sábado, 16 de maio de 2020

Biotipologia dos cinco elementos


Hoje em nossa jornada fomos visitar um centro de estudos de filosofia chinesa. Um lugar muito bonito, ao pé das montanhas, um ambiente sereno, com jardim amplo e uma arquitetura muito singular: o próprio edifício central era um ideograma. As atividades todas no centro têm por base o estudo dos cinco elementos: metal, água, madeira, fogo e terra. Tudo ali era pensado, e meticulosamente cuidado com base nessa harmoniosa integração. A culinária, a meditação, os exercícios físicos, o cultivo de flores, as hortas, os estudos da medicina tradicional chinesa, sua aplicação em sessões terapêuticas, a floresta preservada, a fonte de água, um riacho, parecia um lugar fora do mundo. Soube inclusive que eles transformam e adaptam todo ambiente a cada estação do ano. Fiquei muito impressionado.

Pela manhã tivemos uma prática de meditação e uma introdução sobre a biotipologia humana que é o estudo de como os cinco elementos  estão na base de nossa constituição física e psíquica. E foi a própria Ana a convidada a dar a palestra, apesar dela não se dizer especialista (não é incrível isso?). O tema despertou a curiosidade de todos porque cada pessoa tem um elemento predominante e ficamos todos querendo descobrir qual era o nosso.

Eu não consegui descobrir o meu. Fiquei um pouco ansioso com isso. No entanto, à tarde foi-nos dado um tempo para não fazer nada, de forma a absorver o que foi falado mais cedo. Decidi caminhar pelos jardins sozinho e depois caminhei um pouco pela estrada que leva à floresta. Fui refletindo sobre os elementos e meus estados emocionais, a forma como ajo, me vinculo, me afasto, quando sofro, por que sofro, quando me exponho, quando me retraio... e fui percebendo a presença desses elementos em mim. Então resolvi que antes de definir qual o meu tipo, queria aproveitar o fato de que todos os elementos estão em todos nós, e contemplar um pouco mais a existência de cada um deles aqui em mim.

Lembrei que durante a meditação da manhã eu pude observar muita raiva em mim.
Fiquei me perguntando: de onde vem tanta raiva?
Por que reajo com raiva?
Na meditação percebi que antes da raiva surgir eu percebi sensações de um estranho desconforto no corpo, um desconsolo. Uma sensação sem nome ou razão de ser, sem nenhuma imagem envolvida, sem culpados. Muito difícil lidar com aquilo. Em seguida veio a raiva. E com ela pessoas, situações conhecidas...
Senti que a raiva foi um encaminhamento para algo anterior que não conseguia definir.
A raiva teve essa utilidade. Foi boa para mim por me tirar do desconsolo, do vazio, da estranheza.
Raiva foi um caminho.
Então fiquei pensando que certamente, ao longo da vida, eu encontrei recompensas na raiva, em explodir, em ficar furioso... alguma recompensa isso me trouxe. Não sei bem qual. Talvez a atenção que não estava obtendo: "pude ser visto agora!" Talvez consegui seguidores que se aproveitaram de minha raiva para se justiçarem. Talvez consegui a autonomia momentânea, já que alguns sentiram medo e me deixaram em paz.

Assim pensando voltei aos elementos.
Vou ver como eles todos estão aqui em mim. Os cinco elementos podem ser pistas para eu me perceber e ir mais profundamente nesse caminho de indagação pessoal. Pode ajudar a ver os outros também em sua singularidade, mas nem preciso definir o outro: eu estando bem, o outro se apresenta em seu estado mais verdadeiro em minha presença.

Então, com base na palestra percebi que em mim os cinco elementos estavam na base de cinco desejos.
O desejo de solitude (metal), o desejo de liberdade, de independência (madeira), o desejo de ação (fogo), o desejo de afeto, de me vincular (terra) e o desejo de amar, de me doar (água).

Daí fiquei revisitando minha vida... fazendo os exercícios, também ensinados pela Ana, de olhar para as polaridades, entrar em relação com as polaridade e integrá-las no paradoxo.

