domingo, 20 de setembro de 2020

Notas

A gente não precisa ter medo de deixar de ser quem é pq o que vc é  já é.

Vivekananda disse: pq eu te amo.

Arjuna disse: eu quero vc do meu lado.

I choose you

 Há tantos caminhos para Deus quantas almas existem na terra.

 Somente os que não estão enamorados veem sua imagem no espelho.

 Quem tem fé nunca vai se perder.

Caminhar caminhar. Achar meu caminho.

Cap 2 VERSO 7: Agora estou confuso quanto ao meu dever e perdi toda a compostura devido à reles fraqueza. Nesta condição estou Lhe pedindo que me diga com certeza o que é melhor para mim. Aqui estou, Seu discípulo e uma alma rendida a Você. Por favor, instrua-me.

Eterna calma em meio à ação intensa.

In the morning I bathe my intellect in the stupendous and cosmogonal philosophy of the Bhagvat Geeta, since whose composition years of the gods have elapsed, and in comparison with which our modern world and its literature seem puny and trivial; and I doubt if that philosophy is not to be referred to a previous state of existence, so remote is its sublimity from our conceptions. I lay down the book and go to my well for water, and lo! there I meet the servant of the Bramin, priest of Brahma and Vishnu and Indra, who still sits in his temple on the Ganges reading the Vedas, or dwells at the root of a tree with his crust and water jug. I meet his servant come to draw water for his master, and our buckets as it were grate together in the same well. The pure Walden water is mingled with the sacred water of the Ganges.


Henry David Thoreau, Walden

 Vc é isso.

 O corpo pertence à Terra. Vc pertence a Deus.

Um iluminado não sofre pelos outros

Concepção védica de infinito. 

Sem limitações.

Quais três limitações? Espaço tempo e limitação por objeto.

Espaço. Estar aqui é não estar ali.

Tempo: surge e desaparece.

Objeto se é isso não é aquilo.

O que é sem limitação?

Sem limitação de espaço: onipresente.

Sem limitação de tempo: eterno

Sem limitação por objeto: all pervasive... que permeia tudo. 

Não se separa de nenhum objeto. Está em todos.

 Eu já andei por essa terra muitas e muitas vezes.

Não se satisfaça só com uma gota d'água. Vc precisa se jogar no seu rio.

Mantenha seu fôlego ao caminhar. Vc vai precisar dele.

 Todos neste mundo grande tem alguma tarefa a cumprir. O resto não é tão  importante, contanto que vc não se esqueça disso.

Mas se vc se lembrar de tudo, exceto isso, é como se vc não soubesse de nada.

As 3 borboletas. A primeira foi perto da vela e disse: eu sei sobre o amor. A segunda tocou a chama suavemente com suas asas e disse: eu sei como o fogo do amor pode queimar. A terceira jogou-se no coração da chama e foi consumida. Só ela sabe o que é amor verdadeiro.

 Minha alma se abre para receber-te

Revela teus tesouros

Abre teu livro

Dá que eu possa ouvir tua música.

Joanna Macy : World as lover, world as self

Humildade ver a qualidade dos outros

Paciência força de não reagir

Thomas de Kempis

Para obter paz: 

1. Ter menos que os outros.

2. Seja o último e os outros primeiros

3. Procure fazer a vontade do outro ao invés da sua

4. Em todas as situações aprenda a aceitar a vontade de deus

 Sat

Asat

E entre os dois:

Nitya : parece existir, toma emprestado a existência de sat por um tempo. Não existe por si só.

Ex. Fogo e a panela a água a batata. O calor existe no fogo. Mas apenas por um período de tempo na batata panela e água.

Sat sempre existe.

Asat  não existe e nunca aparece.

Nitya: não existe e parece existir por um periodo de tempo. Aparece sem existir. uma categoria de seres: surge e desaparece.

O falso. A aparência. Uma miragem.


Sankara: Tudo o que experienciamos  no mundo é dessa categoria.

Experiencia: objeto + existência.  "Isness"

 Esse senso de existência não vem e vai. Mas permanece. Sat

Se não houver mais objeto, nao posso perceber a existência. Preciso estar em relacao com os objetos para perceber a existência. Mas sem objetos não é que a existência deixa de existir. Só não tenho como perceber.

 Brahma satyam jagat mityam.

A onda não é feita de água. A água se manifesta na forma de onda.

 Mãe divina. Infinita sem limite consciência daquilo que existe (isness).

Jogo de Deus: finge que não é Deus. Agora sao dois. Deus e o universo. Tudo que ele faz é tão perfeito. Finge tão bem que se esqueceu que não era ele. Deus está buscando Deus.

Puro ser existe e o experimentamos através deste mundo de aparências.

Como imagens no lago. Só o lago existe.

Raja 2 17

bhakti 8 22

jnana 9 4

karma 18 46

Eu permeio todas as coisas. Mas elas não estão em mim.

Brahma permeia tudo. Igualmente. Todas as diferenças estão em maya. Alto e baixo. Vivo ou não vivo. Macho e fêmea. Uma ou outra nacionalidade. Humanos e animais. A mesma divindade.

Ou seja... respeito. Harmonia. democracia.

Não sistema casta e opressão da mulher (Vivekananda).

A luz revela as coisas

As coisas manifestam a luz.

A luz da consciência.

Experiências sensoriais e da mente... sao diferentes entre as pessoas. Mas é a mesma consciência por trás de tudo. Eu e tu somos um.

Não há outro sonhador do sonho.

Ramakrishnanada, pq um santo como o Sr sofreu tanto?

Ele respondeu:

O que vc está dizendo?

Minha vida real é infinita. Deixe Deus brincar com essa pequena vida como Ele quiser.

Está além de toda estrutura de conhecimento. Mas é aquilo que permite toda a estrutura de conhecimento. 

Olhos mente... consciência.

Galant  Strossen from austin Texas. O problema não é a consciência. Todos sabemos o que ele é. O problema é a materia. Sub atômico superstrings... O que é a matéria?

Jim Holle why this world exist?...

Emerson, Brahman

If the red slayer think he slays,

Or if the slain think he is slain,

They know not well the subtle ways

I keep, and pass, and turn again.


Far or forgot to me is near;

Shadow and sunlight are the same;

The vanished gods to me appear;

And one to me are shame and fame.


They reckon ill who leave me out;

When me they fly, I am the wings;

I am the doubter and the doubt,

I am the hymn the Brahmin sings.


The strong gods pine for my abode,

And pine in vain the sacred Seven;

But thou, meek lover of the good

Find me, and turn thy back on heaven.


Do lado de ca eu tenho a pergunta e não tenho a resposta. Do lado de la eu tenho a resposta mas não tenho a pergunta.

Por que a ignorância?

Essa é uma pergunta errada. 

