quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Relato de hoje no Yoga de Rua

No dia anterior nos encontramos no comício do Haddad. Rubens e Rodrigo me acharam por acaso e ficamos juntos lá. Depois a Hanna, a Nanda e por fim a Marina e fomos ao final no bar onde o Sávio conquistou seu emprego e trabalha como garçom.

Hoje pela manhã acordei cedo. A Hanna mandou a lista de compras. Ela aceitou fazer o almoço nessas condições de parceria. Eu deixaria as compras na casa dela, e ao fim do dia alguém lavaria as panelas. Deixei minha filha na escola, desci de ônibus ali do Cosme Velho até Laranjeiras e caminhei até o hortifruti. Compras feitas, taxi até a casa da Hanna, porque estava pesado e porque queria chegar rápido e ainda pegar a capoeira de rua. Na São Salvador cheguei ainda a tempo de tocar uma música ao violão no finzinho do café. O Wallace se aproximou e cantarolou comigo: "deixa a luz do sol entrar! abra bem as portas do seu coração, e deixa a luz do sol entrar!" Eu sabia que ele andava afastado, que andava "doidão" por aí e deixei ele se aproximar assim, sem nem olhar para ele, para que nossa comunhão fosse num momento assim, soltando a voz.... E então se aproximou o amigo que toca a flauta doce e ficou tocando comigo, e até mandou eu parar de cantar pra flauta sobressair e ele fez um solo muito bonito mesmo. Não sei mais quem ouviu, o que sentiu, mas estávamos ali em momento criativo musical e amigo.

Dali seguimos para a capoeira e fiz a aula, esqueci de tudo e fiquei curtindo a aula e os aprendizados, os golpes, as rasteiras, a mandinga. Na hora da roda teve um momento muito emocionante para mim. Quando estávamos na roda cantando e um menino jovem se aproximou e entrou na roda e feliz começou a bater palmas e eu fiquei sentindo um tamanhão de emoção que nem sei dizer. Tem muito significado isso. Um menino branco, de classe média, ali chegando junto com a rapaziada pobre, negra. Um novato na capoeira chegando na roda. E sendo recebido com naturalidade, é só chegar. Isso é tão africano! Ninguém pede credenciais, é só chegar. E ele chegou e a roda continuou. E ele sorriu e se entusiasmou ali com o ritmo e o grupo e sei lá mais o que significava para ele, mas eu não parava de querer chorar por essa verdade tão bonita que a cultura popular brasileira transmite. O corpo, o ritmo, a entrega no movimento dos participantes, a roda, a inclusão, e aquelas músicas da ancestralidade e do tempo da escravidão falando em código que sabe lá o que significavam, estratégias de resistência contra o poder opressor. E hoje a gente canta ali na praça e tenta aprender algo desse simbolismo todo.

Tem muita vivência não dá pra contar. O homem que chega doidão, e entra na roda e os professores jogam com ele. E fico com medo, afinal o cara tá doidão e não tá em condições de medir seus atos, e tudo flui no jogo, e numa capacidade de acolhimento, e tudo com música e união e a gente encerra com música e muita alegria. No entanto, em algum momento ali no final, as 10:14 saí da roda e fui ver o celular, me senti um pouco sem energia, sem forças. E fiquei observando o que se passava aqui dentro e fui caminhando pro yoga assim observando esse estado meio "sem vontade", esperando que fosse passar, mas desconfiado que algo estava estranho no "campo" hoje.

Dali saio rápido ainda para comprar uma garrafa de álcool pra limpar os tapetes de yoga, e compro também a erva pro chimarrão do Maurício, gaúcho, que ganhou uma térmica e uma cuia e está todo orgulhoso de poder tomar seu chimarrão. Eu tinha prometido levar o uma erva de minha casa mas esqueci. Quis honrar o prometido e comprei ali no mercado mesmo. Eu gosto de investir nessas causas. Especialmente quando tem valor simbólico.

Chegando no local da prática, lá no parque, a Ivana tava dando aula pra turma dela, estavam fazendo aquelas respirações fortes da kundalini yoga e o nosso pessoal já estava esperando para ocupar o espaço. Encontrei o casal de franceses, que estão se dispondo a ajudar no que for nesse mês que ficam no Rio. E vejo que tem um grupo de umas quatro pessoas que estão sentadas ali em rodinha num clima muito alcoolizado e sabe-se lá se além de maconha alguma outra droga. O fato é que estavam "tortos" da bebedeira e dificilmente conseguiriam alguma coisa com a yoga. Vou lá em cima com o casal buscar os tapetes para que eles possam aprender o caminho e ver um pouco dos bastidores da estrutura material do projeto. Descemos pela trilha íngreme. É tudo cheio de aventura nesse projeto. Começamos a distribuir os tapetes. E fui na rodinha falar com o pessoas "trêbadas de cachaça": "Vocês estão fazendo o que aqui? A gente estava lá na capoeira. A gente começa mais cedo."