O meu lado metal tem esse desejo de solitude. De fina e profunda elaboração das coisas, uma criação própria que tem a marca de como eu vejo a realidade. E quero que minha criação possa ir ao mundo. Que as pessoas a vejam (como o que está acontecendo agora, você lendo esse texto sobre o qual fiquei me debruçando para escrever).

Aqui surgiu essa polaridade (criação/reconhecimento), que pode trazer conflitos que costumo viver: de um lado a intuição, o lampejo de uma criação individual, de outro a busca de reconhecimento, de ser aceito; se fico preso ao reconhecimento não crio algo próprio... preciso desse processo de encavernar-me para criar e depois sim partilhar... Mas reconheço a polaridade em mim. Não consigo simplesmente me livrar da busca do reconhecimento. Ela vai junto.

Então, enquanto estou ali caminhando e olhando as plantas à beira da estradinha, resolvo fazer esse exercício. Me pergunto: qual o bom do reconhecimento? Sinto uma plenitude, uma alegria, um conforto no coração, o momento do prêmio. Qual o ruim do reconhecimento? Ele me aprisiona às pessoas, às formas de pensar e sentir do outro. De um lado alegria, conforto... de outro prisão... reconheço ambos em mim. Meu conforto é uma prisão. Minha prisão é meu conforto. Respiro fundo e afirmo: "eu abro mão do prêmio". Então quando digo isso começo a gargalhar... rio de mim mesmo, de tudo isso... e o lampejo simplesmente surge mais forte... minha força criadora é infinita...

Então olhei para uma rocha imensa e a memória me trouxe a primeira vez que senti o elemento metal em mim. Foi quando resolvi me dedicar a fazer um trabalho da faculdade de uma forma um pouco mais elaborada e criativa. Naquele fim de semana resolvi que eu não iria sair de casa. Meus amigos indo para a festa, passeando... e eu em casa, escrevendo... investindo minha energia em toda aquela elaboração profunda... (metal se elaborando na imensa montanha)... e lá na festa todas aquelas madeiras sociáveis, as terras afetivas, os fogos em explosiva alegria e as águas em profundos encontros... e eu, sozinho, feliz... já imaginando que todos iriam ler... já imaginando a peça sendo encenada...  era uma forma também de estar conectado...

Meus olhos desceram da montanha e pousaram numa árvore ali que me lembrou do monge Thomas Merton, magro, alto, conduzindo um grupo de dialogo interreligioso, convidando todos a um silêncio... após o qual ele iria "interpretar esse silêncio coletivo em palavras de oração"... solitude que se vincula...

Com os olhos ainda na árvore, pensei na madeira em mim. O desejo de liberdade, em geral vem acompanhado da sua polaridade: a sensação de opressão. Isso é tão comum! Sempre que surge a sensação de que alguém está mandando em mim... me impondo coisas... fico ali furioso querendo gritar por liberdade sem saber como o fazer sem gerar conflito, sem ser tão violento quanto a realidade parece me violentar. Já estou em conflito! Em outros contextos entro no modo conquista, me arrogo a atrair os outros para o meu modo de pensar, vou eu mesmo mandar na situação. Me percebo aqui quando estou fazendo as coisas para conquistar os outros, atrair o olhar de quem considero importante, isso tudo tem uma base de competição e inveja... Sou livre e sou o opressor.

Volto a olhar a árvore... me pergunto que relação as árvores tem com a verticalidade. Por que e como as árvores crescem para o alto? Uma resposta me é sussurrada: elas também crescem para baixo, são as raízes. É um duplo movimento. Para a terra, e a terra a impulsiona para o céu, diria a Ana com a luz da técnica Alexander. Para a terra e para o céu. Então percebo que meu desejo de voar, de conquistar novas experiências, de olhar outras paisagens, de trazer ao mundo um olhar original (biotipo madeira) vai nascer com integridade com os meus pés bem firmes na terra da realidade.
Percebo meus pés no chão. Respiro profundamente. Lágrimas caem dos meus olhos vendo meus sonhos ilusórios desvanecerem... acalmo (e me lembro de tantas pessoas queridas me dizendo: calma!)... tudo isso irriga a terra do meu coração... percebo que aqui em mim habitam todos os outros... minha força de criar junto é infinita...

