terça-feira, 30 de junho de 2020

Geração coca-cola delirante



É tudo um sonho.

Espelho, espelho meu...

Existe alguém, no mundo, mais bonito do que eu?

Olhei no espelho e ele me falou:

Sou forte. Para me enfrentar é preciso ser valente.

Eu sou prepotente, arrogante e tenho orgulho, valor. Superior a todos a minha volta gosto de olhar as fraquezas dos outros para sustentar a minha auto legitimação.

É assim que eu sou.

Existe o certo e o errado. Eu sei o que é certo. Minhas opiniões são absolutas.

O conhecimento é importante para mim. Sei que sei. E o que não sei, sei que posso saber. Por isso estudo tanto. Se eu não souber não tenho valor. Não reconheço o valor de quem não sabe. Quem não sabe, precisa aprender.

Quero saber, quero possuir, quero ser. Mais, mais, mais. Sempre mais.

Sou crítico. Falo uma coisa e vivo outra. Tenho visão estreita, não me importo. Vejo com facilidade o que me deixa em meu lugar cômodo. Mas não enxergo o chão da minha casa.

Não sinto culpa. Culpo a todos os que não seguem minhas palavras.

Não sou eu que engraxo meus sapatos.

Falo em aberturas e não vejo minhas fechaduras.

Não vejo outras culturas e falo em diversidade. Reduzo tudo a mim.

Falo de amor e sou indelicado.

Sou contra a delicadeza, a ternura, a bondade, acho isso tudo conversa de gente fraca.

Minha regra oculta é ferir. Meu ódio sutil se destila ao tempo da propaganda de estar bem.

Sustento a minha doença falando em saúde. Proponho cura e afundo em sofrimento.

Sou fruto de uma propaganda que faço de mim mesmo. 

Vejo o desleixo do outro, mas não vejo o meu próprio desleixo, nem o descaso, nem o descuido.

Escudo. 

Sustento relações de opressão, falando em liberdade

Critico os gurus porque sou o maior dos gurus.

Sou uma farsa. E digo que sou uma farsa e gostam de me ouvir dizer isso. 

O que critico está em mim. Critico as religiões e sou cheio de moralidades. 

O certo e o errado são um peso para mim. Nas coisas simples.

No palco sou herói da liberdade, em casa sou patrão.

Mais um.

Sou a falsa espiritualidade. 

Cultivo a indelicadeza, uso as palavras do outro contra ele. Crio o meu próprio jogo, onde a grande câmera sou eu mesmo, o Grande Irmão está em meus olhos.

Tento controlar tudo e todos. E se falo em confiança é para que confiem em mim e entreguem seus segredos para, quando for a hora, usar como armas contra eles. E assim vivo por cima.

Não consigo estar por baixo. Falo que não há alto nem baixo, mas assim falando busco o alto. Desprezo o baixo.

Excluo. E sustento o amor restrito aos seletos que jogam o jogo e permanecem na família.

Minto. 

Omito, o que é a versão polida da mentira.

Sustento tanto esforço falando em abrir mão de esforço.

Sou a contradição em pessoa.

Aprendi a escutar. Desaprendi a escutar. 

Falo sozinho e acho certo!

Socorro. Um pequeno vírus em mim pede socorro.

Acendo as luzes mas pressinto os fantasmas escondidos atrás do armário. 

Tormenta.

Tenho medo e falo da falta de medo. Para ver se despisto o medo. Inutilmente. 

Sou um buscador. Não me contento. Continuo buscando. Esperança é o lema com que me engano.

Não vejo nada nem ninguém acima de mim.

Destronei Deus e me entronizei no altar da consciência.

Humildade é palavra que risquei aqui de casa. Só entra pela porta dos fundos com aqueles que aceitam me servir.

Fiquei na infância filosófica da crítica prematura. 

Não leio nenhuma escritura sagrada. 

Creio em mim todo poderoso. Criador do céu e da terra.

Me vejo livre. Mas sou do tamanho da tela na qual apareço.

Me orgulho de não ter preço. Mas pago uma alta conta para sustentar minha empáfia.

Sou como o girassol que acha que a montanha só existe por ele.

Sou como a montanha que acha que criou o girassol.


Sou coca cola. Sempre coca cola.

domingo, 28 de junho de 2020

Sobre a tristeza


Entristeci-me ao ser lembrado de que há gente com mais facilidades de dizer não.

Lembrei-me dos privilégios sociais que usufruo.

As situações que não precisei passar, e que a maioria das pessoas passa todos os dias.

Nesses meses de jornada muita coisa fui olhando aqui.

Tem uma coisa aberta ainda. Uma "ferida acesa" que trago no coração.

"Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão."

Vejo essa condição social a minha volta e me faço o seguinte exercício: será que eu conseguiria trocar de posição social?

Servir ao doutor? Servir a patroa? Humilhar-me para favorecê-los em seus luxos? Ter de oferecer meu corpo além dos limites de meu consentimento?

"Você morreria de indignação", disse minha companheira.

Será mesmo impossível? Será mesmo que estarei sempre preso ao lugar social, determinado pela cultura e pela história de onde nasci?

Olhei pra isso que chamamos vida social. Sentei no ponto de ônibus. E ali fiquei. E ao longo do dia foram passando pessoas. Homens, mulheres, jovens, idosos... E eu ali sendo visto por cada uma delas. Como me tratam?

Senhor.

Não só pela idade. Mas pelo status que aparece ao nosso imaginário coletivo.

Marilena Chauí diz com Espinosa que não somos uma democracia justamente pela cultura da distinção que marca as aristocracias.

Não tenho como disfarçar. Está no gesto, no jeito de sentar, na angulação do olhar, na roupa, no corte de cabelo, e, se eu abrir a boca então! Está no tom de voz, na melodia da fala, e as palavras denunciam uma escolaridade... doutor, professor, senhor. Essas pessoas não me veem como um igual. Com admiração, desprezo, inveja ou ódio, sou o outro.

Quem são?

Na rua, com o pessoal que mora na rua, gosto de estar de chinelo. Um dia um moço me disse: não adianta disfarçar, irmão. Você vai ser sempre diferente, vai ser sempre o professor. Entendi o recado. Continuei usando chinelo porque gosto. Mas não tento disfarçar. E mesmo na noite que fui dormir na rua pra conhecer seu cotidiano, pude ouvir: "não vai ser igual. Você vai saber como é dormir na rua. Mas não vai saber nunca como é dormir na rua sem ter mesmo pra onde ir, machucado pelo mundo que você teve de deixar pra trás, abatido pela depressão."

Quem sou?

Desde pequeno me sensibilizo com esse recorte social.

"Se tremes de indignação perante uma injustiça no mundo, então somos companheiros."

Por séculos, pensamentos e ações revolucionárias olharam para isso. Não sou o primeiro.

Sofri de TRH (transtorno robin hoodiano)... aquela vontade de distribuir a riqueza... que nos tempos atuais significa entrar no sistema, ter uma profissão legal e fazer algo com impacto, seja na cultura, seja na economia, seja no pensamento: "I have a dream today!"

Meus heróis não morreram de overdose. Morreram assassinados.

Como pode um ser humano mandar no outro?

Lembro do dia que entrei empolgado num mosteiro franciscano para ver de perto a vida dos seguidores de um homem inspirador que abraçou a pobreza para encontrar liberdade. Quando cheguei vi um homem varrendo o chão. Mas ele não era um irmão da Ordem. Até que um irmão veio para me receber e apresentar o mosteiro. Eu perguntei: e aquele moço? É funcionário. Mas porque vocês não varrem? Se eu tivesse que varrer eu não poderia estar aqui conversando com você. Fui embora. Não engoli a justificativa que me fez ver como a Ordem compactuou com a escravidão e o patriarcado em meu país. Não é à toa que se chama Ordem.

Tudo isso está no meu caminho de vida.

Só que agora na jornada tudo isso ganha uma nova perspectiva.

E estamos justamente entrando no tema Trabalho.

Como ser útil e fazer o que gosto? Essa a pergunta dos coachings e aqueles que falam sobre propósito.

Mas vem a Ana e nos convida a abrir mão de ser útil.

Fiquei até sem pergunta.

E abrir mão dos conceitos. E tudo isso que escrevi até agora é um olhar conceitual sobre realidade.

Como se eu tivesse armado todas as peças do jogo de xadrez, me preparado para jogar e a pessoa vem e diz: não, vamos jogar pingue-pongue. Então, não só cai o Rei, mas todas as peças são derrubadas ao chão.

Ela nos convidou a abrir mão das finalidades.

Ter um trabalho para mudar algo? Não! Abra mão das finalidades. E sem medo disso te deixar indiferente. Pelo contrário. Abrir mão dos conceitos, finalidades e até mesmo do sentido de vida vai te abrir caminho para se relacionar.

E o que fazer?

Nada. Observa o sentir. Da pele para dentro.

Meu sentimento é de tristeza quando vejo uma pessoa trabalhando e calando seu cansaço pelo medo do patrão. Sua voz silenciada.

Triste.

Triste. Não vivi os abusos que as mulheres sofreram. E entristeço pelas suas dores e por fazer parte desse sistema.

Triste. A violência racial. O preconceito me entristece. A violência estatal contra os pobres. O silenciamento brutal. O assassinato das crianças negras e pobres.

Triste. O mundo do trabalho ainda é anti-vida.

Triste. "Não me resigno, a fome será vencida."

Triste de ver armas, guerras e soldados treinando em escolas militares.

Tristeza.
Estou aqui te olhando.
Que não seja a tristeza burguesa, conceitual.
Mas a tristeza aqui dentro do corpo.
O que faço com essa tristeza?

Nada.

Hoje bati a enxada com força na terra.
Tinha música de capoeira ao fundo.
O professor de capoeira nos convidou a cuidar da terra.
Não fez nenhuma evocação. Mas não era óbvio que estavam conosco ali nossos ancestrais no terreno simbólico do trabalho na terra?