Um deles me responde que não é muito chegado à capoeira e que prefere ficar esperando ali.
A arrumação segue. Mostro para a Caru esse pessoal e na hora que olhamos estava lá a garrafinha de cachaça passando de um para o outro. "E aí, Caru, o que fazemos?" Eu pergunto. E ela: "vamos tentar evitar qualquer tentativa de controle."

Sabedoria serena do yoga. Muito bom ouvir isso.

Saio dali e vou limpar tapetes. Olho para um que está acendendo o cigarro ali entre nós e peço para fumar mais distante porque vamos praticar respiração ali. Ele compreende. E a Caru fala algo assim para todos: "se forem fumar fumem bem longe, ou apaguem o cigarro e venham praticar" E em seguida começa a convidar para o silêncio.

A prática se inicia de pé, um balanço para perceber a base, um pé, outro pé, depois olhos fechados um suave balanço para a frente e para trás e o milagres da concentração começam a acontecer. Silêncio começa a se estabelecer, no grupo de cerca de 30 pessoas praticando sob a grande árvore que nos abriga. Um menino (de uns 14 anos) começa a rir. Eu fiquei feliz de ouvi-lo rir, porque me parecia um riso de prazer de entrar no campo, de silêncio, de auto observação, etc. A Caru vai dialogando com ele num jeito bem divertido. Quando ele perguntou algo ela olhou com um olhar de personagem de filme e falou aquela frase de um mestre Jedi: "calma jovem, no momento certo você saberá". É assim com descontração que a Caru vai conduzindo as aulas e acolhendo as diversidades da turma.

Mas dessa vez o clima estava heterogêneo demais. Então dois homens, desses trêbados, que resolveram deitar ali no chão perto dela estavam falando, e ela pediu que eles ficassem e silêncio: "Douglas, silêncio" O homem provavelmente não se chama Douglas e houve uma curiosidade a respeito. Creio que a Caru inventa nomes mas dá uma impressão de uma capacidade incrível de saber o nome das pessoas mesmo sem elas dizerem. O legal é que funciona porque a turma sente respeito. E em geral ela sabe o nome de todos mesmo. Mas dessa vez? Será que ela perguntou? Eu não vi. Era Douglas mesmo? Nunca saberemos.

A prática continuou e lá pelas tantas Wallace começa a ficar nervoso, sabe-se lá com quem e dá gritos: "está feliz agora? está feliz com isso?" Não sei com quem ele estava falando. Mas era um tom agressivo, como que chamando para a briga. Nessa hora a Caru, que estava começando a postura da árvore levantou um braço e chamou: Wallace! Ele se concentrou. Todos nos acalmamos. E o engraçado foi que todos imitaram o gesto da professora e essa virou a entrada do asana. Tem coisa que só no yoga de rua mesmo.

Depois de um tempinho, o Douglas e o João, parceiros de conversa foram embora. Estavam sentindo muito frio (?!) Milagres do yoga. E o silêncio reinou.

Tivemos uma longa fase de relaxamento. Antes de abrir os olhos aquele maravilhoso e único breve momento de certeza de ter dúvida se eu sou eu mesmo. Momento que deve ser cultivado na disciplina do yoga. Na volta, abrir os olhos para ver a família de cisnes negros com filhotinhos passando ao nosso lado. O menino volta do relaxamento todo feliz dizendo: "você fez todo mundo ficar com sono!" Muito lindo ouvir esses relatos espontâneos e surpresos das crianças.

Pra encerrar fizemos uma roda, sentados e praticamos o Om contínuo por um tempo. Ao meu lado o Wallace ao invés de fazer o Om, fez um ressoar de sons, de inspiração em cantos sagrados xamânicos. Foi muito lindo poder acompanhar. Imediatamente me lembrei do texto do Osho que eu tinha lido no dia anterior. O Osho falava do trabalho de Meher Baba, um mestre sufi que atuava em hospícios guiando os masts, pessoas que na verdade não era exatamente loucas, mas que tiveram a experiência do sagrado e se perderam por falta de base, disciplina e de um mestre.

Disse o Osho: "Meher Baba viajava e vivia nos hospícios; e ele ajudava e servia os masts, os loucos. E muitos deles saíram de suas loucuras e começaram a jornada em direção à iluminação."

