quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Já posso te olhar

Vens e vais

Por que não ficas?

Quando vens já não sou eu.

Já não há mais eu ou Tu.

Somos um. E a vida é um jardim de delícias.

E quando vais a solidão me agita e minha alma é lançada a um transpor de si. 

Não tenho controle e perco os limites do eu e do calmo e do normal e do "todas as coisas em seus lugares."

Tua presença é doce e calma. 

Tua ausência um turbilhão.

Escrevo-te com a pena da saudade. Como estás?

Saudade desponta quando nasce o entre.

O entre não é o Tu, nem o eu. É o que nos aconteceu. E o que nos permanece. É o amor.

E não era para ser calmo o amor? Não é isso que dizem os mais experimentados no caminho?

Eis que o furacão de tua ausência se aproxima. Estou afundando enquanto segues andando sobre as águas. 

Já não há escolhas. 

Uma voz diz: "Precisas passar por isso. Vai!" 

E vou! 

Já não sou mais o mesmo

Perco as referências.

O céu já não é o mesmo céu 

E nessas horas meu corpo chora e geme.

Gemido: comoção que me toma e transborda em som. Tua existência se insinua em algo, uma nuvem, uma joaninha, uma palavra, uma lembrança. Como quando vemos a primeira aparição da lua no céu ainda claro.

Assim sou atacado por gemidos estranhos quando algo teu penetra meu sentir. Gemo como um louco vendo assombrações.  Que pensarão se me virem nesse estado? Andando na rua e de repente soltando gritos abdominais? 

Algo me fala de ti e subitamente sou jogado ao êxtase de prazer e agonia. Uma expiração que não se explica de onde sai tanto ar.

Amor e saudade.

O Amado penetrou meu quarto íntimo. 

Suspiro um mantra

Me lanço ao Tu

O gemido é de um transpor de todo o conhecido.

Não há palavras.

É como a língua dos bebês, dos animais e dos monstros.

É minha alma animal dizendo: vem! Ou: recebe-me!

E é desejo, tem a força daquelas paixões que aprisionam. E me sinto livre. Tu me convidas ao voo. Tuas palavras são doces.

Não é um eu que floresce e se abre silenciosamente ao infinito.

Quem me dera essa passagem fosse serena, suave.

Desde que Tu chegaste minha agonia cresce

E cada vez que vens deleito-me em Tua presença.

E o tempo é sem tempo e o mundo é feito de matéria e alegria.

E Tu vais e entre nós fica o vazio da plenitude e eu já não caibo em mim e não me basto. 

Tenho o desejo de estarmos em comunhão o tempo todo.

Tem horas que olhar o céu é  insuportável.

E eis que algo de novo acontece.

Uma caminhada.

Um céu.

Um instante.

Tua inocência vem, derrama sobre a minha mente uma gota de tuas vitórias e me diz: "Eu estou aí. Entre o céu e teus olhos não há distância. Tu também estás no céu, a minha paz é também a tua. Eu lhe disse que ainda hoje estarias comigo nesse paraíso. Vê, tua sede passou, assim como a minha."

Sim, sim. Posso agora olhar o céu e dizer: posso te ver.

Posso te ver.

A agonia passou, o gemido acalmou e, guiado por uma borboleta, fiz morada em teu castelo infinito.

Existe a paz.

Que bom que estás aqui comigo em todas as formas e nomes.

Ah! Como eu te amo!

Faça-se em mim conforme o amor.

Trem de palavras com destino ao silêncio

 Vou iniciar uma jornada criativa em minha vida. 

De agora em diante caminharei com meus próprios pés.

Vou olhar mais o caminho e a paisagem do que os mapas.

De agora em diante me abro ao sentir e darei tempo ao sentir.

A verdade será percebida por mim mesmo. 

Vou abrir mão das soluções e das verdades prontas.

Vou silenciar mais.

Aberto ao amor vou até onde for preciso para descobrir a fonte da felicidade.

Aberto aos mistérios vou fazer amizade com o tempo.

Vivo, observarei as transformações. 

O que muda quando mudo o meu olhar?

De onde vêm, verdadeiramente, os bebês? E a visão poética das coisas, a beleza, a amizade?  

Qual o tamanho da semente  da flor da bondade? 

De que cidade distante chega a convicção? 

Qual trem de palavras tem como destino o silêncio supremo? 

Em que toca de árvore se esconde a paz? O que ela come?

Qual a cor das nuvens de onde descem as chuvas de plenitude? 

Em que pedaço de cor do céu mora a saudade de cada amigo? 

O que me dizem essas paredes a minha volta?

Quem é o visitante que me chega pelo ar em cada respiração? 

Quem é essa pessoa que, vez ou outra, invade minha casa, rouba meus sentidos e arrebata minha alma?

O que eu ouço para além das palavras?