Tristeza. Bati com força na terra. Não pra tristeza passar. Bati. Cavei. Sonhei com o plantio numa terra cansada de tanto gado, e gado cansado de tanta escravidão.

Renée pediu para Jiddu falar sobre a teoria do big bang para seu livro sobre ciência e meditação. Ele disse: "Se meu filho ou meu irmão acaba de morrer não estou disposto a falar sobre big bang com você. Dê-me mais alguns dias, cara amiga, pois agora estou chorando, estou sofrendo, meu interesse é este, não aquele."

Tristeza. Fui lá na casa da Maria e do Zé e tomei café e pudemos conversar de igual pra igual.

Tristeza, fiz de suas palavras minha poesia.
Tristeza, de meus erros me trouxe até aqui,
Tristeza fonte de meu amor secreto.

Amiga, amigo, escuto toda essa nossa tristeza
Devolvo ao mundo atos de amizade.

"Pra onde eu vim não vou chorar.
Já não quero ir mais embora
Minha gente é essa agora

Se estou aqui, trouxe de lá
Um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar."
(clique aqui para ouvir musicado)

"Poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação.
Um poeta satisfeito não satisfaz."

"O mais triste de um passarinho engaiolado é que ele se sente bem."


citações fora da ordem:
Chico
Mario
Jiddu
Ana
Che
Caetano
Gabriela
Martinho
Herbert
Milton

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Abuso sexual, medo do abandono e o despertar do amor


Onde a gente conseguiria ter uma boa conversa sobre um tema tão delicado como abuso sexual?

Que ambiente é esse capaz de nos deixar a vontade tanto para falar quanto para ouvir sobre as histórias reais de abuso?

Adultos falando de suas memórias. Os contextos, os personagens reais de suas infâncias. Um pai, um tio, um namorado da mãe, uma pessoa da família, uma pessoa de confiança...

A dor calada: "sinto que se eu contasse, meus pais não iriam dar conta."

A dor silenciada: "contei para minha mãe e ela disse: não fale para mais ninguém isso."

A dor do abandono: "meus pais estavam muito distantes e desatentos de mim."

A dor. 

Anos e anos lidando com um evento que marca uma vida.

E cada uma, cada um, foi encontrando seus caminhos de cura, de superação, de transformação.

E aí surge a possibilidade da gente falar sobre isso. Não só conceitualmente, mas com as emoções que nos tocaram e nos tocam ainda hoje.

Uma conversa emocional. Uma possibilidade de seguir um processo curativo.

É isso que estamos vivendo, durante essa semana, na jornada. Uma jornada que nos leva a uma mudança em nosso emocionar.

Um processo difícil, forte, duro, delicado. Intenso. Mas ao mesmo tempo muito amoroso, libertador, transmutador e acolhedor graças a esse ambiente de escuta que não é só escuta... é um estar junto, um mergulhar junto num mar muito violento e arriscado para salvar, não uma vida, mas as nossas vidas, de todos nós. 

Para mim veio a tarefa de escrever um pouco sobre isso. Vai ser uma escrita entre tantas possíveis. 

Temos os relatos das pessoas sobre seus processos de cura. Isso é insubstituível. Adoraria que relatos como esses que ouvi fossem partilhados para públicos mais amplos. 

Há pessoas escrevendo também sobre seus processos dizendo onde, em si mesmos, toda essa conversa curativa está tocando.

Aqui vai uma contribuição pequena, mais para organizar o pensamento e trazer um pouco meu coração nesse tanto que estamos vivendo. Adoraria fazer uma junção das palavras que li e ouvi, mas isso não é possível. Cada fala é intraduzível. Então aqui vai uma fala dentre tantas. Nunca é demais. Precisamos falar mais sobre sexo, suas delícias mas também suas dores. Sobre suas dores e também suas delícias. Mas hoje, vamos falar mais das dores.

Convido você que lê essas palavras agora a avaliar se esse é o melhor momento. Se precisar de um outro tempo, volte a ler numa hora em que você esteja mais disponível. Para que você possa fazer seu mergulho também. Nessa nossa história. Nossa história emocional, cultural. Nossa história humana. 

Voltando a pergunta inicial: que ambiente é esse de conversa?

No encontro de segunda-feira, Ana foi trazendo elementos de reflexão para que a gente pudesse olhar a questão dos abusos de uma perspectiva que nos ajudasse a olhar as emoções, e o sistema mais amplo onde estamos inseridos. E, é bom que se diga, não foi ela quem trouxe o tema intencionalmente. É que os aprofundamentos nos processos emocionais vão nos trazendo as nossas feridas à flor da pele. E assim os participantes foram trazendo e pedindo ajuda para olharmos para a questão juntos. 

A primazia da ética

Em primeiro lugar, Ana lembrou ao grupo de que a criança não é culpada. "Ela não fez nada para que isso acontecesse. Ela não provocou. Não deu mole. Não facilitou" É bom que se diga isso num contexto social que sugere a culpabilização da vítima (argumentos do velho sistema). Portanto compreenda: a criança não é culpada pelo que aconteceu.

E o adulto que abusa sexualmente de uma criança é uma pessoa doente.

É bom partir de um ponto de vista ético que não seja o relativismo. Em nossos processos de liberação emocional, muitas vezes precisamos relativizar certezas, abrir mão de crenças. Mas temos evidência suficiente, ouvindo as histórias do sofrimento que fica para as pessoas, que não há relativização possível nesse caso. Relação sexual com crianças é absolutamente anti-ético.

Um segundo elemento, trazido pela Ana, tem a ver com a forma como lidamos com a sexualidade enquanto adultos. Podemos nos envolver com outro ser humano, amá-lo, admirá-lo, podemos criar intimidade, parceria, mas isso não precisa necessariamente terminar em sexo. Ela deu exemplo do aluno que se apaixona por um professor e o professor pode dizer: "eu sei, eu estou aqui num lugar de destaque, apaixonado pelo que faço, apaixonado pelos meus alunos, cheio de brilho e amor, mas percebo que você está se iludindo. Não precisamos nos relacionar sexualmente." Portanto uma atitude ética é não permitir que esse apaixonamento seja sustentável.

Amigos podem se apaixonar. Especialmente quando "tiramos as interferências (projeções)" e vemos o outro ser humano. "Encontrar o ser humano é sedutor". Mas, imagina, que esses amigos são casados. Então eles podem se perguntar: "onde isso vai me levar se eu entro numa intimidade sexual?"

E assim cada um pode escolher ficar com sua parceira, seu parceiro. Porque do contrário entramos nessa história de amor livre, relações plurais que é um escape. E ao dizer isso Ana pergunta-nos:

"Por que sempre que me apaixonar por alguém isso vai acabar em sexo?"

Ela mesma responde: "É uma infantilidade. Uma falta de maturidade, de percepção mais ampla."

Daí há dois caminhos: a moral ou a ética. Onde há moral não há ética. Onde há ética não há moral. Se entramos na moral, vira uma confusão. A proibição. Os casos escondidos, os segredos, a traição, a opressão, a omissão... Os livros e os filmes sobre vida amorosa do presente e do passado estão repletos disso. Nossa vida está repleta disso. Não é à toa que uma sociedade moralista seja tão anti-ética e, portanto, doente e, portanto, capaz de produzir uma brutalidade desse tamanho que é quando o abuso chega a uma criança.

A opção pela ética é a escolha por uma relação sadia. Um encontro profundo. É não cair na adolescência de achar que tudo precisa terminar num gozo sexual.

Aqui vemos onde está a doença. Lembro do Reich no livro "O Assassinato de Cristo" relacionar a crucificação de Jesus com essa doença emocional que é o mal estar, a repressão e moralismo sexual da humanidade. Mataram Jesus não por motivos políticos ou por questões religiosas. Mas porque ele era um homem capaz de amar.

Um homem potente com um amor potente!

E as pessoas ainda não conseguiam conviver com o amor e a potência humana.

Após ouvir os relatos, as memórias dos abusos, Ana sugeriu que a gente olhasse, sentisse as emoções que nos vinham. E foi conduzindo processos de olhar as emoções descoladas do fato. Elaborasse a partir da emoção e depois revisitamos os fatos. Esse movimento da emoção nos faz ver e tocar nosso passado de um outro modo. Um acolhimento de si que nos levou às lágrimas. Difícil descrever isso aqui.

Antes de tudo, no entanto, sugeriu um artifício:

Recebemos algo como uma herança, que vem não só da pessoa que nos violentou. Mas que vem de nossos antepassados, uma herança ancestral. E o artifício é pensar o seguinte: "isso só aconteceu com a gente porque a gente é capaz de dar conta disso e curar essa herança ancestral." Não deixar passar isso para as gerações seguintes.

Como curar?

É um processo muito pessoal. Muito individual. Mas é coletivo também.

Se olhamos com profundidade vemos que não há um culpado isoladamente. Que a doença de um indivíduo é sustentada por um sistema. Ele vive uma dor tão grande que sua dor transborda e atinge o outro. E isso se torna um círculo vicioso.

Lembro de uma vítima de abuso dizer que depois de anos curando essa ferida chegou a um lugar emocional em que pode dizer que junto do amor profundo que sente por essa pessoa, que é um familiar próximo, sente até mesmo gratidão por ter acontecido isso com ela.

Ela o vê não como culpado. Mas compreende que ele foi a válvula de escape, por onde vazou a dor do sistema, o sintoma de toda essa moral, dessa questão mal resolvida em todo o sistema cultural em que vivemos.

Gratidão e amor.

Claro que nem todo mundo chegou a essa camada profunda de cura.

Em algum momento do encontro Ana disse que todos somos abusadores. Mas encontramos justificativas, através de nosso movimento conceitual. Mas se encararmos nosso emocionar teremos de admitir que geramos sofrimento para nós e para os outros.

