Era uma vez um cachorro.
Domesticado.
Um dia ele saiu da casa onde viveu toda a sua vida e adentrou
a floresta.
Caminhou, caminhou...
E encontrou, em meio às altas árvores e à beira da cachoeira,
uma ursa e uma serpente.
O cachorro sentiu-se amedrontado e encantado. Como eram
livres, selvagens e perigosos! Ao passo que ele era tão inofensivo, tão adestrado.
A ursa o acolheu como uma mãe. Caminhou a seu lado e mostrou
como conseguir alimento, nos diferentes recantos da floresta. De início, ela
teve de caçar para ele. Mas foi mostrando como ele deveria viver de suas
próprias artes.
A serpente, por sua vez, não foi nada simpática. Tampouco o
agrediu ou ameaçou. Silenciosa e compenetrada, mantinha uma aura de mistério
que, de certa forma, encantava o cachorro. Queria ser como ela. Ter sua força,
irradiar aquele respeito.
A ursa e a serpente faziam o cachorro ver a força do amor
próprio.
Mas ele não sabia o que era isso. Só conhecia o amor de seus
donos. Fazia o que lhes agradava. Estava longe demais de seu estado selvagem. Perdera
o rumo de si.
Por isso, em seus primeiros tempos na floresta não sabia
muito bem como agir. E se sentia inadequado. Temia os olhares reprovadores da
serpente e fazia de tudo para não desagradar a ursa a quem ele já sentia uma
enorme dívida.
Não sabia o que era ser cachorro. A ursa em seus longos
passeios uma vez o levou a um descampado, onde puderam ver a lua se escondendo
no horizonte. Era a primeira aparição da lua nova, delgada e vermelha, que se
mostrou logo após o pôr do sol. E ali tiveram uma conversa.
A ursa lhe dizia:
Escute o que a lua tem a lhe dizer. Eu não posso dizer com
minhas palavras. Precisa ser uma experiência sua. Não adianta você ficar querendo
ser um urso ou uma serpente. Você precisa ser o que você é, mas que se esqueceu.
Precisa agora esquecer o que aprendeu. E voltar a ser o que era antes dos seus
donos estragarem você. Precisa fazer o caminho de volta. Só que isso aconteceu
há tanto tempo e você ainda era muito criança. Então você não tem referências
de como é ser um cão selvagem. Mas precisa... precisa... como que começar de
novo. Eu acredito em você. Mas não posso fazer por você. Nem como te ajudar. Porque
eu não sei como é ser você. Só posso ser ursa. Este é meu destino e minha liberdade.
No dia seguinte o cachorro teve seu encontro com a serpente.
Ficaram um perto do outro, sobre as folhas secas do bambuzal,
num dia quente de céu azul, sem dizer uma só palavra. A serpente não tinha
nenhuma pressa, na verdade nenhuma vontade, de dizer nada para o cachorro. O
cachorro não sabia, mas a serpente também não tinha nenhuma intenção de
mordê-lo. Ela o respeitava. E o cachorro também não sabia, mas ela não o
odiava, e nem tinha pena de sua fraqueza. Ela o via como ele era. As serpentes
são assim. Elas não especulam.
E aquele encontro silencioso foi gerando, no interior do
cachorro, um conjunto de sensações imprevistas e desconhecidas. O medo foi se
transformando em sensações que o cachorro não saberia nomear, um novo calor
dentro de si. Os dias se passaram e o cachorro foi ficando íntimo desse novo
universo de sensações. E a distância dos humanos foi dando espaço para ele
experimentar novas formas de viver, sem procurar o tempo todo estar agradando, buscando
afeto. Ele foi vendo que o amor antigo foi dando lugar a novas percepções e começou
a sentir com mais clareza o frio do chão de terra quando pisado de manhã cedo,
o ar quente nas tardes de sol, o prazer de roçar seu pelos nos espinhos do
morango silvestre e de molhar seu rosto no orvalho perfumado do manacá. Gostava
de mergulhar nas águas do rio para saciar seu impulso à alegria e subia
gostosamente a cachoeira, brincando contra a força das águas e latindo para o
vento.
Ele não sabia dizer o que se passava. Mas algo estava
mudando.
Um dia ele acordou de manhã e, pela primeira vez, olhou a
ursa como ursa. A serpente como serpente. Já não possuíam mais aquela aura
selvagem. Eram comuns. E viu tudo a sua volta como jamais vira antes. E
novamente olhou seus amigos e os viu selvagens como antes. E de novo, comuns.
Eram selvagens, belos, perigosos, encantadores, e ao mesmo tempo eram comuns,
simples, cotidianos amigos com quem gostava de tirar uma soneca depois de uma
farta refeição que caçavam juntos.
E assim seguiu seus dias. Mal conseguia se lembrar do cheiro
de seus antigos donos. Não se detinha nessas memórias. Parecia-lhe uma outra
vida. E, de fato, era.
Adorei o conto, André... Me pareceu um tanto autobiográfico e, talvez por isso, fala um pouco de todos nós. Muito obrigado.
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