terça-feira, 23 de junho de 2020

O cachorro, a ursa e serpente



Era uma vez um cachorro.

Domesticado.

Um dia ele saiu da casa onde viveu toda a sua vida e adentrou a floresta.

Caminhou, caminhou...

E encontrou, em meio às altas árvores e à beira da cachoeira, uma ursa e uma serpente.

O cachorro sentiu-se amedrontado e encantado. Como eram livres, selvagens e perigosos! Ao passo que ele era tão inofensivo, tão adestrado.

A ursa o acolheu como uma mãe. Caminhou a seu lado e mostrou como conseguir alimento, nos diferentes recantos da floresta. De início, ela teve de caçar para ele. Mas foi mostrando como ele deveria viver de suas próprias artes.

A serpente, por sua vez, não foi nada simpática. Tampouco o agrediu ou ameaçou. Silenciosa e compenetrada, mantinha uma aura de mistério que, de certa forma, encantava o cachorro. Queria ser como ela. Ter sua força, irradiar aquele respeito.

A ursa e a serpente faziam o cachorro ver a força do amor próprio.

Mas ele não sabia o que era isso. Só conhecia o amor de seus donos. Fazia o que lhes agradava. Estava longe demais de seu estado selvagem. Perdera o rumo de si.

Por isso, em seus primeiros tempos na floresta não sabia muito bem como agir. E se sentia inadequado. Temia os olhares reprovadores da serpente e fazia de tudo para não desagradar a ursa a quem ele já sentia uma enorme dívida.

Não sabia o que era ser cachorro. A ursa em seus longos passeios uma vez o levou a um descampado, onde puderam ver a lua se escondendo no horizonte. Era a primeira aparição da lua nova, delgada e vermelha, que se mostrou logo após o pôr do sol. E ali tiveram uma conversa.

A ursa lhe dizia:

Escute o que a lua tem a lhe dizer. Eu não posso dizer com minhas palavras. Precisa ser uma experiência sua. Não adianta você ficar querendo ser um urso ou uma serpente. Você precisa ser o que você é, mas que se esqueceu. Precisa agora esquecer o que aprendeu. E voltar a ser o que era antes dos seus donos estragarem você. Precisa fazer o caminho de volta. Só que isso aconteceu há tanto tempo e você ainda era muito criança. Então você não tem referências de como é ser um cão selvagem. Mas precisa... precisa... como que começar de novo. Eu acredito em você. Mas não posso fazer por você. Nem como te ajudar. Porque eu não sei como é ser você. Só posso ser ursa. Este é meu destino e minha liberdade.

No dia seguinte o cachorro teve seu encontro com a serpente.

Ficaram um perto do outro, sobre as folhas secas do bambuzal, num dia quente de céu azul, sem dizer uma só palavra. A serpente não tinha nenhuma pressa, na verdade nenhuma vontade, de dizer nada para o cachorro. O cachorro não sabia, mas a serpente também não tinha nenhuma intenção de mordê-lo. Ela o respeitava. E o cachorro também não sabia, mas ela não o odiava, e nem tinha pena de sua fraqueza. Ela o via como ele era. As serpentes são assim. Elas não especulam.

E aquele encontro silencioso foi gerando, no interior do cachorro, um conjunto de sensações imprevistas e desconhecidas. O medo foi se transformando em sensações que o cachorro não saberia nomear, um novo calor dentro de si. Os dias se passaram e o cachorro foi ficando íntimo desse novo universo de sensações. E a distância dos humanos foi dando espaço para ele experimentar novas formas de viver, sem procurar o tempo todo estar agradando, buscando afeto. Ele foi vendo que o amor antigo foi dando lugar a novas percepções e começou a sentir com mais clareza o frio do chão de terra quando pisado de manhã cedo, o ar quente nas tardes de sol, o prazer de roçar seu pelos nos espinhos do morango silvestre e de molhar seu rosto no orvalho perfumado do manacá. Gostava de mergulhar nas águas do rio para saciar seu impulso à alegria e subia gostosamente a cachoeira, brincando contra a força das águas e latindo para o vento.

Ele não sabia dizer o que se passava. Mas algo estava mudando.

Um dia ele acordou de manhã e, pela primeira vez, olhou a ursa como ursa. A serpente como serpente. Já não possuíam mais aquela aura selvagem. Eram comuns. E viu tudo a sua volta como jamais vira antes. E novamente olhou seus amigos e os viu selvagens como antes. E de novo, comuns. Eram selvagens, belos, perigosos, encantadores, e ao mesmo tempo eram comuns, simples, cotidianos amigos com quem gostava de tirar uma soneca depois de uma farta refeição que caçavam juntos.

E assim seguiu seus dias. Mal conseguia se lembrar do cheiro de seus antigos donos. Não se detinha nessas memórias. Parecia-lhe uma outra vida. E, de fato, era.

Um comentário:

  1. Adorei o conto, André... Me pareceu um tanto autobiográfico e, talvez por isso, fala um pouco de todos nós. Muito obrigado.

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