Quando eu li isso eu pensei: "Nós!"

E ali na roda do Om contínuo ouvindo o Wallace com aquela vontade de expressar o sagrado através do canto... e foi bonito o seu canto... me pareceu tão claro: os loucos de Deus estão aqui, somos nós.
E depois outros relatos ao final da roda: ouvi a voz da minha mãe, uma voz dentro da minha cabeça, o outro voltou à infância, tudo muito lindo... mas fomos interrompidos por uma briga.

Sabe ő cara que entrou doidão na roda de capoeira é eu fiquei com medo dele machucar os professores? Nessa hora da nossa roda ele chegou. Pediu pra falar. Eu disse: senta com a gente. Ele sentou e começou a perguntar o nome das pessoas.  Um a um foi dizendo o nome. Uma roda de apresentação.  No meio da apresentação a confusão.

Sim, o nosso menino tinha subido a trilha lá no alto e parece que jogou uma pedra num caminhão. O moço do caminhão desceu e veio ameaçá-lo. Ele correu de volta para a roda. O moço quase jogou uma pedra ou sei lá o que no menino mas se conteve graças sei lá a que divindade que nos poupou a todos. Fico me perguntando a ligação entre a quase briga do menino lá em cima e a palavra centrada no moço na roda (será que eu estou pensando demais?) "Passou. Já passou". A Caru disse, tentando trazer concentração ao grupo que dizia cada um o seu nome. Mas o grupo acabou se desfazendo e se dispersando. Natural. Tocamos violão, fomos ao banheiro, conversas informais, uma dupla começa a fazer acroyoga no meio da roda... um ambiente bem descontraído e feliz, harmonia para um grupo de 30 pessoas ali no parque.

O menino pra lá e pra cá fazendo "bagunça", tomando banho no bebedouro, o guarda municipal se aproximou. Tudo contornado. Mas, um dia sim de grandes emoções. Até que a Hanna chegou com o almoço. Ela teve dificuldades para trazer. Tinha telefonado para pedir ajuda mas ninguem atendeu. Veio sozinha até o parque e lá embaixo o pessoal ajudou. Comemos. Lemos, a pedidos, o trecho do livro do Yogananda, no curso da refeição. "Quando Deus trabalha com você, é impossível falhar!" Foi a frase que mais se destacou aos meus olhos.

Muita alegria de estar ali. Algumas coisas que eu ainda não entendo bem. As pessoas que chegam só para almoçar. Me pergunto como combinar coletivamente todas as variáveis presentes nesse projeto. Por exemplo a Claudia está voluntariando. E ia levar umas pessoas para comprarem óculos que seriam doados. Eu não sei até onde isso é parte do nosso projeto, ou de outro. Mas ela chegou para buscar as pessoas que iam fazer os óculos. E almoçou com a gente. Isso acontece diversas vezes com outra voluntaria desse trabalho de forminguinhas que ajudam as pessoas. E elas almoçam com naturalidade entre nós. Algo em mim diz que isso ainda não está bem combinado. Quem tem direito de almoçar? Todos. Parece ser uma boa resposta. Ao mesmo tempo há uma pressão para não atrair as pessoas que não tem sintonia com o trabalho, que ficam ao redor da prática se drogando esperando o almoço. Isso vai gerar tensões futuras? Precisamos cuidar disso ou, fazer o mínimo e evitar toda forma de controle.

A boa notícia do dia é que o casal francês, Daniel e Margot, levou os tapetinhos para uma lavagem. Um presente em forma de serviço ao projeto.

Dali fomos levar o pessoal para o projeto que oferece banho. No entanto, a coordenação do projeto nos pediu para, dessa vez, só mandar 10 pessoas, e só aquelas que já tinham ido antes. Isso nos colocou num desafio imenso. Dizer àquelas pessoas que se irmanaram conosco ali na prática que elas não poderiam ir. Algumas sim, outras não. Esse tipo de distinção. Dizer não. E ao mesmo tempo estávamos sensíveis, tentando compreender as necessidade do projeto que é nosso parceiro.