Por que abusamos dos outros ou de nós mesmos?

Medo. Medo do abandono. Medo de não ser aceito, de não ser amado. Medo de desaparecer.

E assim, com esse emocionar, permitimos o jogo, de abusadores e abusados.

Só há processo de cura quando o adulto abre mão de ser amado.

Veja um exemplo de um dia na vida sexual de um casal homem-mulher.

Durante o dia os dois se encontram, se abraçam, se beijam. Na intimidade de seu encontro vão tecendo carícias e acendendo o desejo. Quando ambos vão ficar a sós o homem está com muita vontade. Mas, nesse exemplo aqui para nossa didática, imagine que ela não está mais com a vontade que experimentou ao longo do dia. Passou. Mas ele manifesta seu desejo acariciando-a de uma forma íntima. Ela pensa em dizer não. Mas aí pensa também: o que ele vai pensar se eu disser não? Vai ficar frustrado. Vai ficar triste e com raiva. Vai achar que eu não estou correspondendo. Então ela cede. Isso é uma forma de abuso? Quantas pessoas passam por isso na vida adulta?

Veja como essa expectativa sobre o mundo emocional do seu parceiro é o de que ele é uma pessoa infantil. Que não consegue ouvir não. Que acha que um não significa que não é amado. E se a pessoa não se sente amada ela sofre tristeza, raiva. Veja como na visão da mulher, seu companheiro é uma pessoa que se deixa determinar pelo que recebe do outro. Isso é uma embolação. E por que ela se relaciona com alguém infantil?

Um outro desfecho: depois do dia de aproximação ambos sentem desejo e eles fazem sexo. Ela chega ao orgasmo. Ele ainda não. Ela sente vontade de deitar e ficar abraçada. E quem sabe dormir assim, aconchegada. Esse é o seu desejo. Mas ele está cheio de apetite. E ele não sabe lidar com toda essa tensão no corpo. Mas cede, não quer abusar de sua companheira. Mas faz isso de uma forma não integrada. Quando a excitação diminui, como ele não teve orgasmo, não consegue se entregar ao gozo de estar abraçado. Está focado demais em seu prazer genital que é a forma como aprendeu a sentir prazer. O amor, o encontro, a união, nada disso importa agora. São conceitos com os quais ele convenceu parte de sua mente. A outra parte começa a ficar cheia de pensamentos. Não quer estar ali. E começa a ruminar que não ama, que não é amado, que é um infeliz. É dominado pela tristeza, pela frustração. Uma pergunta surge: como eu posso ser feliz sem forçar/convencer/seduzir o outro a fazer o que me apraz? Assim passamos a vida aprendendo a arte de seduzir, de conquistar, de possuir o outro, mas pouco aprendemos da arte de amar.

Um outro desfecho: ela tem o orgasmo. Quer parar mas continua, por ele. Abre mão do que está querendo, do que está sentindo, do que está escutando de seu corpo. Cede à vontade do outro. Então eles continuam até que ele tenha o ápice do prazer. Mas ela não está tão quente. Está fria, dolorida, incomodada. Terminam sem a união de alma como já viveram em outras vezes. E daí vem de novo a enxurrada de pensamentos: ela não me ama, e fica triste, com raiva, etc. E ela se sente machucada, abusada, e com raiva de si mesma por, mais uma vez, não ter ouvido seu corpo.

Não tem para onde correr.

A vida afetiva não se resolve no sexo. O sexo é que se alimenta da vida afetiva. Mas poucos conseguimos viver isso. É um segredo. Não falamos sobre essas coisas. Demoramos a aprender. E não basta falar e convencer a mente. Se o corpo, a emoção, continua vivendo a limitação do desejo de ser amado, do medo de ser abandonado. E pensar que muitos de nós nascemos de uma relação sexual assim. Que herança recebemos? Temos ou não temos muita ferida para curar?

"O adulto que se liberta da necessidade de ser amado se liberta para amar."

A emoção raiz que trabalhamos nessa semana foi o sentimento de abandono.

Lá pelas tantas Ana lembrou da líder espiritual indiana que há anos abraça milhares de pessoas.
Amma integrou tanta atrocidade que viveu, tantos abusos que uma mulher pode sofrer, violência física, psíquica, emocional, a dor de ser linchada, estuprada, e ela conseguiu integrar tudo aquilo de uma tal maneira que surgiu um grande campo de compaixão. As pessoas que a abraçam sentem um amor incondicional.

O amor incondicional. O que é esse amor?

"O Namorado" é uma das cartas do Tarot de Marselha que se comunica muito com tudo que falamos aqui. Ana leu esse trecho no último encontro. A carta tem três personagens humanos no centro, um anjo que lança flechas do centro do sol no alto. No livro do Jodorowski quem fala na carta é justo o sol que está acima dos personagens da trama. O sol do amor. O que ele nos diz?

"Sou o sol do arcano, o sol branco: quase invisível, mas iluminando todos os personagens. Sou essa estrela: a alegria de existir, e a alegria de que o outro exista. Vivo no êxtase. Tudo me dá felicidade: a Natureza, o universo inteiro, a existência do outro sob todas as suas formas - esse outro que não é outro senão eu mesmo.

Sou a consciência que brilha como uma estrela de luz viva no centro do seu coração. Eu me renovo a cada instante, a todo momento estou nascendo. A cada batimento do seu coração, eu uno você ao  universo inteiro. É de mim que partem os vínculos infinitos que nos unem a toda criação. Ah, o prazer de amar! Ah, o prazer de me unir! Ah, o prazer de fazer aquilo que se ama!

Mensageiro da permanente impermanência, renasço a cada segundo. Sou como um arqueiro recém-nascido que lança flechas em tudo o que os sentidos podem captar.

Não sou a gentileza, não sou a ambição do bem-estar nem do triunfo. Sou o amor incondicional. Eu o ensinarei a viver no alumbramento, no reconhecimento, na alegria.

Quando penetro em você, como nos personagens do arcano, comunico o amor divino até à menor das suas células. Sopro na sua mente como um furacão caloroso que elimina da linguagem a crítica, a agressão, a comparação, o desprezo, e todas as gamas da arrogância que separam o espectador do ator.

Eu me insinuo na sua energia sexual para suavizar toda brutalidade, todo espírito de conquista, de possessão. 

Confiro ao prazer a delicadeza sublime de um anjo que exulta.

Quando eu me dissolvo em seu corpo é para separá-lo da ditadura dos espelhos e dos modelos, do olhar dos outros, da dor das comparações. Eu lhe permito viver sua própria vida, assumir sua própria luz e sua beleza.

No coração onde habito, afugento as ilusões da criança mal-amada. Como o sino de uma catedral, verto no sangue a vibração penetrante do amor, desprovido de todo rancor, de toda exigência emocional travestida de ódio, e de todo ciúme, que não passa da sombra do abandono. Eu o inicio no desejo de não obter nada que não seja também para os outros. A ilha do eu se transforma em arquipélago.

Tudo concorre para aumentar minha alegria, mesmo aquilo que você interpreta como circunstâncias negativas: o luto, a dificuldade, a pequenez, os obstáculos ...

Amo as coisas e os seres tal como são, com suas infinitas possibilidades de desenvolvimento.

A cada instante, vejo você e estou disposto a participar de seu desenvolvimento, mas também a aceitar que você continue sendo como é."




terça-feira, 23 de junho de 2020

O cachorro, a ursa e serpente



Era uma vez um cachorro.

Domesticado.

Um dia ele saiu da casa onde viveu toda a sua vida e adentrou a floresta.

Caminhou, caminhou...

E encontrou, em meio às altas árvores e à beira da cachoeira, uma ursa e uma serpente.

O cachorro sentiu-se amedrontado e encantado. Como eram livres, selvagens e perigosos! Ao passo que ele era tão inofensivo, tão adestrado.

A ursa o acolheu como uma mãe. Caminhou a seu lado e mostrou como conseguir alimento, nos diferentes recantos da floresta. De início, ela teve de caçar para ele. Mas foi mostrando como ele deveria viver de suas próprias artes.

A serpente, por sua vez, não foi nada simpática. Tampouco o agrediu ou ameaçou. Silenciosa e compenetrada, mantinha uma aura de mistério que, de certa forma, encantava o cachorro. Queria ser como ela. Ter sua força, irradiar aquele respeito.

A ursa e a serpente faziam o cachorro ver a força do amor próprio.

Mas ele não sabia o que era isso. Só conhecia o amor de seus donos. Fazia o que lhes agradava. Estava longe demais de seu estado selvagem. Perdera o rumo de si.

Por isso, em seus primeiros tempos na floresta não sabia muito bem como agir. E se sentia inadequado. Temia os olhares reprovadores da serpente e fazia de tudo para não desagradar a ursa a quem ele já sentia uma enorme dívida.

Não sabia o que era ser cachorro. A ursa em seus longos passeios uma vez o levou a um descampado, onde puderam ver a lua se escondendo no horizonte. Era a primeira aparição da lua nova, delgada e vermelha, que se mostrou logo após o pôr do sol. E ali tiveram uma conversa.

A ursa lhe dizia:

Escute o que a lua tem a lhe dizer. Eu não posso dizer com minhas palavras. Precisa ser uma experiência sua. Não adianta você ficar querendo ser um urso ou uma serpente. Você precisa ser o que você é, mas que se esqueceu. Precisa agora esquecer o que aprendeu. E voltar a ser o que era antes dos seus donos estragarem você. Precisa fazer o caminho de volta. Só que isso aconteceu há tanto tempo e você ainda era muito criança. Então você não tem referências de como é ser um cão selvagem. Mas precisa... precisa... como que começar de novo. Eu acredito em você. Mas não posso fazer por você. Nem como te ajudar. Porque eu não sei como é ser você. Só posso ser ursa. Este é meu destino e minha liberdade.

No dia seguinte o cachorro teve seu encontro com a serpente.