Tanto quanto perguntar por que a causalidade?

 Dharma leva a felicidade 

Adharma a sofrimento.

Moralidade, ética...

Tudo isso não altera atman .

Como o filme que passa na tela. A tela não se altera. Mas é a tela que permite que possamos viver o filme da vida.

é satchitananda que permite que tudo isso existe.

Bem bem. Mal mal.

 Vc pensa que pode quebrar uma lei moral. Mas vc só consegue quebrar a si mesmo diante de uma lei moral.

Vc de olhos abertos e olhe para minha mão. Consegue ver? Sim. 

Feche os olhos. Consegue ver? Não.

Mas vc continua aí? Sim.

Vc está consciente que seus olhos estão fechados.

Agora imagine que vc consiga fechar a porta de todos os sentidos. Vc ainda está aí? Mesmo sem ver, sentir, cheirar...

Sim. 

Vamos adiante. Se vc suprimir seus pensamentos. 

Vc ainda está aí?

Intelectualmente vc pode até pensar que não. Mas intuitivamente vc dirá que sim. Ainda estou aqui. 

Quando a mente está vazia. E vc sem sentir , sem emoções.

Vc ainda está aí.

Isso é vc.

Agora inverta. Tire vc e deixe os sentidos e a mente. O que vc pode experienciar? Nada.

Isso é vc. O resto são apps.

Se eu quero saber se vc veio na aula eu olho seu nome na lista de presença.

Se vc quer saber se vc veio, na numa anterior que vc possa ter esquecido, mas nessa agora, vc não vai olhar seu nome na lista. Vc sabe que está aqui. É auto evidente para vc. 

Assim é o self. Vc é.  

Não é uma questão de crença.

A vida inteira está apontando para a consciência.

Holocromos:

 Eu tenho contato contato direto com o luminoso movimento da vida

Salto quântico: conexão com o coração.

Aceitar ser alto. 

Ter o brilho da conexão.

A energia, o magnetismo.

Aceitar a qualidade apolínia. Sou atravessado por esse arquétipo apolíneo. 

Não há lugar para melancolia, rebaixar-se para ser aceito. Temer ser julgado esnobe.

Apolo. Beleza. Harmonia. Clareza mental. Sensibilidade. Silencio. Espaço.Neutralidade. Sair da polaridade nem escassez nem abundância.

 Processo de auto realização da verdade. 

"Eu sou eterno. Eu sou a realidade que permeia todo o universo". 

Até que essa verdade seja assimilada como realidade. Que se converta em sua realidade cotidiana. Tanto quanto dizemos somos o corpo. 

Sharvana manana nidityasana

1- ouvir o ensinamento

2- pense através disso

perguntas vão surgir ao longo do tempo. Manana. Reflexão. Luta. Prática 

Procure viver sua vida de acordo com o ensinamento.

3- meditação. Nidityasana. Manter o insight em mente.

sábado, 22 de agosto de 2020

Oi Marília. 


Eu estou aqui esses dias vivendo um momento pessoal de transição. Deixando emprego e projeto de anos sem ter ideia do que fazer agora. Abrindo mão pra nascer algo novo ainda imprevisível.


Aí nesse período que eu não faço nada fiquei percebendo como é estranho não pertencer a uma aldeia. Onde as pessoas têm um lugar. Têm um que-fazer conectado a um todo. Isso é dado pela cultura. Se eu soubesse ao menos que preciso ir pescar, ou construir uma casa ou uma canoa, ou rezar, organizar um ritual em grupo... mas não. Estou sem lugar (acho que é a sensação que vc está tendo, apesar de eu não conhecer profundamente nenhuma cultura que me encante). Isso é terrivelmente angustiante. Não sei por quanto tempo se aguenta esse não lugar. Em geral se adoece ou se adere a uma cultura (ou sub-cultura, sub-tribo... dessas que a Ana insiste que não criemos aqui... um lugar de legitimação interna).


Ou seja, não temos saída. 


Então vi que isso não é só um processo de crise pessoal. Essa macro-cultura ocidental moderna nos desligou de qualquer fundamento cósmico e criou necessidades e funções artificiais e desvitalizantes.


Ter um emprego, ser útil, é uma pseudo pertença ao todo da tribo. 

O fato é que não somos uma tribo. Não somos uma aldeia global et cetera e tal.


Não é um novo emprego que vai me dar um pertencimento. Nem oferecer produtos na rede, workshops digitais etc.


Me parece que a delusão é achar que ter um emprego ser um dito cidadão respeitável e ganhar quatro mil cruzeiros por mês é alcançar o nosso lugar cósmico na existência. 


Então, dialogando com suas perguntas, a cultura ocidental moderna do mundo globalizado é uma grande delusão sustentada coletivamente. Sim.


Mas não creio que toda cultura seja uma delusão. Quem me diz isso é meu coração inocente. Acho que nós podemos encontrar um lugar cósmico e fazer isso coletivamente. Acho que é possivel uma criação coletiva de aldeias de lucidez e amor, num contexto de comunidades íntimas, e que podemos começar a achar nosso lugar pessoal (singular) num todo enriquecido.


A forma da cultura não importa tanto. Estar em criação não seria negar as formas culturais mas atuar dentro delas. Senão teríamos, por exemplo, de abolir todas as línguas para recriar uma linguagem natural... Não precisamos disso para estar em criação. Eu acho.


Podemos ver que há culturas vivas e vc mesma pode me responder se as conheceu. Não valeria trazer um discurso secularizado e olhar para culturas que cultuam o sagrado e rotula-las de delusivas.  Não, não. Isso seria exigir que todos pensassem como "nós" modernos e foi esse etnocentrismo  que a antropologia já derrubou há século.

 

E também podemos ver pessoas e, quem sabe, grupos de pessoas que resolveram atuar dentro da própria babilônia como pólo de amor e clareza mental. 


Ou seja, não tem saída, mas tem caminhos. Está difícil mas ainda estamos vivos. E temos razões para estar.


Hj enquanto estava meditando me vi não como uma pessoa mas como um lugar. Um lugar de manifestação do Todo, na grande teia de relações de originação dependente. Se tudo é a manifestação da grande mãe Kali (pra usar uma simbologia que me é cara) o passarinho, a galinha, o ovo, o vento, o sol, a nuvem, o outro ser humano ali a meu lado, se cada coisa é uma condensação em constante transformação do todo, cada coisa é uma parte desse todo em relação... Eu, que me pareço a mim como o grande e auto-centrado espectador  de tudo, eu mesmo sou uma parte do todo, eu sou um lugar de manifestação desse todo, de repente um nó da teia múltipla que se compõe e recompõe continuamente. 