O nosso jovem ficou muito triste de não poder ir. Disse: nunca mais venho aqui. Se sentiu rejeitado. Claro. Caru ficou consolando-o. Dizendo que era só essa semana. O Davi disse ao amigo dele, no seu jeito de poeta underground: "uma porta se fechou mas uma janela vai se abrir e se não se abrir a gente abre uma fenda." E se disse consolado e foi seguir seu caminho. Chegamos na casa terra e o pessoal foi subindo. Um grupo de 13 pessoas chegou. Era para limitar a 10. O que me deixou com o nó emocional foi ver o Davi e seu amigo chegando e sentando num canto, atrás de uma parede, escondidos, para que não os víssemos. Então houve uma roda e expus meu desconforto. A coordenadora quis me ouvir. Quis ouvir porque eu não estava tranquilo. Expliquei a situação e falei do meu desconforto do rapaz dizer que ia embora consolado e se esgueirou para entrar. Muitos julgamentos passam em meu coração: me senti enganado, a mentira, etc. Um voluntário pondera, fala que talvez pudessem fazer um voto de confiança no grupo que estava ali etc., leva a questão para o grupo. Umas pessoas se oferecem para dar seus lugares. Mas são líderes ali e a coordenação conta com eles. Os rapazes "intrusos" ficam quietos. A coordenadora fala que uma solução seria pedir para quem está vindo pela primeira vez ir embora, já que a regra era essa. A Caru participa expondo que pedir pra alguem sair seria muito forte já que as pessoas estavam expressando, a sua maneira, uma vontade muito grande de estar ali. E que 13 é uma boa margem de erro para mais...

Decidiram deixar todos lá. Depois soube que o Jorge e o Rodrigo, "os líderes", não tomaram banho. Volto pra casa com todo esse incômodo e começo meu trabalho pessoal: porque me incomodo? quem em mim se sente enganado? quantas vezes eu mesmo não sou a pessoa que busca burlar as regras, as leis, as rigidezes? se me sinto como que violado, roubado pelo outro, que se aproximou de mim para se aproveitar do que tenho a oferecer, é porque ainda acredito que sou eu quem oferece algo e significa que não entendi ainda que Deus oferece todo o banquete que recebemos durante o dia e eu estou só para receber. Por que me permito me cristalizar nesse lugar policialesco que os proprios meninos me colocam com seu olhar de "vamos burlar as regras que esse cara quer colocar"? A minha mente cheia julgamento faz eles farejarem o policial que eles querem que exista para poderem burlar. Que armadilha!

Medito, medito, medito e dentro de mim vem essa vontade de não estar jogando a favor das regras, mas do amor absolutamente acolhedor com quem quer que seja, seja como for que venha. E que não sou eu que tenho que cuidar se o guarda municipal vai achar ruim ou não. E depois me lembro que nesse projeto temos a chance de integrar as polaridades, luzes e sombras do Real e que Deus está na disciplina e no indisciplinado, na verdade e na mentira, no perfume das flores tanto quanto no cheiro de xixi acumulado há semanas na roupa do moço que não toma banho. O cheiro de Deus. E que é aqui, justamente aqui, que posso alcançar o yoga. Oscilo entre o desrespeito as normas e o respeito as pessoas e aos projetos parceiros. Estamos no dilema da responsabilização de nossas ações. O menino que jogou a pedra no caminhão. Um outro que suja o banheiro. A vez que um roubou a banana do outro e isso gerou uma tensão. De alguma maneira precisamos nos responsabilizar juntos pelo que acontece no tempo que estamos juntos. E lembro que a questão não está tanto na ação, mas na prisão de dentro, em como me encrenco nas emoções, no mundo de sofrimento que crio para mim mesmo. E que não é entre eu e o outro, mas entre eu e Deus.

O fato é que na hora da prática do yoga a gente, de alguma maneira, se garante, confiando no processo do yoga, do mergulho na paz. A gente fecha os olhos ali na roda e medita. E tudo a nossa volta é paz. E as pessoas se integram. Então a gente não limita o numero de pessoas, nem pede credenciais de auto-controle mental. A prática por si só faz o filtro. Quem não é para estar ali se afasta. Quem precisa, se organiza internamente. Ou mesmo, dorme. Um sono mais tranquilo de seus dias. E isso é tudo bom. Então é bom demais estar com as pessoas, tanto na roda da capoeira quanto na prática do yoga. É uma oportunidade maravilhosa de brincar juntos, de estar num caminho de paz juntos. E viver esses momentos. Mas ao mesmo tempo precisamos responder.

Me pergunto, tendo vivido tudo isso... a abertura alegre da capoeira, a abertura serena do yoga... e os mundos fechados a nossa volta. Será que essas pessoas, são mesmo essa espécie de masts. Por que a rua? Que tipo de sensibilidade as deixou, em algum momento da vida, inadaptáveis ao estilo de vida tradicional, de famílias e empregos... o que as afastou da normose? Penso aqui no desejo de liberdade de quem se lança no "trecho"... busca pelo sagrado? Somos no yoga de rua, de alguma maneira, uma aposta de um reencontro dessas pessoas com a essência... com algo mais real e, consequentemente, disruptivo com essa ordem careta do mundo normótico. Dessa forma fico um pouco triste com que arruma emprego, desses de todo dia e tantas horas. Esse sair da rua talvez não seja um grande sucesso. A gente quer sair é da escravidão.