O fogo aparece em mim nos momentos de alegria e entusiasmo, é contagiante... e quer contagiar. Aparece também na polaridade com a irresponsabilidade, a busca pelo prazer mundano....
quando me pego na compulsão por prazeres e emoções eufóricas... sinal que o fogo está em desequilíbrio... posso entrar na repressão que tenta apagar o fogo mas que acaba queimando a mim mesmo. O fogo precisa de um terreno de estabilidade. Silenciar. Vejo o desejo de consumir o outro... e de outro lado o desejo de entrar em relação...  quero contagiar e quero consumir... Começo a integrar essas polaridades.

De um lado a irresponsabilidade de outro, o seu oposto: a responsabilidade. Então paro novamente a caminhada, respiro, olho o sol, quente e brando ali brilhando para todos. E me ponho no exercício, perguntando: qual o bom da irresponsabilidade? Me sinto livre. Qual o ruim da responsabilidade? É chato. Então concluo: minha liberdade carrega a chatice... Olho como sempre as festas juvenis acabavam com um vizinho "chato" interfonando... e como o meu próprio prazer eufórico levava a uma consumação que dava um gosto de "pra que fiz isso?". Então eu digo em voz alta: abro mão de ser livre...

Fiquei ali, em silêncio sentindo a presença em mim. Um arrepio nos ombros... uma abertura a fazer o que precisa ser feito e que por força não tem como haver oposição. Minha força de ação é infinita...

Ali me lembrei de Teresa de Calcutá com a frase que ecoou em mim por anos, sempre que alguém pensava em fazer um projeto: "Comece!" E olhei para o belíssimo campo de arroz e me lembrei de outra frase:
"Comece fazendo o que é necessário, depois o que é possível, e de repente você estará fazendo o impossível." Essa era a frase de Francisco, lá da cidade de Assis, ele, menino magro, romântico, que foi a guerra em busca de emoções eufóricas, viveu ao longo da vida um processo de entrega a um profundo amor...

Olhando toda aquela terra fértil onde crescia o arroz no campo... me convidei a olhar o elemento terra em mim. O desejo de afeto, de vínculo afetivo, o impulso da benevolência, de ajudar... Mas já atento ao que a Ana falou na palestra: no desequilíbrio, a pessoa de terra sofre de carência, pensa assim: "não recebo o que preciso"... Então, é quando me fecho na má vontade, não acredito mais em ajudar ninguém. Fico na preguiça, me fecho no sedentarismo. Não quero colaborar... falo da imperfeição dos outros... na base tem uma imperfeição em mim... quando me desconecto das relações mais profundas, opto pela insensibilidade, invisibilidade... tudo é névoa a minha volta... sem calor do afeto.

Então opto por fazer um exercício de integrar a preguiça e a afetividade. Dessa vez sentei-me no chão e fiquei passando a mão num pedaço de terra, fazendo riscos sobre ela e brincando de cobrir minha mão pelos grãos úmdos daquela terra preta. Respirei. E me perguntei: qual o ganho da preguiça? Ficar em paz, ficar na minha. Qual o ruim da afetividade? Posso me decepcionar. Assim percebi que na minha paz, carrego a decepção. Então respirei fundo e disse em voz alta uma frase muito arriscada: abro mão de ter paz. Me veio um sorriso, um suspiro de alívio, fiquei num vazio criativo... E comecei a voltar a ver os outros com brilho. Percebi que estava tendo uma percepção muito parcial da realidade. Retomo minha vontade de ajudar, saio da auto ilusão de que minha preguiça é fonte de paz. Minha paz está nas ricas trocas afetivas que se por um lado me põem em risco, por outro me abrem novos canais de vida, calor e afeto... minha força nutridora é infinita.