Por um segundo a delusão se foi e senti com clareza de que vazio somos feitos e pela graça da grande deusa negra, que ornamenta sua nudez com um colar de cabeças humanas, pressenti essa comunhão cósmica na unidade. Um belo lugar cósmico para se encontrar não é mesmo? Saio da meditação e me pergunto: tem cultura capaz de conter essa percepção da vida?


Sim e não. Estamos condenados a sofrer. De solidão ou de amor. Não há lugar nesse mundo para uma cultura de tamanho amor como nosso coração anseia.


Mas podemos ter momentos juntos. Como esse agora. E não tem muita cultura humana por detrás da possibilidade de nos comunicarmos assim?


Somos herdeiros de 3 bilhões de anos de vida na Terra. O que vamos fazer com tamanha herança?

domingo, 26 de julho de 2020

O último texto e a passagem

Escrever.

Por que escrever?

Não sei se tem um porquê. Talvez tenha múltiplos. Se sou múltiplo terei múltiplas escritas e infinitos porquês.

Quais assuntos, quais caminhos, quais palavras, quais referências de fundo?

O caminho da escrita. Será como um rio que tem um fluxo definido? Mas... e as múltiplas nascentes, os múltiplos afluentes? Existirá um rio? Ou será o que chamamos rio águas que passam, pedras e terras e peixes... como é o rio percebido pelos diferentes sujeitos que nele habitam ou que por ele passam, navegam, pescam, banham-se, lavam suas roupas?

Rio passagem. Contínuo vir a ser. O devir do rio não é o mar é ser passagem.

Por isso nas histórias do Hesse o rio está lá como um guru. O rio e o velho. Velho é devir rio. Rio é devir velho. Mestre da impermanência, sabedoria dos que chegam ao fim da busca pela outra margem e percebem ali, na passagem, a terceira margem. Nem lá, nem cá. O caminho. Os “meios pelos quais” que a Ana traz com a técnica Alexander como princípio sem fim.

O que você sente com essa pergunta que ela fez: o que você sente se eu te disser que não importa quem você é, mas quem você pode vir a ser?

Não é sobre futuro.

É sobre ser em estado de mudança, de passagem.

Abandono de toda fixidez. O rio, o velho, o velho do rio que vira cobra, quem sabe vira lobisomem, mulher que vira onça... a natureza selvagem, na borda, na margem do rio, na margem do humano... do marulhar das águas tudo é movimento. Como é ser humano visto pela perspectiva do rio?

Abstratamente parece fácil. O intelecto chega à compreensão e se entusiasma com o conceito. Eleva-se, aspira, chega a uma espécie de samadhi, uma compreensão do tipo de quando se entende uma piada. Sim! Faz sentido. Viver no fluxo! As pessoas dizem.

Mas não somos só intelecto.

Vem o corpo e seus sentires. Que trazem o intelecto lá das nuvens da transcendência ao chão onde ainda agarram as raízes de profunda delusão e seus apegos e aversões. Aqui a dor é sentida, o coração trai, a voz trai, a fleuma trai, o humor cai... não gosto, estou oprimido, triste, muito triste, e vingativo, ou conquistativo, preciso vencer! Enraízo em árvore morta e não saímos para dançar quando Ele toca a flauta.

Ou seja, vem uma circunstância, uma pessoa, um barco na direção contrária, e perco a paz. Fecho os olhos e os ouvidos. Confusão. Tristeza. Que tragédia! Que conflito! Vivemos em conflito. Aí vem a Ana e diz: É possível viver sem conflito. E quantas pessoas vem ouvir o que ela tem a dizer? E dizem: oi, meu nome é conflito, me ajuda a sair dessa?

Oposição não é contra. Como posso compor com a força que me toca?

Numa aula da técnica Alexander pude ter uma percepção disso. Era um jogo, uma brincadeira. Uma pessoa tenta levantar e a outra vai tentar, com todas as forças, empurrando-a com as mãos, não deixar que ela se levante. Aí a pessoa de início começa a tentar ir na direção contrária a outra. Uma briga. E corre o risco de sucumbir. Pode até vencer mas terá de fazer muito esforço. Mas quando percebe que ao invés de ir contra pode se apoiar na força do outro... ela vai pra um lado, pro outro e vai compondo com a força do outro que o impulsiona para cima.

É o que ensinam as artes marciais: use a força do outro a seu favor.

Então a conclusão é: não existe contra. Tudo que chega até mim é a favor da vida. Tudo é um presente.

Desde que você encontre as novas sinapses. Novos caminhos neurais, novos caminhos musculares. E que pare de brigar.

Isso não significa que não tem emoção, que não tem desafio, que não tem frio na barriga...

Não é tudo ao simples apertar da tela. O músculo vai tensionar mas você pode perceber a tensão e ir reduzindo. E observando e encontrando outro caminho e outras composições na relação. Nada a fazer. E daí surge uma ação.

Por que isso é revolucionário?

Lao Tsé e Chuang Tzu estão para Confúcio assim como...

O nada a fazer só é revolucionário se ele nasce do distencionamento e não de uma busca de adequação à ordem do céu e da terra segundo a tradição. Em outras palavras, abrir mão do alvo mas não deixar de alegrar-se com o tiro. O arqueiro atira sem alvo nem mira...

Inibir a intenção, a ambição, o propósito maior... o que vem?

Entre o arqueiro e o alvo há muito caminhos. Entre a raquete e o outro lado da mesa a bolinha pode fazer quase infinitas trajetórias. Entre eu e você... entre eu e Deus... ô... tem caminho pra esse trem.

Voltemos a nos perguntar: por que escrever?

Quais assuntos, quais caminhos, quais palavras, quais referências de fundo?

Na famosa história da Chapeuzinho Vermelho aparecem dois caminhos. O que ela faz e o que o Lobo faz para chegar antes. A casa da vovó é um cruzamento de caminhos. Que caminhos outros a história não descreve? No encontro com o Lobo, Chapeuzinho vive uma transformação (a perda da “inocência”), uma nova fase de vida, uma iniciação... e abrem-se ainda outros caminhos a partir dali. 

Quem conheceu uma Chapeuzinho na vida real sabe que ela começou a ir muito mais longe do que a casa da vovó. Quem te viu quem te vê... Tem umas até que começaram a correr com os lobos...

A vida é feita de encontros, de encruzilhadas, de iniciações dentro de iniciações.

Não vou andar. Ando. Não vou sentar. Sento. Não vou escrever...

Comecei essa série de textos no início dessa jornada entusiasmado com a redescoberta da paixão pela escrita e a possibilidade de me dizer: sou escritor.

Depois de 36 textos escritos com o corpo, chego ao final da jornada abrindo mão dessa posição profissional. Não é possível ser escritor, para mim. Ter uma cadeira confortável (dessas que giram) na sede do Jornal do Brasil, beber cafezinho no corredor com os demais jornalistas (que era assim que nasciam para a fama os escritores que eu amava ler) nada disso é possível para mim que abri mão da escrita como um lugar de chegada.