Eu, nesse momento, da escravidão das tramas mentais da minha relação com o Davi. Hoje foi ter entrado de penetra no projeto do banho, semana passada foi a história do roubo da banana, na outra foi um prego. Ele me dizendo: "não consigo seguir regras, não consigo sentir". Há mais de um mês nos conhecemos e ele tem me trazido esse vínculo forte e eu não sei como sair desse enredo. Que tipo de espelhamento ele está me trazendo? Não só ele mas esse grupo "do barulho" que está vindo pras aulas de quarta. Por quê? O que querem de nós? E o que nós que estamos criando essa realidade queremos deles? Quais aprendizados ainda temos a fazer com essas pessoas? E como dar respostas que "nenhum cérebro jamais pensou?"

"Deus é a base de tudo. Nossa fé em Deus fará o amor desabrochar dentro de nós.  Desse amor nascerá o sentido de dharma e de justiça. Então, sentiremos paz. Deveríamos ser tão ávidos em simpatizar com as dores dos outros quanto somos por colocar pomada em nossa mão queimada. Essa qualidade pode ser desenvolvida pela fé absoluta em Deus." Amma

Vamos seguindo que tá só começando...

domingo, 21 de outubro de 2018

Os ramos da videira

Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto, se não permanecerem em mim.

"Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma.


Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados.


Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será concedido.

João 15:4-7

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Notas sobre política em tempos de eleição e violência


Não tenho falado muito de eleições e disputa partidária. Não é meu tema de pesquisa, nem o lugar de minha militância política. Mas alguns alunos têm perguntado minha opinião sobre nosso momento atual, e a angústia que povoa o quadro mental, não só deles mas de tanta gente querida, mobilizou em mim a vontade de escrever expressando algo que possa trazer alguma clareza. Ou mais elementos de confusão, não posso prever.

Meu tema são as emoções, o caminho de autoconhecimento. Então apesar de ter começado pela economia, peço licença para começar pelos afetos. Toda ação tem origem num sentimento. Uma ação violenta, por mais fria e técnica que seja (mesmo nas atuais guerras tecnológicas), tem origem numa emoção de raiva, no sentimento de ódio. E o ódio é um sentimento presente e que veio a público nesse período eleitoral o que vem causando diversas manifestações de violência.

E como em teoria social o laboratório dos cientistas é a história, uma boa fonte de pesquisa é observar os fenômenos de violência, os sentimentos de ódio, na história. Quais são os aprendizados? Em todos os séculos a humanidade, desde que começou o patriarcado, guerreou e escravizou seus inimigos. Um biólogo estudioso da evolução, Humberto Maturana, argumenta que essa mudança de padrão civilizatório (das sociedades matrísticas para as sociedades patriarcais) se deu com base no surgimento de uma nova emoção: o ódio ao inimigo (nas sociedades matrísticas a emoção que, segundo ele, inclusive nos fez humanos, era o amor).

Então a história das sociedades patriarcais é uma história que tem a presença do ódio e, portanto, da violência, em suas entranhas. O que vemos hoje como expressão de ódio ao outro, é algo presente na nossa memória ancestral. Reeditamos hoje, o que viveram nossos antepassados. Sentimento de ódio ao diferente (xenofobia = ódio ao estrangeiro, racismo = ódio a um grupo étnico, homofobia = ódio a si mesmo, e por aí vai...) é a raiz das ações de violência entre os humanos e dos humanos em relação aos outros seres da natureza (as formigas, os rios e as florestas, por exemplo).

Sendo assim, as perguntas que eu faço em debates políticos é: por que produzimos armas? Por que investir tempo e energia na produção de artefatos cujo único objetivo é tirar a vida de um outro ser? Certamente existe ódio em todos nós. E esse ódio está sendo utilizado como capital político. Agora, devemos nos perguntar: Quem odiamos? Como se constrói a imagem daqueles a quem vamos odiar? Então entramos num terreno da construção da ideologia e das imagens sobre o outro... por que, como e desde quando aqui no Brasil se aprende a odiar o negro e as manifestações culturais de origem afro-brasileira, o índio e sua luta por uma outra forma de civilização de respeito à terra, o gay e sua busca por amar sem prestar contas ao moralismo social, o nordestino e seu direito de viver em qualquer cidade do Brasil, a mulher e sua legitimidade em ser pessoa para além do papel social da mãe devotada ao marido e ao lar?