Ficaram um perto do outro, sobre as folhas secas do bambuzal, num dia quente de céu azul, sem dizer uma só palavra. A serpente não tinha nenhuma pressa, na verdade nenhuma vontade, de dizer nada para o cachorro. O cachorro não sabia, mas a serpente também não tinha nenhuma intenção de mordê-lo. Ela o respeitava. E o cachorro também não sabia, mas ela não o odiava, e nem tinha pena de sua fraqueza. Ela o via como ele era. As serpentes são assim. Elas não especulam.

E aquele encontro silencioso foi gerando, no interior do cachorro, um conjunto de sensações imprevistas e desconhecidas. O medo foi se transformando em sensações que o cachorro não saberia nomear, um novo calor dentro de si. Os dias se passaram e o cachorro foi ficando íntimo desse novo universo de sensações. E a distância dos humanos foi dando espaço para ele experimentar novas formas de viver, sem procurar o tempo todo estar agradando, buscando afeto. Ele foi vendo que o amor antigo foi dando lugar a novas percepções e começou a sentir com mais clareza o frio do chão de terra quando pisado de manhã cedo, o ar quente nas tardes de sol, o prazer de roçar seu pelos nos espinhos do morango silvestre e de molhar seu rosto no orvalho perfumado do manacá. Gostava de mergulhar nas águas do rio para saciar seu impulso à alegria e subia gostosamente a cachoeira, brincando contra a força das águas e latindo para o vento.

Ele não sabia dizer o que se passava. Mas algo estava mudando.

Um dia ele acordou de manhã e, pela primeira vez, olhou a ursa como ursa. A serpente como serpente. Já não possuíam mais aquela aura selvagem. Eram comuns. E viu tudo a sua volta como jamais vira antes. E novamente olhou seus amigos e os viu selvagens como antes. E de novo, comuns. Eram selvagens, belos, perigosos, encantadores, e ao mesmo tempo eram comuns, simples, cotidianos amigos com quem gostava de tirar uma soneca depois de uma farta refeição que caçavam juntos.

E assim seguiu seus dias. Mal conseguia se lembrar do cheiro de seus antigos donos. Não se detinha nessas memórias. Parecia-lhe uma outra vida. E, de fato, era.

sábado, 20 de junho de 2020

Nem egoísmo, nem altruísmo.


Sento para meditar.

Observo a respiração.

Vem pensamentos. Alguns ignoro e volto a respiração.

Alguns olho, desenvolvo, descubro a polaridade, olho ambos em mim. Respiro.

A mente esvazia, volto para a respiração.

Assim vai, respiração, pensamento, respiração, integração, respiração.

Até que me chega um momento, sem planejar, se esperar, me pego sentindo uma brisa fria e gostosa em minhas mãos.

Esqueço a respiração, esqueço os pensamentos, fico ali no friozinho visitante.

Quem é você?

O vazio, o frio, a mão, o agora.

* * *

O grupo da jornada finalmente pode se encontrar. Num lugar sem tempo e sem espaço, Ana convidou o grupo para fazer uma trilha na floresta cujo destino seria o alto de um monte. "Vamos olhar a vista lá de cima" ela propôs.

Éramos mais de cem. Ao longo da jornada vinhamos aquecendo esse vínculo e o trabalho coletivo criou campo para esse encontro. Estávamos todos felizes, entusiasmados. Alegria e bate papo durante o início da caminhada. O sol, o céu, o frescor da mata a nossa volta. Íamos chegando a uma parte da trilha mais fechada. "Uma espécie de labirinto, Ana revelou, se viéssemos antes eu tenho certeza de que não conseguríamos achar o caminho. Mas agora eu tô sentindo que a gente está preparado. Mas estar preparado não é garantia. Para onde vamos não há planejamento que nos garanta o sucesso. Vamos ter que atualizar constantemente."

Dizendo isso deu aquele senso de aventura e mistério, que ela costuma dar criando campo para uma abertura no grupo, abrir mão das respostas prontas. Uma trilha sem mapa. Vamos precisar ler nossos instintos. Farejar o caminho. Perceber o movimento da emoção.

Movimento conceitual.

Movimento da emoção.

Quando seguimos o movimento conceitual, é o caminho da razão, da matemática. Isso tem sua graça. Uma boa partida de xadrez é um embate matemático. O equilíbrio das peças, as regras dos movimentos, o que pode, o que não pode, e o jogo vai se estabelecendo num equilíbrio de ataque e defesa, de disputa equilibrada por posições. Até que um dos oponentes vence uma batalha. Toma uma peça de valor. Desequilibra o jogo e daí em diante a tendência é ganhar. Num jogo de mestres, assim que perde uma peça importante, o adversário já desiste. Não é fraqueza. É que matematicamente o jogo está ganho. Não tem distrações. O jogo está definido.

Levamos a vida no movimento mental. Estamos acostumados a ele. Mas isso não nos garante a vitória sobre a confusão, a desconexão, a doença, a ignorância, o sofrimento. Porque o movimento emocional tem suas próprias leis e quando nos deludimos com o atraente jogo mental, nos esquecemos dos caminhos do sentir. Deixamos as sensações, o corpo, e os sentimentos em segundo plano e seguimos mentalmente em busca das segundas intenções, já que as primeiras estão escondidas para nós mesmos.

Então o convite da jornada tem sido seguir, ver de perto, olhar, para os movimentos da emoção.

E quando a Ana nos convidou para essa trilha disse que teríamos de acessar esse movimento, farejar o caminho, permitir-se sentir. Essa coragem envolve admitir coisas que não estaríamos prontos para admitir nem para nós mesmos. Ainda mais ali, no meio de cem pessoas. Deu medo. Mas deu alegria também. E a alegria foi maior do que o medo. Seguimos.

Chegamos a uma bifurcação. Um caminho da esquerda e um caminho à direita. O grupo parou. Cada um consultou sua intuição. Fomos pelo caminho da esquerda. Caminhamos, caminhamos, caminhamos. E a trilha nos levou a um paredão rochoso. A pedra que leva ao topo do montanha. Dava para ver o topo. Mas não tínhamos equipamento para escalar. Não era por ali. Tentemos a trilha da direita.

Voltamos e seguimos o outro caminho. Caminhamos, caminhamos, caminhamos. a trilha chegou ao fim num imenso precipício. Olhando para trás, dava para ver lá no alto o topo do monte. Mas ali era o fim da linha. Caso contrário a queda era certa.

Voltamos à bifurcação e meditamos. Fomos integrar as emoções que nos surgiram durante a caminhada nas duas trilhas.

Cada um fez o seu execrício de olhar as emoções.

Eu, que estava perto de pessoas que tinham filhos ou eram educadores, olhei para essa relação com as crianças.

Quero que a criança não passe pelas dores que passei. Isso me leva a um movimento de proteção. Essa é a trilha da esquerda. Tento ser bom para elas. Lembrei de uma cena que vi na infância que ficou marcada na memória. Foi a perda da inocência. Não quero que as crianças percam a inocência. Ajo marcado por esse medo. Minha bondade não é boa, é medrosa. Bato contra a parede.

Volto e trilho o caminho oposto. Quero que a criança faça o meu caminho. Aprenda o que aprendi. Passe pelo que passei. Na base de minhas ações tem uma emoção de raiva. Se sofri, que sofram também. Me vejo numa emoção de despeito. Reproduzo exatamente a violência que me fizeram passar. Isso é sem querer. Mas é esse o movimento da emoção. Eu não faço fisicamente. Mas minha garganta se entope, a mágoa aparece. E não consigo fingir. As crianças sentem. Caio no precipício.

Volto. Nem um nem outro. Medo caminha junto com abandono. Proteção com frieza.

Vi a criança numa relação em que ela era subjugada pelas mais velhas. Sofri com isso. Depois a vi com uma criança da mesma idade, de certa forma, mandando na brincadeira. Minha mente disse que isso também não era certo. Mas minha emoção me denunciou, sentindo uma alegria. Uma pequena vingança. Minha mente é Descartes. Meu coração é Shakespeare.

Uma vontade fraca. Uma vontade forte. O meu caminho, o outro caminho. De um polo a outro.

Estou ali com o grupo, diante dos dois caminhos. Nenhum dos dois nos levou ao alto do monte. Acho que era isso que Ana estava querendo nos mostrar com essa caminhada. Eu não sabia o que se passava dentro de cada um dos participantes ali. Mas a meditação foi ganhando um nível de silêncio maior, estava mais fácil concentrar e esvaziar.

Então me veio mais um pensamento. Na base de minha emoção está: eu quero ajudar. Quero que sigam meus conselhos, que minha intervenções sejam úteis. Quero um mapa. Um método. Bastaria repetir. Quero fazer o outro ver. Na base dessa emoção tem uma crença: Eu vejo, mas o outro não vê. Volto para mim: eu vejo e não vejo.

O que está escondido? O que me trouxe aqui?

Sigo a meditação, respiração, pensamentos, a montanha, atualiza, nem espontâneo, nem controlado, nem egoísmo, nem altruísmo.

Quero ajudar. Tenho medo de atrapalhar. Se atrapalho... Não sou legítimo . Pai é aquele que ajuda. Quando ajudo eu adquiro legitimidade. Revelou -se:

Eu busco legitimidade. Eu busco me tornar legítimo.

* * *

Marisa Monte gostou de ouvir uma pessoa desafinada. Ampliou-lhe as possibilidades musicais.

Desafinado. Afinado. Só conhecemos o canto afinado. O desafinado se cala. Outras tonalidades. Não conceitual. Não dá pra saber. Não dá pra explicar. Não dá pra traçar roteiro. Nada fazer. Fazer livre. Mas não um livre oposto ao padronizado. Um fazer. Não dá pra explicar. O jeito é confundir.

O mundo doente. Se estou bem estou mal. Se estou mal estou mal. Não há saída.