Eu não sou escritor.

Eu só escrevo de passagem.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Da Jornada ao Bardo e de volta à Jornada


Viemos para a Vila XI no meio da Jornada. Com a companheira e a filha, deixei nossa casa de onde assistíamos os encontros com a Ana às segundas, quartas e sextas e viemos para cá nos lançar no desafio de viver aqui, juntos, esses princípios, esse novo modo de vida, bases para um outro ser humano emergir.

Estando aqui a Jornada ganha novas dimensões. Não que ela não ganharia se estivéssemos lá. Mas a nossa realidade agora é aqui. E os elementos que vamos trabalhando em nós vão sendo vivenciados no nosso cotidiano aqui, no convívio e sob as trocas de olhares de outras pessoas que estão vivendo esse processo coletivo.

Ampliação e intensificação das luzes e sombras de mim mesmo.

Falando das sombras, foi ficando claro para mim, uma imensa dificuldade em morrer.

No grupo, li o Alexandre usar a metáfora da tábua que ajuda a salvar o náufrago, mas que com o tempo fica difícil abandoná-la, mesmo depois que a tempestade passa.

Até porque, há um núcleo de defesa, de resistência, que cria as tempestades.

Tenho observado essas tempestades em mim. Minha mente cria monstros (Goya). Começo a desconfiar: será que há consistência mesmo nesse trabalho aqui? Será que não é tudo mais uma grande e velha inconsistência numa roupagem nova? Posso confiar nessas pessoas?

E, como a Ana diz, não tem guru. Onde então o critério, a luz do discernimento? Que horas que a tempestade passa? Eu me sinto muito perdido nessas horas.

Quando a última tempestade passou me veio que a pergunta relevante é: posso confiar em mim mesmo? Por que olhar tanto para fora nas horas de desconfiança? Posso acreditar nas fontes de alegria e de poder de transformação que existem em mim? Onde está o guerreiro que não pode se permitir ficar tímido?

Hoje isso está mais claro, mas uns dias atrás estava mergulhado na tempestade.

Um dos caminhos que trilhei aqui que me ajudaram no processo de abertura foi a leitura do Bardo Thödol, o livro tibetano dos mortos. Depois pude fazer uma sessão de holocromos e esse diálogo simbólico está dando clareza a caminhos internos.

Nesse momento quero contar pra vocês um pouco sobre a riqueza desse livro que estava na estante aqui da biblioteca da Vila XI.

Certamente as sessões de meditação com a Cuca diante do altar estão sendo um caminho para esse universo tibetano, que é novo para mim. Causas e condições para esse livro parar na minha mão. Ou melhor, se insinuar aos meus olhos, enquanto eu falava ao telefone... com meus pais! Muitas causas e condições, não é mesmo?

O livro tibetano dos mortos é, sob uma primeira perspectiva, um guia para a condução no estado após a morte até o momento de renascimento. O Bardo Thödol (Bardo = transição entre as vidas; thödol = libertação) guiará aquele que vai guiar o morto. O oficiante encontra no livro as palavras a serem sussurradas no ouvido do moribundo e, depois, para o cadáver, dia a dia, como tentativa última de sua compreensão da Verdade Mãe.

Uma possibilidade de iluminação e libertação do círculo do samsara desde os momentos finais da vida até a hora de seu renascimento, 49 dias após sua passagem. É um livro que contém instruções para lembrar dos ensinamentos recebidos ao longo da vida. Que sirvam, senão para a libertação definitiva, ao menos para se obter um bom renascimento já que o último pensamento (ou digamos, o estado mental no período do Bardo), torna-se a semente de seu próximo nascimento.

No livro há passagens assim: no dia tal você irá encontrar determinada divindade que emanará uma luz de determinada cor. Você irá sentir medo e vontade de fugir, mas acredite, reúna sua fé e abra-se para essa luz. Nesse momento você também perceberá uma luz opaca, e se sentirá atraído por ela, sentirá vontade de segui-la, mas resista, pois essa luz te conduzirá ao sofrimento do renascimento.

Este verdadeiro guia para alma pode ser lido e ser um guia para a vida, e não só para preparar para a morte, mas para seguir o caminho luminoso na própria vida.

Em que dilemas nos encontramos? Eu que estava aqui em meio a tempestade: confio e desconfio, creio e descreio, ora as pessoas parecem ser dignas de confiança, ora entram em descrédito ao meu juízo. Estou aqui buscando um caminho que parece luminoso e em seguida tenho medo dele. Prefiro o caminho da luz opaca da dualidade e não percebo que construo meu próprio destino de sofrimento.

Assim o livro trouxe essa clareza, me fez ver com clareza. Mais tarde lembrei as primeiras palavras espirituais que chegaram até mim, 20 anos atrás: Ore e confie!

Num dos prefácios do livro, o psicanalista Carl G. Jung diz que o livro é um processo de iniciação cujo propósito é o de restaurar na alma a divindade que ela perdeu ao nascer.



O que é alma? Quem somos? O que é a vida?

No alemão, diferentemente no sentido de soul em inglês, Seele significa a Realidade Última, a shakti, a psique coletiva, matriz de tudo, o Dharmakaya, o oceânico corpo primordial.

E assim, diz Jung:

“A alma certamente não é pequena, pois é o próprio Deus. O ocidente considera esta afirmação bastante perigosa, quando não francamente blasfema, ou mesmo aceita-a impensadamente e, assim, cai no mal da retórica teosófica vazia. Mas, se pudermos controlar-nos o suficiente para nos prevenirmos de nosso erro principal, de sempre querer fazer algo com as coisas e dar a elas um uso prático, poderemos talvez ser bem sucedidos em aprender uma importante lição a partir desses ensinamentos; ou, pelo menos, sermos capazes de apreciar a grandeza do Bardo Thödol, que confere ao morto a verdade última  e suprema, ou seja, que mesmo os deuses são o resplendor e a reflexão de nossas próprias almas. Por conseguinte, nenhum sol é eclipsado para o oriental como o seria para o cristão, que sentir-se-á roubado por seu Deus; pelo contrário, sua alma é a luz do próprio Deus, e o próprio Deus é a alma.

Estamos tão oprimidos, condicionados e obstruídos pelas coisas, que nunca temos uma oportunidade, em meio a todas essas coisas "dadas", de perguntar quem as "deu". É deste mundo das coisas "dadas", que o morto se liberta; e o propósito da instrução é o de ajudá-lo no sentido dessa libertação. Se nos colocarmos em seu lugar, obteremos uma recompensa não menor, já que aprendemos que o "doador" de todas as coisas "dadas" habita dentro de nós mesmos.

