Não tenho falado muito de eleições e disputa partidária. Não é meu tema de pesquisa, nem o lugar de minha militância política. Mas alguns alunos têm perguntado minha opinião sobre nosso momento atual, e a angústia que povoa o quadro mental, não só deles mas de tanta gente querida, mobilizou em mim a vontade de escrever expressando algo que possa trazer alguma clareza. Ou mais elementos de confusão, não posso prever.
Meu tema são as emoções, o caminho de autoconhecimento. Então apesar de ter começado pela economia, peço licença para começar pelos afetos. Toda ação tem origem num sentimento. Uma ação violenta, por mais fria e técnica que seja (mesmo nas atuais guerras tecnológicas), tem origem numa emoção de raiva, no sentimento de ódio. E o ódio é um sentimento presente e que veio a público nesse período eleitoral o que vem causando diversas manifestações de violência.
E como em teoria social o laboratório dos cientistas é a história, uma boa fonte de pesquisa é observar os fenômenos de violência, os sentimentos de ódio, na história. Quais são os aprendizados? Em todos os séculos a humanidade, desde que começou o patriarcado, guerreou e escravizou seus inimigos. Um biólogo estudioso da evolução, Humberto Maturana, argumenta que essa mudança de padrão civilizatório (das sociedades matrísticas para as sociedades patriarcais) se deu com base no surgimento de uma nova emoção: o ódio ao inimigo (nas sociedades matrísticas a emoção que, segundo ele, inclusive nos fez humanos, era o amor).
Então a história das sociedades patriarcais é uma história que tem a presença do ódio e, portanto, da violência, em suas entranhas. O que vemos hoje como expressão de ódio ao outro, é algo presente na nossa memória ancestral. Reeditamos hoje, o que viveram nossos antepassados. Sentimento de ódio ao diferente (xenofobia = ódio ao estrangeiro, racismo = ódio a um grupo étnico, homofobia = ódio a si mesmo, e por aí vai...) é a raiz das ações de violência entre os humanos e dos humanos em relação aos outros seres da natureza (as formigas, os rios e as florestas, por exemplo).
Sendo assim, as perguntas que eu faço em debates políticos é: por que produzimos armas? Por que investir tempo e energia na produção de artefatos cujo único objetivo é tirar a vida de um outro ser? Certamente existe ódio em todos nós. E esse ódio está sendo utilizado como capital político. Agora, devemos nos perguntar: Quem odiamos? Como se constrói a imagem daqueles a quem vamos odiar? Então entramos num terreno da construção da ideologia e das imagens sobre o outro... por que, como e desde quando aqui no Brasil se aprende a odiar o negro e as manifestações culturais de origem afro-brasileira, o índio e sua luta por uma outra forma de civilização de respeito à terra, o gay e sua busca por amar sem prestar contas ao moralismo social, o nordestino e seu direito de viver em qualquer cidade do Brasil, a mulher e sua legitimidade em ser pessoa para além do papel social da mãe devotada ao marido e ao lar?
Uma coisa está clara e evidente que o capital político deste momento é uma imitação de movimentos políticos de um passado que não deixou de multiplicar perdas de vidas humanas. E isso é um risco novo no Brasil. Não é um anti-comunismo, do tempo das ditaduras estadunidenses, é um anti-humanismo que nos aproxima ainda mais dos grandes genocídios da história. De onde vem a intolerância? Por que é tão difícil, para além dos interesses econômicos, a construção de uma sociedade que valoriza a pluralidade como valor intrínseco? Me lembro das aulas de ciência da religião, meu professor e orientador, por sinal protestante histórico, alertar para o perigo dos discursos anti-pluralistas e pseudo-cristãos, leituras bíblicas interessadas e sem coerência, afirmando um moralismo junto com o incitamento ao ódio, em nome de um deus de amor... e que essa coisa toda teria consequências...