Escola. Fora dela sou louco. Dentro dela sou louco. Se a critico sou louco. Que fazer?

Não resolve. Dissolve.

Brisa fria em minhas mãos.

Acho que tenho poder. Rezo pelo outro como se fosse fazer alguma diferença. Não tenho poder. Me rendo. Rezo pelo outro e contemplo o poder inerente a vida. E os pássaros cantam. E a brisa das mãos penetra a perna.

E assim todo o corpo... vou sentindo o mundo sub atômico.

E, não sei como estava o processo de cada um ali na floresta, mas o fato é que todos ao mesmo tempo abrimos os olhos. À nossa frente já não havia mais floresta. Nem trilha da esquerda, nem trilha da direita. A floresta se abriu. Era um campo aberto. A montanha desapareceu! Caminhamos. Ocupamos o lugar onde antes era a montanha, olhamos para o alto e vimos as paredes da montanha. Entramos! Estávamos dentro da montanha! Que surreal!

Ali dentro a mesma pergunta nos contagiava: para que subir a montanha se podemos estar dentro dela?

E assim ficamos, contemplando o lugar que chegamos juntos.

No xadrez das emoções, a grande figura é o cavalo. Os bispos cercam a montanha pelas diagonais. Torres pelos lados. Rainha protege as peças. Os peões avançam. O rei fica resguardado. Mas só o cavalo pula. A peça que não anda reto. Salta para frente e para o lado. Nenhum trilha nos levaria até lá enquanto andássemos pelo caminho reto. O cavalo desorienta. Por isso cheque mate de cavalo é a maior elegância na tradição do xadrez. É o menos óbvio. E assim nosso grupo experimentou um elegante cheque mate. A travessia se completou. Estamos dentro da montanha. Para onde iríamos então?

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A terceira mão


Seguimos na jornada da travessia.

Já uma mês e meio se passou. E nos últimos dias o foco lá em casa foi arrumar as coisas para viajar para Piracaia.

Sim, a travessia para nós foi também uma travessia de casa, de estrada, de amigos, de cidade, de paisagem, do virtual para o presencial.

A gente começou com a rotina de três vezes por semana ir pro cantinho lá da nossa casa e ouvir o encontro com a Ana pelas manhãs. Ao longo dos dias íamos vivenciando, experienciando os processos... 

E aqui esse livro vai sendo escrito com essas vivências e criações. Escrever como ato!

Enquanto escrevo sou. Quem sou? Que força é essa que sinto quando entro aqui em processo nessa arte de criar pensamentos? Hoje em dia, usando teclado do computador uso duas mãos para escrever. Mas sinto que existe uma terceira mão. A que me impulsiona a um pulsar, contemplar, criar... tudo isso ao mesmo tempo. Será essa a mesma terceira mão que nos empurrou para cá?

Em nós, já desde antes, estava a vontade de estar lá, ou melhor, aqui. Especialmente quando Ana e Fábio abriram as conversas sobre a Vila XI, um espaço de moradia, convívio e... principalmente: serviço.

Serviço à terra. 

Tudo que estamos trabalhando na jornada tem a ver com a arte de escutar. Escutar o outro, escutar a si, escutar a vida.

Escutar os velhos padrões da mente, dos sistemas, dos enredos que ficamos mestres em contar enquanto nos enredamos em ciclos de sofrimento e esquecemos de olhar o real.

E qual o fazer emerge da escuta?

Foi então que ouvi Ana e Fábio falando sobre a necessidade do serviço.

Tão simples, tão antigo, e tão original nas conversas... (a gente quase nunca ouve a Ana falar disso. É claro, a toda parte há gente falando em servir, mas acaba que o serviço nasce de uma motivação moralista, dualista, cheio de segundos interesses... quando é que o serviço nasce genuíno?)

Desconstrói, olha o conflito, integra, olha a dor, integra, desconstrói, desfaz certezas, esvazia, desilude, esvazia... e o que fica? 

Servir.

Servir a quem? 

Qual o serviço que não entra na roda do sofrimento e termina por servir a manutenção do sistema de opressão? São questões que me tocam nesse momento de crise com a profissão.

Como saber?

Não é questão de saber... é questão de ouvir... ou melhor de se deixar empurrar pela terceira mão.

Nessa semana ouvi a história da iluminação de Kuan Yin.

Quando jovem, Miao Chan, contraria a vontade de seu pai, um rei cruel, e consegue evitar o casamento e adentrar num monastério. No entanto, o rei faz de tudo para prejudicar seu caminho: pediu que dessem a ela os piores serviços. Quando o pai soube pela superiora do convento que uma força divina ajudava sua filha a manter a diligência no serviço, ele ficou furioso e mandou incendiar o mosteiro com as monjas dentro. Porém, uma tempestade debelou o fogo. Depois mandou executar a jovem, mas no momento da execução a espada do algoz se partiu ao meio. E outras armas também ruíram. Até que um tigre celestial leva o corpo inanimado da moça e a leva ao interior da floresta onde é recebida por um ser celestial, vestido de azul. Juntos fizeram uma jornada aos infernos para que os espíritos em sofrimento pudessem ouvir as orações da jovem. E o inferno se transformou num paraíso de alegria. Instrumentos de tortura se transmutaram em flores. Por fim a alma da jovem volta ao corpo na floresta e o Buda aparece para ela e a convida a um mosteiro antigo numa ilha, habitada por imortais. Após 9 anos ela atingiu sua meta e foi entronizada para que o mundo pudesse se beneficiar de sua iluminação. Proclamada soberana do céu e da terra, e um Buda, recebeu seu novo nome: Kuan Yin. Com seu poder de devoção e propensão ao sacrifício ela transformou seu pai, de um rei tirano a um homem compassivo. E sua mãe também se tornou sábia.

Essa história tem muito detalhes, aqui é só um resumo.

Mas um deles me marcou muito.  

Quando jovem, ao recusar o pedido de seu pai para se casar ela disse:

"Meu desejo é curar a humanidade de todos os seus males, por meio da bondade."

A terceira mão.

As duas mãos calculam, pesam, conversam, analisam. Agem, colhem os frutos. Vêem as polaridades. E até se juntam trazendo um vazio criativo no centro. Mas existe uma terceira mão. Em mim, sinto que ela me empurra mais ou menos no meio das costas. Impulsiona meu tronco ligeiramente a frente ao passo que sustenta a coluna. Sutilmente abre o coração que se ilumina de uma alegria quente como o sol no fim de tarde. Me faz acreditar no amor ou algo que tenha um nome para isso. Me faz confiar na vida e que tudo vai dar certo. Me empurra em direção a bondade. Pelo menos até aqui ela nos trouxe. Vamos ver até onde vamos.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Liberdade, radicalidade, amor e vacuidade na educação


Há alguns anos venho observando as conversas sobre liberdade.

A luta de classes: adultos versus crianças.

A luta nas classes.

Luta no interior do adulto diante da luta das crianças.

Quanta luta!

"Bota na aula de luta que resolve!"

Quando comecei a gostar do imenso desafio que é estar à frente de um grupo de crianças e estar, de algum modo, ajudando-as...

Desde lá, já me encantavam ideias revolucionárias sobre educação.

Um dos primeiros revolucionários que li, foi um que criou uma escola onde as crianças e os jovens tinham a liberdade de escolher o que fazer. Inclusive a liberdade de nada fazer. E ele mostrava os maravilhosos resultados. Mesmo que não estivesse em busca desses resultados.

Ele dizia assim: gostaria antes de ver a escola produzir um varredor de ruas feliz do que um erudito neurótico.

Liberdade sem medo.

Depois conheci vários outros revolucionários. Cada um com um tom. Mas o certo é que dá pra fazer diferente no campo da educação. E dá pra ver com clareza que não fazemos diferente, enquanto sociedade, porque... bem... porque aí tem coisa... é complexo demais isso... multidimensional.

Se a gente não se pre-ocupa, cria um bom ambiente, um bom adulto preparado pra não atrapalhar, as crianças vão, por seu próprio interesse, fazer suas buscas, trilhar seus caminhos.

Quem somos nós, adultos? Preparados ou não. E como nos vinculamos na relação com as crianças?

No último encontro da jornada vi que a radicalidade poderia ir mais longe do que eu jamais havia pensado. E é por isso que me animei a escrever. Pra trazer as lacunas abertas de meu corpo.

Radical.

Radicalismo não é extremismo, nem fanatismo. É ir lá na conexão com as raízes.

Sempre busquei as raízes das coisas.

Quando comecei a pensar achava que, ao ver as causas históricas das contradições da vida social, eu estava indo às raízes. Bom, então temos que fazer uma mudança nas estruturas que compõe a história... depois fui indo às raízes das raízes... e a raiz de toda a raiz é viver com raízes nesse real. Isso é uma jornada e tanto.

Mas no encontro de ontem ouvi uma radicalidade que me pareceu ainda mais profunda, mais anterior.

Ouvi uma conversa assim:

O que você deseja para a seu filho?

Que ele seja feliz.

Ótimo, pensei eu. Mais um do time. Já abriu mão de querer escolher a profissão do filho. Já abriu mão de escolher e tentar pre-definir tanta coisa pro filho. Tá resolvido.

Mas não tá.

Você consegue abrir mão de desejar alguma coisa pra ele? Inclusive abrir mão que ele seja feliz?

Essa pergunta... nos pegou. E fez ver que as atitudes de uma criança estão presas nesse campo de demonstrar a felicidade ou a infelicidade para os pais... conflito. A raiz da raiz do conflito está no desejo.

E a pergunta me trouxe ainda outra:

Abro mão de ser pai? De tê-la e vê-la como filha?

"Vossos filhos não são vossos filhos, lembra a poesia de Gibran, são os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma"

O poema já foi escrito. Resta-nos vivê-lo.

O que significa pensar em termos de pai e filho?

O que está pre-determinado nessa relação?