É necessária uma reestruturação radical do ponto de vista, à custa de muito sacrifício, antes que possamos ver o mundo como coisa "dada" pela própria natureza da alma. Trata-se de algo muito mais direto, mais vívido, mais impressionante e, por conseguinte, mais convincente ver que as coisas acontecem para mim do que observar como eu as faço acontecer. De fato, a natureza animal do ser humano faz com que ele resista em enxergar a si mesmo como o autor de suas circunstâncias.

Bardo Thödol é, então, um processo de iniciação cujo propósito é o de restaurar na alma a divindade que ela perdeu ao nascer."

Do mundo das coisas dadas ao mundo onde somos os criadores de nossas próprias circunstâncias. Esse livro me colocou de volta aos caminhos da nossa jornada.

Olhar o mundo não como algo dado, mas como uma co-emergência. Certa vez Ana escreveu:

“Não existe um mundo pronto onde passivamente recebemos informações. O mundo é construído num processo incessante e interativo com cada um de nós singularmente, com cada um de nós em sociedade. Todos os seres vivos estão ativos nessa criação.
Estamos ativos em cada ação que vivemos, sustentando por aliança ou por antagonismo.
Ao transmutarmos nossa percepção, outra "realidade" se faz presente.
Uma quarentena mundial é uma quarentena singular ao mesmo tempo. Todos na mesma situação e cada um tendo uma experiência singular.”

Uma imensa revolução está em nossas mãos! Uma revolução que se dá com a mudança nas nossas percepções.

No Bardo Thödol uma das recomendações é que a pessoa, diante das luzes e divindades, não se perca, mas conscientize-se de que tudo que aparece fora existe, na realidade, dentro. E nessa introspecção concentre-se em sentir, em si mesmo, a luz, o amor, a vacuidade, e que confie, se entregue a essa luz de si mesmo!

Quando assumiremos a autoria de nossos próprios pensamentos?

Quando olharemos os arames farpados que cercam nossos territórios e nos veremos co-responsáveis pela existência de arames farpados? E territórios e propriedades? E identidades e ódios? E guerras e campos de concentração?

E quando olharemos os arames farpados e, por detrás de todos os instrumentos feitos para machucar o outro, colaremos nossa mente num fluxo de amor e compaixão por toda a humanidade, pelos animais e todos os seres vitimados pela ignorância, ódio e apego?

Da dor à compaixão. Da compaixão à libertação.

Se não agora, ao menos na morte. Num momento de intensa atenção e dedicação.

Mergulho na morte sozinho, com intensa energia. Curioso e atento caminho passo a passo. Antes da transição tomo a seguinte resolução:

"Ó, esta é a hora da minha morte. Aproveitando-me desta morte, assim agirei, pelo bem de todos os seres sensíveis que povoam a amplidão ilimitável dos céus, a fim de obter o Perfeito Estado de Buda, dedicando amor e compaixão a eles e dirigindo todos os meus esforços à Única Perfeição. Aparecerei em qualquer forma que beneficiará todos os seres vivos sejam eles quais forem: servirei todos os seres sensíveis infinitos em número como os limites do céu."

Que palavras maravilhosas! Que volição benéfica a ser cultivada em vida e será a melhor possível na hora da morte. Vejo aqui um profundo diálogo com as raízes do cristianismo, que possivelmente passa despercebido aos cristãos. Jesus parte o pão e diz: tomai e comei este é o meu corpo. Qual o significado disso?

A inter-existência. A consciência de completa abnegação fez como que seu corpo agora seja o pão, o alimento, o fruto da terra que alimenta todos os seres. Ele e nós, se o compreendermos bem, estamos presentes em cada ser vivo. Não há divisão, não há separação. Eis o enigma da entrega de Jesus na sua paixão. Eis o convite de Buda a uma vida de compaixão. Não é um sentir amor pelo outro, é sentir-se inseparável do outro: eis o mistério do maha karuna que Thomas Merton foi buscar na Ásia, e o encontrou dias antes de morrer num trágico acidente após sua palestra sobre marxismo e budismo! Mortevidabudacristopãorevolução...

Grande Compaixão, alma do mundo...

Mas não é bem assim que as pessoas entendem. Vamos aos templos em busca do sagrado como quem vai a farmácia em busca de um remédio. E seguimos tomando nossas doses diárias de desconexão. Seja das mãos dos sacerdotes seja dos psiquiatras. O sonho da razão cria monstros.

A humanidade é desumana, mas ainda tempos chance...

No Bardo é dito ao morto:

"Ó nobre filho [fulano], escuta. Agora estás experimentando o Resplendor da Clara Luz da Realidade Pura. Reconhece-a. Ó nobre filho, teu presente intelecto, vazio em sua real natureza, não formado no que respeita a características ou cor, naturalmente vazio, é a verdadeira Realidade, o Todo-Bondoso.

Teu próprio intelecto, que agora é vacuidade, não deve, contudo, ser visto como vazio de nada, mas como sendo o próprio intelecto, desobstruído, claro, vibrante e jubiloso, é a própria consciência, o Todo-Bondoso Buda."

Somos a verdade. A clara luz.

Sem nascimento, nem morte.

Como será para mim e para você viver esta divina iniciação antes da morte?

Como será nossa vida a partir de então? 

Não sei dizer.

Em mim, essa leitura e tudo o que veio depois dela aqui em nosso convívio cotidiano na Vila XI, percebi um renascer de uma disposição para viver que há muito eu não experimentava. Aquela energia que me fazia apaixonadamente preparar uma aula, nos meus primeiros tempos como professor. Aquela paixão de criar projetos novos... me fez olhar aqui para as pessoas, a terra, a família e pensar: vai dar certo! O quê? Minha companheira perguntou. Não sei, qualquer coisa. Tá dando certo. Não importa tanto o conteúdo, os personagens, mas a abertura. Estamos falando de amor.

Por isso, esse sentimento de amor, de convicção que encontrei nesse Bardo, me lembrou dos êxtases de Teresa de Ávila e suas angústias de separação. Em especial esse poema sobre o morrer libertação e o viver em meio a ferros. Analogia para os estados de alma que experimentamos aqui em nossas tempestades e claridades, não é mesmo?


O que dizer para nossas almas quando nos demoramos em nossas tempestades? Que palavras e encantamentos podem ser ditas quando estamos prestes a sucumbir? Seu último pensamento, sua próxima vida. Se aqui morremos e renascemos em vida... qual a próxima vida receberemos na nossa próxima respiração?

Vivo sin vivir en mí
y tan alta vida espero
que muero porque no muero.

Vivo ya fuera de mí
después que muero de amor,
porque vivo en el Señor,
que me quiso para sí;
cuando el corazón le di
puso en mí este letrero:
Que muero porque no muero.