Uma coisa está clara e evidente que o capital político deste momento é uma imitação de movimentos políticos de um passado que não deixou de multiplicar perdas de vidas humanas. E isso é um risco novo no Brasil. Não é um anti-comunismo, do tempo das ditaduras estadunidenses, é um anti-humanismo que nos aproxima ainda mais dos grandes genocídios da história. De onde vem a intolerância? Por que é tão difícil, para além dos interesses econômicos, a construção de uma sociedade que valoriza a pluralidade como valor intrínseco? Me lembro das aulas de ciência da religião, meu professor e orientador, por sinal protestante histórico, alertar para o perigo dos discursos anti-pluralistas e pseudo-cristãos, leituras bíblicas interessadas e sem coerência, afirmando um moralismo junto com o incitamento ao ódio, em nome de um deus de amor... e que essa coisa toda teria consequências...

Outra dimensão creio que diz respeito à mudança nos costumes e uma reação conservadora. O que era de se esperar. A gente está vivendo, e isso é um fato marcante, uma mudança no comportamento social, uma nova geração com uma nova liberdade sexual, e também uma atitude de autoafirmação das minorias que parece que não tem volta atrás. Depois de décadas de lutas, esses movimentos identitários têm conquistado força e voz, não só de luta política, mas de viver cotidianamente um novo estilo de vida... a estética do negro, namoros gays em público, novas estéticas do feminino, e isso vem incomodando aquele pessoal que foi confrontado anos atrás com a pergunta: "onde você guarda o seu preconceito?" Pois bem... esse preconceito estava guardado e escondido. Então com o acirramento da polaridade política ele vem a tona, de forma consciente ou não. Como assim inconsciente?

Vou tentar explicar com um exemplo: imagine uma típica família de classe média brasileira. Em geral se você pergunta se são racistas eles dizem: "não! tenho amigos negros, trato bem a minha empregada negra, deixo até ela dormir lá em casa, etc." Mas essa mesma família, por exemplo, diz assim para um jovem: "que bom que você não teve filhos com aquela namorada negra e agora se casou com uma branca... porque senão ia enfraquecer o sangue da família..." Essas pessoas dessa família não se declaram racistas. Mas então surge um candidato que se declara racista... e faz planos de governo, promete isso e aquilo... as pessoas dessa família sentem vontade de votar nesse candidato... conscientemente pelo seu plano de governo, pelo seu valor ético, por ele prometer caçar os marajás, varrer a corrupção do país... afinal, as pessoas querem mudanças... isso num plano consciente, mas inconscientemente querem um Brasil mais branco, e internamente se rejubilam quando uma sacerdotisa do candomblé ou um mestre de capoeira são assassinados... uma mulher é estuprada, um travesti é espancado... Isso que eu quero dizer que o preconceito inconsciente é usado como capital político nessa mobilização do ódio... é subliminar... pra quem vê de fora é óbvio, mas pras pessoas... elas se sentem fazendo o bem, as mudanças nos costumes está sendo veloz demais para elas. Agem por uma moral que acreditam ser boa... manter o sangue da família forte.

Um outro fato curioso nos debates diários desses tempos pré-eleitorais é a estreiteza temporal das argumentações. Falam de causadores de corrupção, de desemprego, num cenário de 10, 20 anos atrás... ora... a produção de pobreza e desigualdade, o saque das riquezas nacionais por particulares é fato no Brasil desde a sua invasão pelos povos europeus. E o que é a história política do Brasil? É uma história de perpetuação das elites no poder. A colonização deixou sua herança ainda viva em nós. Então os sistemas de perpetuação do poder, que veio das armas do colonizador, a escravização, e a dominação cultural-simbólica permaneceram vivos no Brasil. E daí que a grande surpresa histórica, não só do Brasil mas de todas as sociedades modernas, é que os regimes democráticos não foram capazes efetivamente de dar o poder ao povo; algo aconteceu que manteve a desigualdade e o mando nas mãos de poucos. O coronelismo foi o nome dado a esse sistema em que a política brasileira consistia na ascensão ao poder político, dos filhos e afilhados dos coronéis, através dos votos dos pobres, para manter o poder econômico e militar dos seus pais e padrinhos. Essa fisiologia política, os servos pobres elegem seus senhores ricos, chegou às sociedades urbanas, industriais, mesmo com a universalização do sufrágio, através, sem dúvida alguma, da perpetuação da ideologia (mentalidade) dos ricos que se aliaram aos meios de comunicação de massa (o quarto poder), de forma a manter uma elite que se sustenta justamente a partir do subdesenvolvimento.