Outra dimensão creio que diz respeito à mudança nos costumes e uma reação conservadora. O que era de se esperar. A gente está vivendo, e isso é um fato marcante, uma mudança no comportamento social, uma nova geração com uma nova liberdade sexual, e também uma atitude de autoafirmação das minorias que parece que não tem volta atrás. Depois de décadas de lutas, esses movimentos identitários têm conquistado força e voz, não só de luta política, mas de viver cotidianamente um novo estilo de vida... a estética do negro, namoros gays em público, novas estéticas do feminino, e isso vem incomodando aquele pessoal que foi confrontado anos atrás com a pergunta: "onde você guarda o seu preconceito?" Pois bem... esse preconceito estava guardado e escondido. Então com o acirramento da polaridade política ele vem a tona, de forma consciente ou não. Como assim inconsciente?
Vou tentar explicar com um exemplo: imagine uma típica família de classe média brasileira. Em geral se você pergunta se são racistas eles dizem: "não! tenho amigos negros, trato bem a minha empregada negra, deixo até ela dormir lá em casa, etc." Mas essa mesma família, por exemplo, diz assim para um jovem: "que bom que você não teve filhos com aquela namorada negra e agora se casou com uma branca... porque senão ia enfraquecer o sangue da família..." Essas pessoas dessa família não se declaram racistas. Mas então surge um candidato que se declara racista... e faz planos de governo, promete isso e aquilo... as pessoas dessa família sentem vontade de votar nesse candidato... conscientemente pelo seu plano de governo, pelo seu valor ético, por ele prometer caçar os marajás, varrer a corrupção do país... afinal, as pessoas querem mudanças... isso num plano consciente, mas inconscientemente querem um Brasil mais branco, e internamente se rejubilam quando uma sacerdotisa do candomblé ou um mestre de capoeira são assassinados... uma mulher é estuprada, um travesti é espancado... Isso que eu quero dizer que o preconceito inconsciente é usado como capital político nessa mobilização do ódio... é subliminar... pra quem vê de fora é óbvio, mas pras pessoas... elas se sentem fazendo o bem, as mudanças nos costumes está sendo veloz demais para elas. Agem por uma moral que acreditam ser boa... manter o sangue da família forte.
Um outro fato curioso nos debates diários desses tempos pré-eleitorais é a estreiteza temporal das argumentações. Falam de causadores de corrupção, de desemprego, num cenário de 10, 20 anos atrás... ora... a produção de pobreza e desigualdade, o saque das riquezas nacionais por particulares é fato no Brasil desde a sua invasão pelos povos europeus. E o que é a história política do Brasil? É uma história de perpetuação das elites no poder. A colonização deixou sua herança ainda viva em nós. Então os sistemas de perpetuação do poder, que veio das armas do colonizador, a escravização, e a dominação cultural-simbólica permaneceram vivos no Brasil. E daí que a grande surpresa histórica, não só do Brasil mas de todas as sociedades modernas, é que os regimes democráticos não foram capazes efetivamente de dar o poder ao povo; algo aconteceu que manteve a desigualdade e o mando nas mãos de poucos. O coronelismo foi o nome dado a esse sistema em que a política brasileira consistia na ascensão ao poder político, dos filhos e afilhados dos coronéis, através dos votos dos pobres, para manter o poder econômico e militar dos seus pais e padrinhos. Essa fisiologia política, os servos pobres elegem seus senhores ricos, chegou às sociedades urbanas, industriais, mesmo com a universalização do sufrágio, através, sem dúvida alguma, da perpetuação da ideologia (mentalidade) dos ricos que se aliaram aos meios de comunicação de massa (o quarto poder), de forma a manter uma elite que se sustenta justamente a partir do subdesenvolvimento.
Que fique claro que nenhum dos candidatos, nenhum dos grandes partidos que aí estão têm vontade de transformar esse contexto. Na verdade, essa a grande ilusão eleitoral. Por trás dos personagens, a verdadeira estrutura de poder permanecerá a mesma. Rico mais rico, pobre mais pobre. Acho importante desfazermos ilusões de mudança nesse cenário. O Brasil nunca teve governos realmente comprometidos com o desenvolvimento (no melhor sentido da palavra... não só econômico, mas intelectual, artístico, espiritual), nunca teve governos que pudessem criar um ambiente desenvolvido. Então isso me ajuda a ter calma nesses momentos eufóricos. Na verdade a política eleitoral não influi tanto quanto parece na nossa vida. Vai continuar ruim, mesmo se o seu candidato ganhar. Ou, melhor dizendo para nós que optamos em ser felizes apesar dos pesares, vai continuar sendo boa apesar do seu candidato perder. Explicarei isso melhor mais a frente.
