terça-feira, 9 de junho de 2020

Palavras rabiscadas no papel: medo


Medo
Medo do mal, da fome, da guerra, dos meninos mais velhos, da minha irmã mais velha.
Medo da violência estúpida, do carro, do avião, do barulho.
Do trovão.
Medo de sair daqui, de ir pra lugar nenhum.
Medo da angústia, do sentido. E se a vida não tem nenhum sentido mesmo?
O passarinho, a cigarra cantam uma música sem sentido.
Só o bicho homem tenta encontrar respostas pro seu medo. E mente. E mente tantas vezes que começa a acreditar em sua própria mentira.

E se faltar comida?
E se vier mesmo o inimigo em guerra e nos violentar e às nossas mulheres e às nossas crianças, a nossa inocência.
Eu passarinho, eu cigarra.
Ouvi e contei histórias para justificar a presença do medo brutal.
A dor.
Dói, dói o braço, dói o dente, dói o dedo do pé, dói na gente.
Medo de me machucar. Medo de machucar.
Minha mão marcada nas costas do menino. Primeira e última briga.
Medo de escada, da espada, da picada da abelha.
Medo da mentira. Da mentira ser descoberta.
Segredo.
Medo de fracassar.
Medo de ganhar (e meu amigo ter tanta raiva - melhor perder)
Frágil, frágil. Vulnerável.
O tempo. O tempo não tem medo de nada.

Harari, Krenak.
Guerra, mito, guerras por mitos, ficções, nação, ideal, religião, deus, dinheiro, propriedade.
Vazou.
Escorreu toda a ficção pelo ralo.
Só ficou o que posso sentir e observar.
Não estamos no centro do universo.
Medo, medo, medo do rato.
Quem me ensinou a odiar os ratos? Somos tão parecidos. Gostamos de cama quente e comida fácil.
Eu os amo.
Medo da fome.
Nem isso, nem aquilo.
Nem mesmo o sonho do indivíduo livre.
Não escolho. A cadeia de pensamentos escolhe por mim.
Pensamento, prisão, sofrimento.
Democracia é prisão.
Fascismo é prisão.
Prisão. Parece nome de bicho. Bisão. Pisão. Bicho que pisa e esmaga.
Preso. Beijo.
Nem o sonho romântico é real.
Amada divinizada. Deus amado.
Medo da tristeza que sinto.
Medo do desânimo. Des-alma.
Anima, animus. Amor, o outro, alguém. A beleza, a perfeição.
Medo da mulher extremamente bela que é a minha eterna busca/ilusão.
Hocus pocus.
Tudo invenção.
Tudo, tudo desceu pelo ralo.
E agora?

Fiquei sem direção.
Não sei quem sou.
Antes já não sabia, mas acreditava poder saber.
Sentido de encontrar o amor, verdade, deus, felicidade.
O sonho acabou. Acabou. Acabou.
Deus morreu. O sonho morreu. O amor morreu. O sentido morreu.
Eu não tinha medo da morte pois tinha fé no sentido.
Agora que o sentido morreu o que me resta?

O passarinho, a montanha, o quente, a luz do sol.
Krenak.
A resistência da vida.
Vida des-pro-vida de toda e qualquer usurpação de sentido.
Vida, vida, vida.
Medo, medo, medo.
Vida, vi da me
Dá-me, dá-me, dá-me
Dou, dou, dou.
Vi, vi, vi.
Eu vi a vida dando.
Dou, disse a vida.
Dou-me à vida.
Aqui está. Está. Está.
Bilhões de átomos.

Onde está o sofrimento?
Onde está o medo?
Onde está o sentido?
Onde está o eu?

On de
Om de estar aqui.
Om, om, om.
Não sei nada sobre o som.
O silêncio.
É o som.
Krenak silencia. Silencia-nos.
Não posso me calar.
Sou o passarinho, sou a cigarra, sou aquele que canta. Sou o canto.
Por que canto?

Escrevo, escrevo, escrevo
E vou viver.
E entro no mato, as árvores, o ritual.
O ritual sem sentido.
O sonho. O ritual no sonho. Faço o ritual que vi no sonho.
Volto, pego a vela.
Por quê? Pra quem?
Não importa, não pergunta.
Só faz o que fez no sonho.
Entro na mata.
Acendo a vela.
Corpo, frêmito, acordo.
O esquilo.
O esquilo vem até mim.
O canto do esquilo.
O ritual, o esquilo, eu cumpro.
O ritual nasce do corpo e não tem nenhum significado.
Só depois os pensadores vão dar sentido.
Eu vivi o meu primeiro ritual.
A mata, a vela, o esquilo, o corpo.

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