O que vem implícito nisso?

Que jogo de poder?

O que o inferior tem que fazer para agradar o outro, para obter o reconhecimento do superior?

As sensações corporais agradáveis de ter sido reconhecido, acolhido, visto por ele (ao agradar ou ao desagradar, o que é diferente mas é o mesmo)... são essas as sensações que buscamos em tudo que fazemos vida a fora, tanto quanto evitar as sensações que vieram de não ter sido reconhecido, acolhido ou visto...

"Está na cara que o medo está na medula..."

As buscas "inconscientes"...

E aí a gente fala de liberdade na educação mas nunca se perguntou sobre as coisas que estão nas raízes dos vínculos, nunca olhamos pra isso.

Ana nos fez ver o esforço que a criança passa a ter que fazer para ser feliz para atender o desejo do pai. Mas felicidade não vem com esforço.

E nem a amplitude genérica embutida no desejo dele ser feliz... garante a liberdade para o outro, a liberdade para a relação, a liberdade para mim.

Preciso abdicar de qualquer intenção.

Inclusive da intenção de ter a garantia de que abdicando da intenção isso trará qualquer grau maior de liberdade.

Abdicar das intenções por princípio.

Quando desinvisto de querer que minha filha seja feliz, libero-a para ser o que for que ela possa ser, e que já é, ao invés de desenhar um caminho para ela trilhar seja para me agradar ou desagradar, sendo feliz ou não.

Liberdade para que ela componha totalmente a sua história de vida. Que é na verdade o que vai acontecer, quer eu faça ou não exercícios aqui. Cada um comporá sua própria história. Aqui a gente só está se alinhando ao fato.

Posso olhar essa pessoa que aqui está... não com o filtro que me faz ver uma filha? Mas uma pessoa a mais que está aqui com a gente? Vivendo, assim como nós, adultos... vivendo.

Não estou contradizendo Hellinger... ainda vamos integrá-lo nisso. Mas é preciso antes fazer desabar a torre das visões estabelecidas.

Só posso ver o outro como pessoa se abro mão de qualquer expectativa sobre ele... mesmo que seja a mais nobre e a mais livre... abro mão de desejar que ela seja livre para ser ela mesma... isso vai dando um nó na cabeça... vai trazendo a percepção da vacuidade.

Não sou. Não és.

Para onde vai o emocionar encantado, aquele encanto de ver "minha" filhinha fazendo isso ou aquilo? Posso viver sem essa emoção? E ainda assim amar o outro? Será que o amor não é o que virá justamente quando me desfizer dessa emoção que tem posessividade em seu fundo?

O ato educativo de uma vacuidade em relação a outra vacuidade.

Isso é revolucionário demais?

domingo, 14 de junho de 2020

Aquietar e falar


Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Pulsar. O pulsar e o silêncio. O silêncio e o pulsar.

Silêncio ruim, silêncio duro, “Cala a boca!”
Quanta palavra presa... Quanta ferida aberta...
Silenciamento. Invisibilidade.
"Ninguém veio ao mundo para ocultar-se."
Fala que cura, fala que liberta. Explosões de fala.
Fala, fala, fala.
Se abre, se mostra, se ama.

Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Ouço o som do silêncio.
Silêncio bom, silêncio em paz. “Fica mais um pouco, não precisa dizer nada, só fica.”
Quanta presença boa. A natureza. A pessoa amada. Eu comigo mesmo.
Silêncio que cura, que organiza, que recomeça.
Palavras são tangentes. O centro é silencioso.
Se olha, se cuida, se ama.

Fala atenta. Nobre palavra. Nobre silêncio. Presença.
Fala dispersa. Tagarelice. Mente agitada. Fugas.

Tento o silêncio e ouço a profusão de pensamentos agitados.
Não existe silêncio!
Eckhart Tolle: tem sempre um ruído, como um rádio ligado. Você pode fazer silêncio, mas tem sempre um ruído no fundo.
Percebo em desespero: não existe silêncio! A tagarelice não para!
Os ruídos são as interferências do mundo ambiente no mundo próprio.
Ouço vozes. Quantas vozes insisto em carregar? 
Biopoder, biopolítica. Servidão.

“Vai ao coração. Lá reside tua mente.”
Olha as crianças! Como brincam silenciosas.
Como de repente explodem.
Como de repente riem.
Como de repente conversam.
Como de repente calam... mudança... mudança... mudança.
Sem transições.
Qual o segredo?
Em mim, percebo as mudanças, mas há uma força que não se rende ao fato. E fico remoendo, ressentindo, recriando, antecipando... ruído, ruído, ruído... o drama, a história, a imaginação, a ficção, a projeção... eis o alimento da mente dispersa.

Inibir a ação mental que não se rende ao fato. Render-se ao fato. Como simplesmente esquecer a ficção, a imaginação, o roteiro, o sentido, as explicações e repousar no fato? É tão arriscado perder todo o drama... nele sou o protagonista de um épico, onde as maldades são justificáveis, os atos heroicos são exaltados... Será que nunca vai acabar esse drama?

Uma história: Vem alguém. Vem alguém. Alguém concreto vem. A mente inteiramente atordoada, perdida em si mesma, em meio a seus próprios fantasmas. Mas alguém vem. Quantas vezes um encontro concreto já me tirou do infinito de confusões? O encontro. O real. O concreto. A diferença. O conflito, o incômodo. O espelho, o incômodo, a revelação. Sim, está em mim também. Sim sou eu. E de novo volto para mim: olho, afino, decanto. Trabalho, reconheço, libero-me. Surge um espaço de criação, uma brecha de pensamento livre, um vazio para uma ação. A liberdade num lampejo. Mas e o outro? A mente insiste. Deixe o outro em seu caminho próprio. E de tudo isso, algo vai se processando, os fantasmas da mente, a concretude das ações, das falas, das leituras, dos encontros, até que nova brecha vai se abrindo. Uma nova revelação. Um novo estado. Um novo vínculo com o mundo. (Se não tivesse o encontro, o conflito, a fala, mesmo que tagarela, não haveria esse deslocamento e essa revinculação com o mundo. O outro me abre portas de vinculação com o mundo, com o território do sistema mais próximo a ele, mais presente em seu cotidiano. E me aproximo. Dói a dor de dar-me conta de meu pequeno mundo de outrora. Dói e me move). E de novo o silêncio. A calma. Momentânea eu sei. Mas um respiro de calma. Contemplo, escrevo, converso. Escuto melhor agora. Vem alguém? Não tenho pressa que venha agora. Porque agora que aqui cheguei já não preciso de alguém. Se vier, sorte. Se não vier, sorte também. Agora me sinto em comunicação com o mundo inteiro. Comunicação: muni é silêncio em sânscrito. Comunicação é silêncio em comum. Estou pronto para o amor.

A mente no coração é silenciosa.

A escuta do silêncio. A escuta do som. O ritmo.

Quem não tem ritmo é porque não sabe escutar.

Escuto. Mesmo o silêncio escondido no gesto verbal do outro. Escuto.

Postura de aprendiz: primeiro e último asana.

Encontro no silêncio. Encontro silencioso. Como amantes:

“Teresa, quando você entra em oração o que você fala com Deus?”
“Eu não falo. Eu escuto.”
“Ah é? E o que ele te fala?”
“Ele não fala, ele escuta. Não sei se você consegue entender. Mas é o máximo que consigo explicar.”

Neste silêncio em que escrevo ouço as vozes do mundo. Não mais perturbam minha mente. Ouço a beleza e a tranquilidade do mundo não humano. Ouço o amor dos humanos (they are really saying: I love you). É o que move cada um. Ouço a bondade, sem ruído. Percebo e recebo o amor de todos. Eu honro todos os seus ancestrais. Eu honro a sua existência. E assim, e só agora, estou pronto para falar.

Falar como expressão de uma presença. Aqui estou. Junto a essas palavras.

A fala presente. Assim como ando, ando. Assim como respiro, respiro. Assim como falo, falo.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

"Não tem como dar errado"


"Não tem como dar errado."

Se ao invés de me colocar como alguém que está criando algo eu me coloco como alguém que está criando a si mesmo não tem como dar errado.

Nove de copas: "Aquilo que já foi vivido é eliminado."

Por que fala?

"Quem me dera ser leal, discreto e silencioso como a minha sombra."

A realidade existencial da sombra...

Primeira história: Acordou de manhã e não era mais a pessoa, mas a sombra. Não decide, não fala, nem mesmo procura a luz ou o escuro, surge e desaparece sem escolha. Ao fim do dia descobre em sua própria realidade existencial a única liberdade possível. Adormece feliz.

"Sacrificar os sentimentos que nos agrilhoam e que nos nutriram."

O que nutre, aprisiona.

Segunda história: Não queria desperdiçar a existência. Passou a vida de forma muito construtiva. Tanto construiu que, ao final da vida, postou-se na torre mais alta que erguera, o lhe valeu grande orgulho, e, lá do alto, foi contemplar o todo de sua obra. Perplexo, deparou-se com os muros de sua própria prisão. Sentiu fundamente o desperdício de sua vida, realizando justo aquilo que tinha mais medo.

O I Ching fala: desintegração.

"Quando o fruto apodrece a semente se desenvolve."

Conservar é não desenvolver.

Terceira história: Após o almoço foi levar as cascas e os restos de comida na composteira do terreno ao lado. Retirou a terra com a enxada, abriu espaço para o lixo orgânico. Tomado de curiosidade, no entanto, quis olhar como andava o que havia deixado na semana anterior. Retirou a terra e as folhas de cima. Estava quente. O alimento apodrecia. Saía fumaça. Pequenos seres ali faziam seu banquete e cresciam. Quis chegar mais perto. Cheirar. Mais perto... e algo extraordinário aconteceu. Lembrou-se do mesmo cheiro do dia do enterro de sua mãe. Chorou a dupla morte: de sua mãe e de suas ilusões. Olhou para o lado e vinha chegando uma serpente que lhe beijou sentidamente o rosto. Ali ficou, o tempo necessário até a troca de pele. Seguiu rastejando com sua mãe, que lhe mostrava, por debaixo das folhas secas das árvores, o segredo da vida. "Partiram em direção a dimensões emocionais mais amplas."