Percebam, ouvi isso de uma amiga, a Ana Thomaz. Num ambiente rico, se você é rico é muito bom, e se você é pobre é bom também, porque o meio é rico. Mas num ambiente empobrecido, ser pobre é muito ruim e ser rico também não é tão bom. Então o que a gente precisa é criar um meio social rico... no cenário que temos vivido nesse séculos de exploração dessa terra e de ódio ao inimigo, não tivemos ainda a sabedoria de criar um ambiente bom. E para essa esperança de real desenvolvimento de nosso ambiente humano será preciso uma transformação de paradigma, que só poderá acontecer a partir de um nível muito profundo, das emoções...
Porque o que significa falar de emoções num nível societário? Como as instituições sociais se constroem com base nas emoções humanas? Me lembro de ter tido grandes lições com os livros de um psicanalista que estudou as sociedades... o Erich Fromm. Olhando para o ser humano, da perspectiva de uma falta, de um vazio essencial, e entendendo toda a busca humana ao longo da vida como um meio de suprir esse vazio, Fromm mostra como ao longo da história respostas diferenciadas foram se construindo: a busca de pertencimento ao grupo... os rituais coletivos das cerimônias xamânicas foram uma resposta com base no êxtase, hoje essa busca ganha expressão na sociedade de consumo do capitalismo, consumir para se sentir parte, usar as mesmas roupas, ver as mesmas séries de tv... e a adesão aos nacionalismos militaristas dos regimes totalitários, com seus desfiles cívicos, seus líderes endeusados, seu sentimento de unidade...
E aí ele concluiu que a única resposta madura do ser humano frente ao problema da existência é o amor. E que, na verdade, a gente precisa de uma outra civilização para expressar essa atitude amorosa a si e ao outro, porque nem o capitalismo nem o totalitarismo permitem a possibilidade da vivência do amor maduro. Dialogando com o Maturana, será preciso superar o patriarcado.
Penso nos debates odiosos que vivemos hoje, e em meio a essas emoções li aqui uma frase de uma grande mulher de amor do nosso tempo (talvez comparável somente a Madre Teresa) que é a Amma, a santa do abraço (já abraçou 30 milhões de pessoas e segue a vida abraçando e emocionando as pessoas que voltam a entender o que é o amor e o que elas são depois desses abraços). Amma me diz assim: "Meus filhos, amar verdadeiramente a Amma é amar a todos os seres no mundo, igualmente." Igualmente!! Aí eu vi que a nossa economia e a nossa política não tem nada de amor, e as nossas discussões atuais são como ensaios de uma novela que não vai ao ar.
Outras perguntas poderiam estar sendo feitas nessa hora: ainda precisamos de presidente? Até quando vamos sustentar a profissão do político, com altos salários e benefícios? A representação, se é que ela deva continuar nos moldes atuais, não deveria ser uma espécie de voluntariado? Que inspiração pode nos trazer, nos sistemas políticos futuros, a sabedoria dos anciãos, as rodas em volta da fogueira e os rituais para tomada de decisões coletivas? Os modelos verticais de poder nas instituições ainda fazem algum sentido? As instituições ainda farão sentido numa sociedade que acredita no amor, na potência humana, e na autorresponsabilidade?
Um outro elemento que penso seja importante nessa compreensão das emoções profundas e os acontecimentos políticos tem a ver com a possibilidade de pensar a partir do fato da reencarnação, ou, se preferirem, alguma memória inconsciente que trazemos de uma vida para outra. Se pensar em reencarnação como algo sério é desafiador demais para você tome apenas como hipótese para um raciocínio que pode fazer sentido mesmo em outras cosmovisões. Pois bem, nessas histórias de guerras e perseguições étnicas e religiosas do passado, imagine que um grupo de pessoas sofrem perseguição e são mortas de forma cruel. Passam-se os anos e essas mesmas pessoas renascem em outras nações, outras culturas, outras construções ideológicas, etc... imagine que o trauma de terem sido vencidos em guerras passadas tenha deixado nelas o desejo inconsciente de vingança. Agora com a possibilidade de ascensão ao poder, ouvem essa voz de seu interior: "agora é nossa vez". Ironicamente são capazes de perseguir o mesmo grupo do qual faziam parte no passado. Assim, a crueldade, o ódio parece não ter fim nessa Terra, a não ser que ocorra um processo muito profundo de cura das emoções, que em geral recebe o nome de perdão.
