trazendo a ele um universo que eu não gostaria de passar adiante. Mas que parasse em mim. Mas não consegui. Na minha irritação com seu cuspe inocente, havia toda essa história em meu gesto. Assim vemos uma criança ferida ferindo outra criança.

E aí volto aqui a esse trabalho com a Ana e, com a mente cheia de tudo isso, começa o encontro e ela sugere começarmos com uma prática. Vou contar pra você como é essa prática e se você quiser pode aproveitar e praticar comigo, agora que as nossas emoções estão tão à flor da pele e estamos pensando mil coisas sobre tudo isso. Vamos fazer essa prática e ver o que nos surge depois.

Comece observando a respiração. O ar entrando e saindo naturalmente, sem a necessidade de controlar. Simplesmente observe. E a partir de agora, vá dedicando alguns ciclos respiratórios para cada parte que vamos fazer.

Inspira imaginando o alto da cabeça, expira visualizando o assoalho pélvico. O ar vai para os pulmões, mas leve sua atenção para esses pontos do corpo. Inspirando: o alto da cabeça, expirando: a base da coluna, o assoalho pélvico. Feche os olhos... faça umas cinco respirações assim.

Agora muda... inspire e visualize o umbigo, expire percebendo os ombros.

E assim vai trocando... respiração natural, visualizando diferentes partes do corpo, fazendo essa conexão, inspira em uma parte, expire em outra.

Depois de um tempo, perceba o cérebro, há o hemisfério direito e o esquerdo. Que são diferentes, tem funções bem diferentes. Mas aqui procure perceber que é um e o outro. E não um ou o outro. O direito "e" o esquerdo.

Perceba os pulmões. E da mesma forma enfatize que são os dois. O esquerdo "e" o direito.

Assim também os rins. O esquerdo e o direito.

Veja agora o ambiente onde você está... perceba que é você "e" o ambiente.

Então amplie e perceba as pessoas que estão perto de você. É você e essas pessoas. E amplie para as pessoas que interagem no dia a dia com você.

Amplie e inclua seus pais, avós, e perceba que é você e esse círculo de pessoas.

Amplie mais e perceba os animais que fazem parte do seu dia a dia. Animais domésticos ou não, alguns até indesejáveis como barata, ratos, formigas. É você e esses animais.

Amplie e inclua outro animais que não estão aí mas você sabe que existem.

Então agora amplie incluindo os vegetais que vivem aí...
E perceba todos os vegetais...

Perceba as águas que estão aí perto, a torneira, o poço, o rio, o que for..

Amplie para todas as águas do planeta.

Perceba todo o planeta com seus diferentes ambientes... Você "e" o planeta.
Agora perceba todo o ar... e o sol...
E agora o universo infinito.
Assim vamos levando esse mantra... "E"

Eu e...

Fique um pouco em silêncio fazendo as suas conexões... eu e... aquilo que te vier...

E assim, depois que você fizer o seu exercício, venha ler o meu.

Comecei a perceber que as coisas não estão separadas. Eu posso nomeá-las, e elas parecem fora, mas estamos em composição.

Eu e as memórias... todas essas memórias aqui que te trouxe nessa conversa aberta
Eu e as violências... não só as que eu sofri ou cometi... mas as que vi em filmes, as que soube pelos livros, as que nem soube...
Eu e os violentos... os agressores... os maus... eu e todos eles. Estamos em composição. Eles estão em mim... 
Eu e os que coçam, os que cospem, os que batem, os que traem... estamos juntos.
Eu e as vítimas... os que sofrem...

Não separação... composição...

O que vem?

A sensação que me vem é uma comoção... que pervade, permeia o meu corpo...
Choro... choro por mim, por você, por todas as vítimas e por todos os agressores.

Eu e meu tio, eu e sua ex-mulher, eu e o sogro do meu tipo, e o neto dele...

Estamos todos aqui, na pulsação que sinto no corpo, na superfície da pele, na umidade dos olhos, no embrulho na barriga, na fraqueza dos joelhos... eu e...

Eu e o menino com quem gritei...

Eu e a minha vontade de pedir perdão...

Eu e o pedido de desculpas que fiz a ele. E as conversas que todos pudemos ter aqui entre crianças e entre adultos.

Eu e os textos de Chuang Tzu ensinando a não ser, e assim, ser... a não fazer, e assim fazer.

Eu e a bola de futebol que ainda poderemos jogar nesse dia de sol.

“O mundo não está pronto para que eu me posicione nele, mas ele vai se constituindo..." disse a Ana.

Eu e o mundo em constituição... 

Eu e o processo de emergir... de co-emergir... da Vida em suas diferentes composições.

Tudo que passou, tudo o que acontece... nada disso poderá jamais ficar de fora.

Ninguém que passou, que feriu, que marcou, ou até mesmo que fugiu... ninguém ficará de fora.

Mas perceber essa conexão com tudo não significa que seremos determinados por essas coisas.

Eu e os homens... nem maus nem bananas...
Eu e as mulheres... nem fortes nem fracas...

Pessoas... e os bichos... e as plantas... e a água... e a Terra inteira... e o ar... e o sol...


“Quando olhamos as coisas à luz do Tao, nada é melhor, nada é pior.”

"Uma coisa E outra
Vida é unidade
No pulsar da existência
Todas as possibilidades

Separação em composição
Alinha, transborda e testemunha a Criação
O eu referencial
Não existe de fato
Não passa de mero boato
Pois se atualiza a cada ato
O Eu nunca é
Está sempre surgindo
Se auto-cria e co-emerge
Na diferenciação

Nada fixo
Nada de-terminado
Resiliência
Não há mundo pronto
No final, não tem um ponto
Reticências" (poema de Helô Akbal, participante da jornada)

(num texto futuro te conto a continuidade dessa historia entre eu e o menino, tem uma historia bonita pra contar, mas fica para outro dia)