Que fique claro que nenhum dos candidatos, nenhum dos grandes partidos que aí estão têm vontade de transformar esse contexto. Na verdade, essa a grande ilusão eleitoral. Por trás dos personagens, a verdadeira estrutura de poder permanecerá a mesma. Rico mais rico, pobre mais pobre. Acho importante desfazermos ilusões de mudança nesse cenário. O Brasil nunca teve governos realmente comprometidos com o desenvolvimento (no melhor sentido da palavra... não só econômico, mas intelectual, artístico, espiritual), nunca teve governos que pudessem criar um ambiente desenvolvido. Então isso me ajuda a ter calma nesses momentos eufóricos. Na verdade a política eleitoral não influi tanto quanto parece na nossa vida. Vai continuar ruim, mesmo se o seu candidato ganhar. Ou, melhor dizendo para nós que optamos em ser felizes apesar dos pesares, vai continuar sendo boa apesar do seu candidato perder. Explicarei isso melhor mais a frente.

Percebam, ouvi isso de uma amiga, a Ana Thomaz. Num ambiente rico, se você é rico é muito bom, e se você é pobre é bom também, porque o meio é rico. Mas num ambiente empobrecido, ser pobre é muito ruim e ser rico também não é tão bom. Então o que a gente precisa é criar um meio social rico... no cenário que temos vivido nesse séculos de exploração dessa terra e de ódio ao inimigo, não tivemos ainda a sabedoria de criar um ambiente bom. E para essa esperança de real desenvolvimento de nosso ambiente humano será preciso uma transformação de paradigma, que só poderá acontecer a partir de um nível muito profundo, das emoções...

Porque o que significa falar de emoções num nível societário? Como as instituições sociais se constroem com base nas emoções humanas? Me lembro de ter tido grandes lições com os livros de um psicanalista que estudou as sociedades... o Erich Fromm. Olhando para o ser humano, da perspectiva de uma falta, de um vazio essencial, e entendendo toda a busca humana ao longo da vida como um meio de suprir esse vazio, Fromm mostra como ao longo da história respostas diferenciadas foram se construindo: a busca de pertencimento ao grupo... os rituais coletivos das cerimônias xamânicas foram uma resposta com base no êxtase, hoje essa busca ganha expressão na sociedade de consumo do capitalismo, consumir para se sentir parte, usar as mesmas roupas, ver as mesmas séries de tv... e a adesão aos nacionalismos militaristas dos regimes totalitários, com seus desfiles cívicos, seus líderes endeusados, seu sentimento de unidade...

E aí ele concluiu que a única resposta madura do ser humano frente ao problema da existência é o amor. E que, na verdade, a gente precisa de uma outra civilização para expressar essa atitude amorosa a si e ao outro, porque nem o capitalismo nem o totalitarismo permitem a possibilidade da vivência do amor maduro. Dialogando com o Maturana, será preciso superar o patriarcado.
Penso nos debates odiosos que vivemos hoje, e em meio a essas emoções li aqui uma frase de uma grande mulher de amor do nosso tempo (talvez comparável somente a Madre Teresa) que é a Amma, a santa do abraço (já abraçou 30 milhões de pessoas e segue a vida abraçando e emocionando as pessoas que voltam a entender o que é o amor e o que elas são depois desses abraços). Amma me diz assim: "Meus filhos, amar verdadeiramente a Amma é amar a todos os seres no mundo, igualmente." Igualmente!! Aí eu vi que a nossa economia e a nossa política não tem nada de amor, e as nossas discussões atuais são como ensaios de uma novela que não vai ao ar.

Outras perguntas poderiam estar sendo feitas nessa hora: ainda precisamos de presidente? Até quando vamos sustentar a profissão do político, com altos salários e benefícios? A representação, se é que ela deva continuar nos moldes atuais, não deveria ser uma espécie de voluntariado? Que inspiração pode nos trazer, nos sistemas políticos futuros, a sabedoria dos anciãos, as rodas em volta da fogueira e os rituais para tomada de decisões coletivas? Os modelos verticais de poder nas instituições ainda fazem algum sentido? As instituições ainda farão sentido numa sociedade que acredita no amor, na potência humana, e na autorresponsabilidade?