Reencarnacionista ou não, todo o pacifismo se nutre de sentimentos de amor e perdão. Porque parte da compreensão que a crueldade e ódio só tendem a produzir mais ações violentas e mais sofrimento. Assim, a conquista do amor é um processo muito mais profundo do que parece a primeira vista. O amor e o perdão são mais fortes do que o ódio e a vingança. E o que está em jogo não é tanto uma eleição, mas a possibilidade de evolução da espécie humana. Penso em Deus olhando tudo isso, colocando o ser humano nesse jogo enlouquecedor, nesse vai e vem do destino, com o único sentido de despertar uma consciência adormecida: uma consciência que fala de Unidade e Amor. A possibilidade de uma sociedade amorosa se torna uma utopia muito distante quando as gerações se fazem de surdas à sabedoria e parecem precisar viver a dor para aprender.
Um outro elemento que penso vem a partir de uma perspectiva de espiritualidade. Não consigo pensar em política sem essa perspectiva da evolução humana e do nosso lugar no contexto cósmico. E evoco essa perspectiva sobretudo quando penso em nossa responsabilidade em deixar um mundo melhor aqui para nossas crianças... Convido você a lembrar que quem Governa isso tudo aqui é Deusa/Deus Mãe/Pai, e que em Suas mãos está tudo isso aqui que chamamos vida. "Ele é o que tudo governa; Ele é o que tudo conhece, o que tudo permeia, o Protetor do Universo, o Eterno Governante - nenhum outro é capaz de governar o mundo eternamente." (Svetasvatara Upanishad) Então respiremos, respiremos, façamos sim o que cada um sente como o seu chamado, seu dharma, sua responsabilidade político-social-ecológica-etc, mas sem pânico, sem medo, nem da energia atômica, nem da violência política, nem mesmo da amiga morte, para que possamos transmitir às nossas crianças o valor mais fundamental de todos... a confiança na vitória do Amor, no determinismo absoluto do Bem Maior.
Qualquer que seja a circunstância exterior, a Luz de dentro pode brilhar, florescer, despertar. Lembremos que estamos aqui, nesse planeta amado, cumprindo alguns segundos da nossa vasta existência cósmica, um tempo breve como o da fina gota d'água que desce espiralando até a terra em dias de chuva, e que nas vitórias e nos testemunhos, nos períodos de reinados e de exílios, no alto dos montes ou no vale de sombras, sempre será tempo de despertar a luz de dentro, a conexão com o divino e de fazer o bem. Que nossas filhas e filhos possam se iluminar/autorrealizar/unir a Deus... elas/eles são luzes, merecem herdar o melhor mundo que possamos lhes oferecer... mas não somos o Onipotente, saibamos reconhecer nossos limites para ensinar o valor dos limites, o melhor mundo que podemos lhes oferecer é o calor de nosso afeto, e o som da nossa risada, mesmo nas condições mais difíceis... e... confiemos que elas e eles tem e terão a criatividade risonha e divina de fazer poesia-amor-e-arte com toda maldade e loucura que possam lhes apresentar.
Tudo é parte do real. A maldade e a bondade... e Nada é Real, lembra que isso aqui é só um sonho. O sentido da vida não é vencer no mundo... é vencer o mundo. Então respira, estufa o peito e bora seguir confiante que ninguém pode matar, nem roubar o que é precioso e verdadeiro em nós. Essa é a lição de nossos ancestrais... dos mais diferentes povos... de todos os exílios e sacrifícios, nos desertos ou nas florestas... o valor que eles todos nos transmitiram é esse: eleva o olhar, vê do alto, ama, trabalha, espera, perdoa... vitória da luz!!
André, Rio de Janeiro, 9o. dia do Navaratri, 2018.
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