Fiquei muito comovido com todo esse processo. Aquele ambiente era muito especial, sentia uma paz infinita que vinha das construções, da natureza e das pessoas que viviam ali. Nosso grupo era um grande apoiador de processos de libertação e integração. Estava grato por ter podido conhecer essa gente boa que me ajuda. São amores desta vida. Quero carregá-los comigo. Que possam contar comigo para o que der e vier em seus processos ao longo da vida. Um forte vínculo está se formando entre nós, eu pensei. E assim, sentindo toda essa gente, essa beleza, esse amor. Chorei. E foi um choro bom. Quente. E quanto mais chorava mais sentia amor pelas próprias lágrimas que existem em mim não à toa... tudo parecia tão integrado. Lembrei de olhar para toda essa água em mim.

O elemento água, o desejo de me doar em amor, em compaixão. No desequilíbrio a pessoa água se cansa das pessoas serem causadoras de tanto sofrimento a si e aos outros... e resolve que ela mesma precisa assumir o controle da situação, dirigir, coordenar, com tirania, já que por si mesmas as pessoas não são capazes. No fundo há o medo que as coisas saiam do controle. É quando me sinto superior. Nesse momento a compaixão carrega um ar de superioridade. Eu fico arrogante mas não perco o controle da situação. Sou movido para fazer o bem, mas acabo exercendo tanto controle que já não sei se é o bem. Essa é a minha ilusão. Estou perdido nela...

Busquei um riacho, desci da ponte, toquei a água com as mãos e percebi aquela fluidez... com a contenção das margens... deixei aquele friozinho das águas me envolver... e o riacho me falou: "você é tão compassivo com os outros, por que não é compassivo com você mesmo?" Essa frase me tocou profundamente. Mais uma vez fui às lágrimas e vi que eu estava sendo o tirano de mim mesmo. Respirei profundamente e nem precisei de exercícios, tudo ficou tão claro. Me olhei com compaixão... vi aquelas fraquezas que apontava nos outros em mim mesmo... me acolhi, me aceitei... senti aquela força que vem da humildade de simplesmente ser humano. Me esvaziei de todo conceito inútil sobre mim mesmo, desfiz-me da auto-imagem que sustentava com tanto esforço.

Uma outra percepção foi se abrindo. Senti em volta de meu corpo uma espécie de campo energético, e dentro dele foi acontecendo a dissolução da pele... e depois dissolveram-se os músculos, os ossos, o nome, a profissão, tudo que sei de mim desta experiência de vida. Fiquei só ali, o campo energético, com o dentro sendo um espaço sem forma definida... depois olhei em volta e todos os outros seres vivos estavam assim também, sem forma, só permeados pelo campo energético que lhes era próprio, pensei nos amigos, nos animais, no sol, na terra... e tudo se apresentou assim...

Sem nomes e formas, percebi uma abertura para uma outra relação com tudo e todos.
Uma escuta primordial. Uma receptividade.
Percebi que eu e todos os seres somos composições em transição, em constante mudança. Somos o próprio eterno nessa recomposição de si mesmo, na esfera do tempo.

Minha força é a grande compaixão que nasce da vacuidade. Não há eu ou outro.. Tudo é o imenso mar de compaixão...

Banhado nesse amor fiquei ali naquele canto isolado do centro de estudos. Depois de um tempo senti vontade de voltar para o grupo. Comecei o caminho de volta e fui sentindo em mim todos os elementos pulsando e orientando meus passos, a solitude elaborando visões, a liberdade aberta a compor em grupo, a alegria que sorri, o afeto que aproxima, o amor que abraça... assim ia pensando e pulsando... quando  encontrei um monumento pequeno, com uma frase de Krishnamurti inscrita nele... e termino essa conversa com você, lhe oferecendo de presente a anotação que fiz:

"Somos um. Somos uma humanidade, embora as fronteiras artificiais da economia, da politica e do preconceito nos dividam. Se matam alguém, estão a destruir-se a vós mesmos. Vocês são o centro de tudo. E sem se compreenderem a vós próprios não podem compreender a realidade. Temos um conhecimento intelectual desta unidade. Mas mantemos o conhecimento e o sentimento em compartimentos diferentes. E por isso nunca experimentamos a extraordinária unidade do humano."


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