"Queria sentir isso sem achar que vou morrer"

Intensidade! Para além das motivações.

Quarta história: Ator, prestes a entrar em cena. Sente todas as reações orgânicas de seu pânico de público, o mesmo temor e tremor de sempre. Não consegue se acostumar ao hábito. Vai sozinho a um canto atrás do palco, acende uma vela e reza: que dessa vez seja diferente. O anjo vem e lhe pergunta: quer viver sem medo? Sim, é tudo que mais quero. O anjo lhe diz: que assim seja. O ator vai. Sente uma estranha liberdade. A ausência de medo. Porém, não consegue atuar. Está sem vida. Corre de volta a ver se pega o anjo ainda na coxia. Ele está lá, e sorrindo sugere: desfazemos o feito? O ator de olhos baixos concorda: se for dessa vez, que eu vá inteiro. O anjo lhe diz: que assim seja. Sorri, olha nos olhos e o ator não vê o anjo, mas a morte. É você? Sempre fui eu. E o jovem ator diz sem pensar: Fica comigo? Sempre estarei. O ator vai e brilha o seu melhor brilho.

"Não somos meras partes do todo na Natureza, tomamos parte, participamos da atividade infinita."

Liberdade: eu sou a causa de mim. Dos desejos, imagens, paixões, ideias que aqui dentro tomam aparência.

Servidão: deixo-me habitar pela exterioridade, deixo-me governar por ela, e pior, imaginando estar governando-a. Ilusão de força na fraqueza.

Quinta história: ouvia vozes. Aniquilou-se.

Sexta história: nasceu, cresceu, se desenvolveu, se reproduziu e morreu na guerra contra a facção inimiga. Deixou livros, hinos e filhos.

"Sob pressão não tem criação. Pode ter produção. Para criar preciso estar relaxado."

Sétima história: Amou. Silenciosamente. E foi amado.

"Não tem como dar errado."


* * *


Citações em ordem fractal:

Max Antunes
Mariana Amaral
Franz Kafka
I Ching
Ana Thomaz
Tokkou
Tarot de Marselha
Benedito Espinosa
Alejandro Jodorowski
Hélder Câmara
Eve Idrissi

Ilustração: mão direita enquanto os olhos e os ouvidos assistiam o encontro.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Palavras rabiscadas no papel: medo


Medo
Medo do mal, da fome, da guerra, dos meninos mais velhos, da minha irmã mais velha.
Medo da violência estúpida, do carro, do avião, do barulho.
Do trovão.
Medo de sair daqui, de ir pra lugar nenhum.
Medo da angústia, do sentido. E se a vida não tem nenhum sentido mesmo?
O passarinho, a cigarra cantam uma música sem sentido.
Só o bicho homem tenta encontrar respostas pro seu medo. E mente. E mente tantas vezes que começa a acreditar em sua própria mentira.

E se faltar comida?
E se vier mesmo o inimigo em guerra e nos violentar e às nossas mulheres e às nossas crianças, a nossa inocência.
Eu passarinho, eu cigarra.
Ouvi e contei histórias para justificar a presença do medo brutal.
A dor.
Dói, dói o braço, dói o dente, dói o dedo do pé, dói na gente.
Medo de me machucar. Medo de machucar.
Minha mão marcada nas costas do menino. Primeira e última briga.
Medo de escada, da espada, da picada da abelha.
Medo da mentira. Da mentira ser descoberta.
Segredo.
Medo de fracassar.
Medo de ganhar (e meu amigo ter tanta raiva - melhor perder)
Frágil, frágil. Vulnerável.
O tempo. O tempo não tem medo de nada.

Harari, Krenak.
Guerra, mito, guerras por mitos, ficções, nação, ideal, religião, deus, dinheiro, propriedade.
Vazou.
Escorreu toda a ficção pelo ralo.
Só ficou o que posso sentir e observar.
Não estamos no centro do universo.
Medo, medo, medo do rato.
Quem me ensinou a odiar os ratos? Somos tão parecidos. Gostamos de cama quente e comida fácil.
Eu os amo.
Medo da fome.
Nem isso, nem aquilo.
Nem mesmo o sonho do indivíduo livre.
Não escolho. A cadeia de pensamentos escolhe por mim.
Pensamento, prisão, sofrimento.
Democracia é prisão.
Fascismo é prisão.
Prisão. Parece nome de bicho. Bisão. Pisão. Bicho que pisa e esmaga.
Preso. Beijo.
Nem o sonho romântico é real.
Amada divinizada. Deus amado.
Medo da tristeza que sinto.
Medo do desânimo. Des-alma.
Anima, animus. Amor, o outro, alguém. A beleza, a perfeição.
Medo da mulher extremamente bela que é a minha eterna busca/ilusão.
Hocus pocus.
Tudo invenção.
Tudo, tudo desceu pelo ralo.
E agora?

Fiquei sem direção.
Não sei quem sou.
Antes já não sabia, mas acreditava poder saber.
Sentido de encontrar o amor, verdade, deus, felicidade.
O sonho acabou. Acabou. Acabou.
Deus morreu. O sonho morreu. O amor morreu. O sentido morreu.
Eu não tinha medo da morte pois tinha fé no sentido.
Agora que o sentido morreu o que me resta?

O passarinho, a montanha, o quente, a luz do sol.
Krenak.
A resistência da vida.
Vida des-pro-vida de toda e qualquer usurpação de sentido.
Vida, vida, vida.
Medo, medo, medo.
Vida, vi da me
Dá-me, dá-me, dá-me
Dou, dou, dou.
Vi, vi, vi.
Eu vi a vida dando.
Dou, disse a vida.
Dou-me à vida.
Aqui está. Está. Está.
Bilhões de átomos.

Onde está o sofrimento?
Onde está o medo?
Onde está o sentido?
Onde está o eu?

On de
Om de estar aqui.
Om, om, om.
Não sei nada sobre o som.
O silêncio.
É o som.
Krenak silencia. Silencia-nos.
Não posso me calar.
Sou o passarinho, sou a cigarra, sou aquele que canta. Sou o canto.
Por que canto?

Escrevo, escrevo, escrevo
E vou viver.
E entro no mato, as árvores, o ritual.
O ritual sem sentido.
O sonho. O ritual no sonho. Faço o ritual que vi no sonho.
Volto, pego a vela.
Por quê? Pra quem?
Não importa, não pergunta.
Só faz o que fez no sonho.
Entro na mata.
Acendo a vela.
Corpo, frêmito, acordo.
O esquilo.
O esquilo vem até mim.
O canto do esquilo.
O ritual, o esquilo, eu cumpro.
O ritual nasce do corpo e não tem nenhum significado.
Só depois os pensadores vão dar sentido.
Eu vivi o meu primeiro ritual.
A mata, a vela, o esquilo, o corpo.

sábado, 6 de junho de 2020

Nosso ato político



Olhando para essa foto, eu menino, 10 anos, ao lado do Lula. Vejo a expressão de cansaço físico. O esgotamento das forças físicas num dia, lembro bem, de muita caminhada, comício, conversa... campanha eleitoral é um dia atrás do outro de muito movimento, pouco descanso, muitas trocas, muita energia. Muito esforço, muito sonho. A alegria da alma de entrar numa luta que vale a pena. Dentro de nós existe esse lugar: a boa briga.

10 anos.
20 anos.
30 anos.
40 anos: fui com um grupo do Yoga de Rua participar do retiro de silêncio, meditação e técnica Alexander no M.U.D.A, em Piracaia - SP. Uma semana juntos com outras pessoas de diferentes lugares. E ali, misturados, eu e o nosso grupinho de 5 pessoas incríveis que tinham em comum a experiência de viver na rua.

Para mim, organizar essa ida do grupo para aquela vivência, que alguma coisa produziria em sua jornada de vida, era o mais potente ato político que estava em minhas mãos realizar. Valeria todo o cansaço.

Um dos participantes era o Fênix (nome ficctício).

Lembro dele nos grupos do café da manhã ali do Flamengo - RJ. Depois lembro dele numa meditação que a Ivana conduzia semanalmente às seis da manhã no Aterro do Flamengo, perto do aeroporto (cartão postal do Rio). Ali conversamos e fui com ele até a casa da ex-mulher ver as filhas, e até a casa da mãe e da irmã. Fomos ficando amigos...

Que história é essa de meditar e fazer yoga com as pessoas na rua? É onde chegou a minha história com a política. Desde 1989... eu segui um caminho de fazer política. O Lula seguiu o dele. Ambos temos uma coisa em comum. O gosto de entrar em boas brigas. A minha briga foi com a falsa verdade estabelecida de que as pessoas que moram nas ruas não são pessoas. Não parariam para meditar e fazer yoga, por exemplo.

Outra verdade até então aceita é que yoga é coisa de ricos, no Brasil. Eu não tentei convencer ninguém. Não fiz nenhuma manifestação, nenhuma pressão parlamentar, nenhuma reunião com ninguém influente. Não fiz parcerias com empresas, nem governos, nem fundei nenhuma ong. Fui lá e vi que era possível fazer. Tinha grama, nem tapetinho precisava. E não fiz porque queria ensinar nada, nem provar nada. Eu estava praticando yoga diariamente e estava vinculado a essas pessoas numa atividade em comum que era o café. Daí, desse vínculo e da minha cabeça vazia e das minhas angústias de que o que estávamos fazendo ali era pouco, nasceu a ideia. Ofereci partilhar o que eu sabia, convidei-os a praticar comigo, mesmo eu não sendo professor.