Um outro elemento que penso seja importante nessa compreensão das emoções profundas e os acontecimentos políticos tem a ver com a possibilidade de pensar a partir do fato da reencarnação, ou, se preferirem, alguma memória inconsciente que trazemos de uma vida para outra. Se pensar em reencarnação como algo sério é desafiador demais para você tome apenas como hipótese para um raciocínio que pode fazer sentido mesmo em outras cosmovisões. Pois bem, nessas histórias de guerras e perseguições étnicas e religiosas do passado, imagine que um grupo de pessoas sofrem perseguição e são mortas de forma cruel. Passam-se os anos e essas mesmas pessoas renascem em outras nações, outras culturas, outras construções ideológicas, etc... imagine que o trauma de terem sido vencidos em guerras passadas tenha deixado nelas o desejo inconsciente de vingança. Agora com a possibilidade de ascensão ao poder, ouvem essa voz de seu interior: "agora é nossa vez". Ironicamente são capazes de perseguir o mesmo grupo do qual faziam parte no passado. Assim, a crueldade, o ódio parece não ter fim nessa Terra, a não ser que ocorra um processo muito profundo de cura das emoções, que em geral recebe o nome de perdão.

Reencarnacionista ou não, todo o pacifismo se nutre de sentimentos de amor e perdão. Porque parte da compreensão que a crueldade e ódio só tendem a produzir mais ações violentas e mais sofrimento. Assim, a conquista do amor é um processo muito mais profundo do que parece a primeira vista. O amor e o perdão são mais fortes do que o ódio e a vingança. E o que está em jogo não é tanto uma eleição, mas a possibilidade de evolução da espécie humana. Penso em Deus olhando tudo isso, colocando o ser humano nesse jogo enlouquecedor, nesse vai e vem do destino, com o único sentido de despertar uma consciência adormecida: uma consciência que fala de Unidade e Amor. A possibilidade de uma sociedade amorosa se torna uma utopia muito distante quando as gerações se fazem de surdas à sabedoria e parecem precisar viver a dor para aprender.

Um outro elemento que penso vem a partir de uma perspectiva de espiritualidade. Não consigo pensar em política sem essa perspectiva da evolução humana e do nosso lugar no contexto cósmico. E evoco essa perspectiva sobretudo quando penso em nossa responsabilidade em deixar um mundo melhor aqui para nossas crianças... Convido você a lembrar que quem Governa isso tudo aqui é Deusa/Deus Mãe/Pai, e que em Suas mãos está tudo isso aqui que chamamos vida. "Ele é o que tudo governa; Ele é o que tudo conhece, o que tudo permeia, o Protetor do Universo, o Eterno Governante - nenhum outro é capaz de governar o mundo eternamente." (Svetasvatara Upanishad) Então respiremos, respiremos, façamos sim o que cada um sente como o seu chamado, seu dharma, sua responsabilidade político-social-ecológica-etc, mas sem pânico, sem medo, nem da energia atômica, nem da violência política, nem mesmo da amiga morte, para que possamos transmitir às nossas crianças o valor mais fundamental de todos... a confiança na vitória do Amor, no determinismo absoluto do Bem Maior.

Qualquer que seja a circunstância exterior, a Luz de dentro pode brilhar, florescer, despertar. Lembremos que estamos aqui, nesse planeta amado, cumprindo alguns segundos da nossa vasta existência cósmica, um tempo breve como o da fina gota d'água que desce espiralando até a terra em dias de chuva, e que nas vitórias e nos testemunhos, nos períodos de reinados e de exílios, no alto dos montes ou no vale de sombras, sempre será tempo de despertar a luz de dentro, a conexão com o divino e de fazer o bem. Que nossas filhas e filhos possam se iluminar/autorrealizar/unir a Deus... elas/eles são luzes, merecem herdar o melhor mundo que possamos lhes oferecer... mas não somos o Onipotente, saibamos reconhecer nossos limites para ensinar o valor dos limites, o melhor mundo que podemos lhes oferecer é o calor de nosso afeto, e o som da nossa risada, mesmo nas condições mais difíceis... e... confiemos que elas e eles tem e terão a criatividade risonha e divina de fazer poesia-amor-e-arte com toda maldade e loucura que possam lhes apresentar.

Tudo é parte do real. A maldade e a bondade... e Nada é Real, lembra que isso aqui é só um sonho. O sentido da vida não é vencer no mundo... é vencer o mundo. Então respira, estufa o peito e bora seguir confiante que ninguém pode matar, nem roubar o que é precioso e verdadeiro em nós. Essa é a lição de nossos ancestrais... dos mais diferentes povos... de todos os exílios e sacrifícios, nos desertos ou nas florestas... o valor que eles todos nos transmitiram é esse: eleva o olhar, vê do alto, ama, trabalha, espera, perdoa...  vitória da luz!!

André, Rio de Janeiro, 9o. dia do Navaratri, 2018.