Esta divina unión,
y el amor con que yo vivo,
hace a mi Dios mi cautivo
y libre mi corazón;
y causa en mí tal pasión
ver a mi Dios prisionero,
que muero porque no muero.

¡Ay, qué larga es esta vida!
¡Qué duros estos destierros,
esta cárcel y estos hierros
en que está el alma metida!
Sólo esperar la salida
me causa un dolor tan fiero,
que muero porque no muero.


Acaba ya de dejarme,
vida, no me seas molesta;
porque muriendo, ¿qué resta,
sino vivir y gozarme?
No dejes de consolarme,
muerte, que ansí te requiero;
que muero porque no muero.



sexta-feira, 17 de julho de 2020

Lembra


Voltamos a nossa conversa aqui.

Uma conversa através da escrita e da leitura.

Seria muito bom que após a leitura você pudesse me escrever.

Como aquela troca de cartas que se fazia antigamente.

De qualquer forma quando me ponho a escrever, escrevo para você. E isso já te faz presente na conversa. Daí, mesmo que você não escreva de volta, é como se essa escrita aqui já fosse sua. Enquanto me abro para escrever você vai dizendo por mim. Já falamos sobre isso em outros textos. Mas lembrar nunca é demais.

Lembrar.

Esse bem que pode ser o nosso mantra.

Depois de percorrer tantos processos de observação, de integração, de conexão, de meditação, de ver as coisas sob a perspectiva da vacuidade... chega um tempo que não precisamos mais entrar em longos argumentos para promover aquele deslocamento emocional-mental que nos tire de um nó, que nos libere de visões parciais, dualistas. Já podemos ir direto ao ponto.

Não há nada a fazer.

Essa é uma frase-mantra que a Ana andou sugerindo nos últimos dias.

Um caso: estou andando com pressa, com a mente lá na frente, pensamentos perdidos...

Então me lembro da frase: "não há nada a fazer". E volto a pisar sobre meus pés. Volto a ouvir com meus órgãos internos, a sentir a respiração. Volto. Retorno à casa.

Ando com minha filha e lhe digo: "estamos juntos. E quando estamos juntos essa é a nossa casa".

O que me fez lembrar de que não há nada a fazer? Quando foi que me peguei distraído?

Não sei dizer. Quem saberá? Mas o fato é que ao percebermos a distração, podemos retomar a atenção.

Então poderíamos ter um mantra: lembra.

Lembra. E aí já não precisa mais fazer um processo mental de argumentação. Lembrou, conectou.

Lembra. E a respiração está aqui.

Lembra. E as coisas já não são o que parecem ser. Já a vacuidade se insinua por trás das coisas.

Lembra. É tudo como um sonho. Assim como o sonho nos parece real e quando acordamos vemos que não é, aqui o que nos parece real também não é e podemos acordar e ver.

"Os fenômenos da vida podem ser comparados a um sonho, a um fantasma, a uma bolha, a uma sombra, a uma orvalhada cintilante ou a um raio luminoso; e como tal deveriam ser contemplados." Buda, O Sutra Imutável

Lembra. E eu já sou uma "base válida de imputação", ou seja, já estou em relação, já sou legítimo em ser quem sou (seja lá o que seja isso), e não preciso entrar num processo de busca desesperada por reconhecimento.

Lembra. E já estou num constante processo de impermanência, e então vejo o surgir e o desaparecer constante de sensações e percebo o surgir e o desaparecer de uma mente para outra, uma mente de alegria dá lugar a uma mente de tristeza, uma mente que se sente perseguida dá lugar a uma mente que vê a bondade dos outros seres, e assim por diante: anicca, anicca, anicca.

Lembra. E o êxtase se encontra com a vacuidade... a plenitude e o vazio.

Lembra.

Lembra.

Lembra.

Entreguei meus pais aos pés de meu mestre.

Jogo pingue-pongue e me vejo querendo antecipar jogadas. E digo: "dessa vez vou jogar dando cortadas", e aí erro. "Dessa vez vou ganhar esse ponto, vou jogar sem erros", erro. Então... lembra... não há futuro. Jogo a bola como ela vem do meu adversário. Se surgir oportunidade, cortada, se vier cortada, defesa... o pingue-pongue está me ensinando a viver o presente, e ver o outro real antes de agir sobre ele.

Ser uma base válida de imputação é tudo. E é nada porque não é o que somos na realidade. Mas é o que somos convencionalmente que nos permite estar em relação, e daí ver o sofrimento profundamente enraizado em si mesmo e nos outros, e daí perceber que estamos girando no samsara, e daí perceber que não queremos mais girar e girar em sofrimento sem fim, e daí decidir nos dedicar a uma outra mente, e daí perceber a impermanência de todas as coisas, sem se identificar com nenhuma auto-imagem, e daí lembrar que ser a base válida é sonhar, e daí tomar consciência da própria  vacuidade. Só se chega à verdade última estando vivo.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Sessão prática de meditação da vacuidade


As mãos unidas em prece. Gesto de profunda reverencia. Gesto de união, união do lado esquerdo e direito... As mãos se unem no centro. Gesto de centramento.

Experimente deixar um espaço entre as palmas. As pontas dos dedos estão unidas, as extremidades da palma estão unidas, mas cria-se um espaço interno. Como quem segura uma jóia rara entre as mãos unidas. Um convite à entrada na caverna interior. Uma alusão a vacuidade. Os polegares se dobram e a ponta de cada polegar toca mais ou menos na base do indicador.

Isso. Esse é o gesto da tradição tibetana. Com eles estamos aprendendo a meditar na vacuidade.

As coisas não são o que parecem ser.

Tomamos as coisas como reais, uma realidade existente em si mesma. Tomamos as coisas como existindo independentemente de nós que as vemos, sentimos.

Mas a verdade última é a vacuidade, o vazio de existência inerente.

Na conversa entre a Cuca e o professor isso foi exemplificado com a bicicleta. Na percepção do professor a bicicleta tinha existência inerente. Cuca o fez ver o vazio da bicicleta. Depois de desmontar a bicicleta viu que não havia nada que pudesse ser chamado de bicicleta. Não há bicicleta. Ao mesmo tempo há bicicleta. Esse é o paradoxo. Existe e não existe. "Ser e não ser" eis a verdadeira questão e não "ser ou não ser."

Não é que a forma não existe e só existe a vacuidade.

Como no sutra do coração: "a forma não é outra coisa senão a vacuidade. A vacuidade não é outra coisa senão a forma."

Cuca poderia ter perguntado se a bicicleta é a cor, se é a utilidade, se é marca da fábrica, se é o material de que foi feita, se é a memória afetiva do seu dono... nada. Não se pode encontrar a bicicleta.

Para fins didáticos dizemos assim: existe enquanto uma realidade convencional. Mas se olharmos com profundidade, ou seja, com a mente clara, veremos a vacuidade de todas as coisas.