Essa foi a potência política completamente fora do que eu esperava quando comecei esse caminho lá atrás, sonhando em mudar o mundo, aos 10 anos. Eu fui caminhando pela vida, buscando saber e descobrindo o não saber, entrando e saindo de ideologias e crenças, me esvaziando de expectativas e de presunção e fui ver que eu já não era mais um professor dando aulas, mas o amigo querendo ter práticas em grupo. Juntos, tivemos ótimos professores. De graça. E até hoje eu não sou professor. É maravilhoso não precisar ser professor.

Que impacto esse tipo de política pode ter no mundo? Não sei. É o que esteve nas minhas mãos fazer. Foi o meu caminho. Claro que, para mim, não era só fazer yoga com as pessoas. Era, de algum jeito, dentro da minha leitura do mundo, ir lá na ferida social, e atuar a partir dali. Diante do imenso... fazer algo que esteja ao meu alcance. De outro jeito que não só o assistencial. E escrevi e falei sobre isso ao longo de tempo. (Não tenho planetas na casa do voluntariado, estão todos na casa da ação no mundo... ainda vou entender melhor o sentido astrológico disso)

Quando o presidente dos Estados Unidos se encontrou com Teresa de Calcutá a conversa foi assim:

"Madre! Que trabalho maravilhoso a senhora faz. Eu gostaria de fazer o que a senhora faz."

E ela respondeu:

"Você não pode fazer o que eu faço. Mas eu também não posso fazer o que o senhor faz. Se o senhor for um bom presidente, o mundo se beneficiará imensamente."

Ali no retiro, cada um com sua individualidade... foi maravilhoso poder ter essa troca. Adoraria falar de cada um aqui. Quem sabe numa conversa futura. Voltemos ao Fênix.

Num dos dias do nosso retiro, o grupo estava todo na Redonda (sala de práticas) e com as conversas e os processos acontecendo, o Fênix demonstra estar bem contrariado e fala: "o problema de vocês é que vocês estudam demais." Ele quase sai da sala mas a Ana conseguiu continuar a conversa, e foi contando de sua história, da relação que ela tem com a escolarização, da admiração que tem pelo Sr Antonio, do Cariri, que não sabe ler etc. E fomos chegando a um trabalho coletivo das emoções ali presentes.

No dia seguinte, ao amanhecer pude ter uma conversa com o Fênix onde ele me contou um pouco mais de sua história (depois ele contou essa história na Redonda). As violências que ele e a família sofriam do pai, o caminho que ele fez no tráfico de drogas, as situações em que quase morreu, as situações em que pode salvar vidas, como foi poderoso ali naquela cultura do crime na favela e depois como foi saindo e como foi parar na rua, e as filhas que teve, e o fato de nunca ter batido em nenhuma delas... e todo aquele universo das periferias das grandes cidades, na voz de quem vive aquilo tudo na pele.

Aquele história não só foi ouvida. Mas fez parte dos processos de integração de todos os participantes sob a condução da Ana, e das meditações da vacuidade e da interexistência, com a Cuca e a Guida. Muitos de nós tivemos pesadelos, mergulhamos nesse mal estar contemporâneo, nossas estruturas, nossa cultura...

Como é fazer parte desse mundo num lugar de privilégio? Como, mesmo assim, integrar e voltar a si e se abrir ao que surge como ação?

Como é sentir-se impotente para mudar os rumos dos acontecimentos? O que se faz depois disso que não nasça da impotência nem da busca pelo poder, mas da integração da polaridade?

Quais as ações políticas que nos cabem?

Nessa jornada da travessia estou lembrando de tudo isso e sentindo que estou num caminho de volta à política. Uma volta de onde eu nunca saí. Mas tem algo mudando... não sei o quê?

Estou processando aqui dentro, tudo isso.

Diante de tantas notícias recentes, trazendo à tona nossas cotidianas opressões e estruturas racistas, machistas, nossa devastação das florestas e dos ambientes naturais, nossa invasão das terras indígenas, nosso descaso com a guerra civil contra as pessoas das favelas, o descaso diante da desigualdade faraônica onde vivemos, o medo e o silêncio ante às questões de saúde  mental, a homofobia, a gordofobia e tantas outras xenofobias...

(Li que a travessia do povo judeu no deserto tinha como ponto de partida a intolerância ao nível de desigualdade e opressão política sofridas nas grandes cidades de então. O índice de desigualdade naquele tempo era semelhante aos índices brasileiros...)

Comecei a meditar através dos livros de um monge que, durante a Guerra do Vietnã, propunha uma espécie de budismo engajado. Em resumo: meditar, sim, indo para dentro, mas sem perder o vínculo com o mundo fora. Meditar como uma forma de integração entre eu e o mundo.

Lá no nosso retiro lemos um poema do Thich Nhat Hanh que vou transcrever aqui para vocês. Ele escreveu esse poema depois de ler uma notícia muito devastadora, um momento de grande horror, um pirata que estuprou uma menina que, com a família num barco, assim como muitos outros barcos, tentavam fugir de um campo de refugiados na Tailândia, e se arriscavam não só a naufragar como a sofrerem esses ataques piratas. A menina tinha só doze anos, jogou-se no mar e morreu.

Ele diz que a tendência é tomarmos partido contra o pirata e ficar do lado da vítima. Mas, meditando viu mais profundamente que se tivesse nascido na mesma aldeia que o pirata, vivido sob as mesmas condições que ele, ele também muito provavelmente se tornaria um pirata. E que se nada for feito, daqui a alguns anos as crianças que nascem lá poderão se tornar piratas também. Simplesmente atirar no pirata não resolve o problema, é atirar sobre nós mesmos.

Lemos esse poema, lá no retiro, pensando nos policiais e traficantes do Rio de Janeiro. E cada um ali, a seu modo, ampliando e pensando nos atores desse estranho drama que vivemos, com suas vítimas e seus culpados.

O poema se chama, "Por favor me chame pelos meus verdadeiros nomes" (clique aqui para ler o capítulo completo do livro onde aparece o poema)

Chamem-me pelos meus verdadeiros nomes
Não digam que parto amanhã
Porque hoje estou ainda chegando.
Olhe bem, a cada instante estou chegando
Para vir a ser botão de flor em ramo de primavera
Para ser passarinho de asas frágeis
Aprendendo a cantar em meu novo ninho,
Para ser lagarta na corola da flor,
Para ser gema oculta na pedra.
Estou ainda chegando para rir e chorar,
Para sentir medo e esperança
O ritmo do meu coração é o nascimento e morte
De tudo o que vive.
Sou a libélula em metamorfose
Em vôo sobre as águas do rio
E sou pássaro que se lança ao ar para engolir a libélula.
Sou rã que nada descuidada
Nas águas claras da lagoa
E cobra que em silêncio se alimenta da rã.
Sou a criança em Uganda, só pele e osso
Minhas pernas como gravetos
E sou o traficante que vende armas para Uganda.
Sou a jovem púbere
Que escapa em uma balsa
E que, violentada por um pirata, lança-se ao mar
Mas sou o pirata ainda incapaz de sentir e de amar
Minha alegria é como a cálida primavera
Que faz florescer toda a Terra.
Minha dor é como um rio de lágrimas,
Tão vasto que enche os quatro oceanos.
Chamem-me pelos meus verdadeiros nomes,
Para que eu possa despertar e enfim escancarar
Em meu coração as portas da compaixão.
Meditar é um ato político.

É um ato político escrever o poema.

Qual ato político nascerá do seu mergulho interior?

Olhando aqui para meus processos, vi meus sentimentos de impotência diante das coisas do mundo, vi que, em mim, a polaridade da impotência era o poder. Qual o bom de se sentir impotente? Me exime de uma certa responsabilidade, bem deixa livre para "viver minha vida". Qual o ruim de adquirir poder? Ter que assumir as consequências, o poder traz limites. Vendo o bom da impotência e o ruim do poder... pude abrir mão do poder. "Eu abro mão do poder". Volto-me para a política do corpo. Meus pés se energizam, assim como minha cabeça. Daí o que me vem?

Me lembrei da leitura que fiz de um livro do Swami Vivekananda, Karma-yoga: o caminho da ação, no capítulo Liberdade:

"Os grandes seres humanos morreram incógnitos.

Os Budas e os Cristos que conhecemos são apenas heróis de segunda classe quando comparados com os grandes seres humanos de quem o mundo nada sabe. (!!!)

Centenas desses heróis viveram em todas as nações, trabalhando em silêncio.

Silenciosamente vivem e silenciosamente morrem; e a seu tempo, seus pensamentos encontram expressões em Budas e Cristos, e são esses os que mais tarde se tornam conhecidos para nós. (...)

Eles, os puros sattvikas, jamais criam alvoroço e se derretem no amor.

Conheci um yogi assim em uma caverna na Índia. Ele é uma das pessoas mais maravilhosas que conheci. Perdeu tão completamente o senso de sua própria individualidade, a ponto de podermos dizer que a pessoa que havia nele se foi por completo (...) se um animal morde seu braço, ele está pronto a lhe oferecer também o seu outro braço (...) Ele não se mostra às pessoas e, ainda assim, é um repositório de amor e de ideias delicadas e verdadeiras. (...)

Os seres humanos superiores são calmos, silenciosos e desconhecidos. São os que realmente conhecem o poder do pensamento; estão certos de que, mesmo se entrarem em uma caverna, ali se fecharem, e simplesmente pensarem cinco pensamentos verdadeiros e então morrerem, esses seus cinco pensamentos viverão por toda a eternidade.

Na verdade, esses pensamentos penetrarão montanhas, atravessarão oceanos e viajarão pelo mundo. Entrarão profundamente nos corações e cérebros humanos, despertando homens e mulheres que lhes darão expressão prática nas ações da vida humana."

Ouço isso... olho para a foto lá de cima e me pergunto se o que estamos, aqui e agora, fazendo é política.