Enquanto realidade convencional, podemos dizer que há sim causas e condições, existe uma base de imputação para podermos dizer bicicleta, maçã e Cuca.

Mas quando, analiticamente, procuramos a verdade da bicicleta, da maçã e da Cuca, encontramos que não há bicicleta, nem maçã, nem Cuca. Essa é a verdade última.

E também podemos ampliar e dizer com a mente convencional que há dor, apego, raiva, corpo, mente, eu, vida, trabalho, dinheiro, filhos, amigos, morte... e toda a nossa vida tal como a conhecemos de forma convencional.

Mas se olharmos profundamente, não há dor, nem apego, nem raiva e assim por diante. Ou melhor, há e não há. Há enquanto realidade transitória, sujeita a impermanência. Mas enquanto realidade última é vazio de existência inerente. Existem juntos o vazio da bicicleta e a bicicleta enquanto realidade convencional sujeita a mudança e a toda variedade de percepções subjetivas.

Portanto o caminho proposto aqui é: mudar a mente.

Ana tem dito na jornada: estamos em vias de nos tornar um outro ser humano.

Aqui vamos tocar no princípio do princípio da mudança.

O professor resolveu ficar na Vila XI aquele dia.

Depois de caminhar com a maçã na mão por um tempo. Comeu a maçã. Estava deliciosa. E esqueceu-se completamente da ideia da vacuidade. Só voltou a pensar em vacuidade quando sentiu o vazio em seu estômago. Depois de um breve lanche, o grupo o convidou para uma sessão de meditação.

Nós estamos tão entranhadamente submersos na realidade convencional que precisamos treinar a nossa mente para poder alcançar a verdade última.

Caminharam até uma grande rocha que oferecia uma fenda como entrada. Ali na entrada, as famosas bandeirinhas coloridas do Tibet: azul, branco, vermelho, verde e amarelo. Entraram na caverna que convidava ao silêncio. Era delicioso estar ali dentro. Um frio que emana das paredes da pedra. O lugar estava arrumado com assentos de almofada e cadeiras. Havia cobertores para cada meditador poder se cobrir em caso de frio. Havia um altar com imagens da tradição tibetana, pequenas estátuas de Buda e de Bodisatvas, elementos de oferenda. Um lugar muito espiritual.

Sentaram-se e ouviram a condução:

Vamos começar com um exercício preparatório.

Deixem a coluna ereta. Fechem os olhos e respirem naturalmente e observem 3 ciclos respiratórios.

Agora com o indicador da mão direita tape a narina esquerda e inspire suave e profundamente pela narina direita. Depois tape a narina direita e exale pela narina esquerda. Faça isso 3 vezes para nos purificarmos de toda a energia de apego que acumulamos.

Agora troque. Com o indicador da mão esquerda tape a narina direita e inspire suave e profundamente pela narina esquerda. Depois tape a narina esquerda e exale pela narina direita. Faça isso 3 vezes para purificar-se de toda a energia de raiva, aversão que possa ter acumulado.

Agora respire 3 vezes por ambas as narinas purificando-se da ignorância. Por ignorância entendemos o erro de percepção, achamos que as coisas são como elas nos aparecem, confundimos a realidade convencional com a realidade última.

Tendo feito esse primeiro exercício respiratório, vamos fazer uma visualização.

Visualize o Buda (ou um mestre de sua preferência) a sua frente. O Buda vivo, sentado a sua frente. Ele está aí para ajudar você em sua meditação, para ensinar você a meditar.

A pessoa que conduzia, vocalizou um mantra que o professor não conseguiu entender bem. E continuou:

Então do centro entre as sobrancelhas do Buda emana uma energia (como uma raio laser) de cor branca e toca em você no centro entre as suas sobrancelhas. Essa luz purifica você de todo sofrimento causado por ações corporais. E essa luz percorre todo o seu corpo.

Agora da garganta do Buda sai um feixe de luz vermelha que penetra a sua garganta e percorre todo o seu corpo e purifica todas as suas ações verbais. Quase todas as nossas ações verbais são miseráveis. Mas agora o Buda e você as purifica.

Dessa vez do centro do peito do Buda vem um feixe de luz azul que penetra o seu peito e percorre todo o seu corpo purificando suas ações mentais.

E por fim você percebe os três centros emanando os três feixes de luz ao mesmo tempo, preenchendo todo o seu corpo com as três cores: branco, vermelho e azul. E você fica recebendo esse influxo e purificando seu corpo, suas ações de fala e sua mente.

Agora o Buda que está a sua frente vai ficando bem pequenino, bem pequenino e vai repousa no alto da sua cabeça. Dali ele desce pelo centro energético do seu corpo e vai ficar no centro do seu peito. E aí com essa presença você vai começar a meditar. A sua consciência é una com a consciência de Buda.

Vamos agora praticar a meditação da vacuidade tendo como referência o eu. Vamos meditar na vacuidade do eu.

Procure se lembrar de uma situação em que o eu ficou proeminente em você. Um momento de raiva, ou vergonha, ou prazer, um momento em que a necessidade de aprovação ou reconhecimento foi grande... seja o que for, que você possa sentir a presença desse eu.

Mantenha essa sensação de existência inerente do eu. É tão forte que o eu parece realmente existir.

Se o eu realmente existe ele terá de existir de uma das seguintes maneiras: ou como corpo, ou como mente, ou como a união do corpo e da mente ou como algo separado do corpo e da mente. Não há outra possibilidade. Contemplemos um pouco essa afirmação até que nos convençamos de sua validade. Então vamos examinar uma a uma.

O eu não pode ser o corpo. Senão não faria sentido dizer "meu corpo". Portanto o corpo é algo diferente do eu. E não faz sentido dizer que o eu é o corpo.

O eu não pode ser a mente. Senão não faria sentido dizer "minha mente". Não faz sentido portanto dizer que o eu é a mente.

O eu não pode ser a união do corpo e da mente. Porque uma coisa que é "não eu" somada a uma coisa "não eu" não pode resultar em eu.

Por fim resta-nos examinar se o eu é algo separado de corpo e mente. Se imaginamos nosso corpo se diluindo no espaço, nossa mente se dissolvendo no ar... resta algo que possa ser chamado eu? Não. Portanto o eu não é algo separado de corpo e mente.

Tendo examinado as possibilidade da existência inerente do eu, percebemos que o eu não existe de forma inerente. Onde antes aparecia tão vividamente um eu, agora percebemos a ausência do eu. Essa ausência é a vacuidade, a verdade última.

Procure perceber essa imagem da vacuidade do eu pelo máximo de tempo que for possível.

Vamos ficar 24 minutos em silêncio. Fique atento. Se precisar retome a consciência da respiração.

E volte a concentrar-se na vacuidade do eu.

Caso perceba que está meditando numa vacuidade ampla, num vazio genérico, retome o argumento para que a meditação tenha como foco o objeto que estamos negando sua existência inerente.

Tendo dito isso, a pessoa que conduzia o grupo disse: começou.

E o grupo ficou em silêncio.

O que se passou ali é muito difícil e pouco útil descrever.

Ao final da prática o professor continuou a ver o mundo do mesmo jeito. Mas de vez em quando é como se algo se insinuasse em seu olhar, em sua perspectiva das coisas: parece que uma espécie de sombra interna das coisas ganhasse luz e as coisas como apareciam ficassem na sombra. É vazio e é forma... e assim ele gostou da ideia de continuar praticando e ver onde chega sua mente ao longo desse novo treinamento.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Conversa sobre vacuidade


Um professor veio até a Vila XI muito curioso em busca de um aprendizado que jamais encontrara em suas andanças por universidades e laboratórios.

Teve a sorte de encontrar todos reunidos pois era quase a hora do almoço.

Sentou-se e começou uma conversa com uma alegre senhora que passa os seus dias estudando e praticando os ensinamentos da vacuidade.

- Qual o seu nome? - O professor perguntou.

- Aqui as pessoas me chama de Cuca. Mas veja, esse é apenas um modo de chamar, uma noção comum, uma expressão corrente, um simples nome. Sob esse nome não há um indivíduo.

O professor ficou encantado com aquela maneira analítica de falar e continuou o debate:

- Vocês estão ouvindo o mesmo que eu? Se posso compreender bem, ela está dizendo que não há indivíduos. Ora se for assim, quem está ali dentro da cozinha preparando o almoço que em breve vamos desfrutar? Quem plantou, colheu, transportou os deliciosos legumes que irão nos nutrir, se não há indivíduos?

Enquanto todos pensavam sobre suas perguntas ele continuou:

- Não há quem faça o bem, nem quem faça mal, não haverá quem colha os frutos da virtude ou do pecado. Sendo assim: quem pratica meditação? Se o que está dizendo é verdade não há ninguém vivendo aqui na Vila XI. Portanto, o que você está dizendo é um engano.

Então Cuca perguntou a ele:

- Professor, como o senhor chegou até aqui? A pé ou através de algum veículo?

- Eu vim de carro até a pousada. Cheguei ontem a noite. E hoje de manhã resolvi me exercitar e tomar um ar puro e vim de bicicleta.

- Ah... então aquela bicicleta ali é sua?

- Sim, disse o professor.

Cuca perguntou se o pessoal poderia mexer em sua bicicleta, já que na Vila XI o pessoal adora desconstruir e reconstruir as coisas. Ele concordou.

Tiraram o assento. E Cuca perguntou:

- O assento é a bicicleta?

- Não. O assento não é a bicicleta.

Tiraram os pedais e a correia.

- Os pedais e a correia são a bicicleta?

- Não, não são a bicicleta.

Tiraram a roda dianteira.

- A roda dianteira é a bicicleta?

- Não, tampouco a traseira.

E assim foram tirando parte a parte a bicicleta. O guidão, os freios... e Cuca ia perguntando uma a uma se aquela parte era a bicicleta e o professor sempre dizendo a mesma coisa: não, isso não é a bicicleta. Por fim não restava mais nada e Cuca disse:

- Professor, não vejo nenhuma bicicleta! Todos vocês aqui ouviram o professor dizer: "eu vim de bicicleta." Mas quando convidado a definir o que era a bicicleta não conseguiu demonstrar a existência da bicicleta.

Então todos se voltaram ao professor e perguntaram:

- E agora, o que o senhor tem a dizer?

- É verdade. É por causa do agrupamento das partes, do nome e da utilidade que a chamamos bicicleta. Mas isso é só uma noção comum, uma expressão corrente, um simples nome.

- Muito bem, professor. O senhor sabe o que é uma bicicleta. Da mesma forma é por causa dos cabelos, das unhas, da carne, dos dentes, dos ossos, dos pulmões, dos intestinos, do sangue, do suor, das lágrimas, da gordura e dos demais elementos do corpo, bem como dos agregados da mente que se forma a designação, a noção comum, a expressão corrente, que recebe o nome de "Cuca". Mas na realidade não existe aí um indivíduo.

O professor ficou maravilhado com a explicação. O almoço foi servido, todos se deliciaram e o professor ainda ganhou uma maçã de sobremesa que foi saborear enquanto caminhava sozinho pelo gramado.

Enquanto caminhava com a maçã o professor se perguntou se a maçã e tudo aquilo era real. Em seu coração sentiu que ali havia um aprendizado muito importante para sua vida pessoal bem como para toda a humanidade. Era estranho. Ele via a maçã e ela lhe parecia real. Ao mesmo tempo olhava e via que a maçã não era nem a casa, nem a parte interna, nem as sementes... não havia maçã! Havia e não havia... era como um sonho. Essa dupla realidade das coisas ainda iria lhe abrir uma nova visão das coisas.

domingo, 12 de julho de 2020

Passatempo amoroso


Vento.

Som das folhagens.

Vozes ao fundo. Criança, senhora, pássaros.

Vento.

Bailar das hastes.

Pássaro voa.

Montanha parada. Céu parado. Nuvens paradas. Corpo sentado.

Sol ameno.

Corpo na paisagem.

Venta.

Não há nada a fazer.

Nada a acrescentar.

Estabilidade no mundo material e no mundo espiritual.

Minha mente. Palavras.

Será possível pensar sem palavras?

Lanço palavras como o vento lança o ar.

Palavras inúteis.

Qual a utilidade do vento?

Penso isso e as palavras ficam plenas de uma legitimidade, não por terem uma utilidade a priori, mas porque elas vão. Seguirão seu curso, chegarão a algum corpo.

O mundo das palavras é diferente do mundo sem palavras.

Imagina o mundo sem vento, sem os deslocamentos das grandes massas de ar.

O vento leva o pólen e o mundo já não é o mesmo.

Para o gavião, o vento é plataforma de um voo sem sair do lugar. Será um passatempo? Um ato de amor entre o gavião e o vento?

Onde as palavras tocarão?

Que parte do corpo elas alcançam? O que deslocam?

Onde chega em você essa palavra?

Sua mente. Seu corpo. Seu mundo. Seus ventos.

O amor. O nosso amor. O nosso ato de amor.

E, apesar da distância que nos separa, por causa da nossa distância: esta carta de amor.

Não há nada a fazer. Sentir o amor. Pensar, desejar, sentir, nutrir-se de amor.

Preenchamos nossas vidas com passatempos amorosos.

Eu te escrevo esta carta e te peço um gesto de amor.

Um gesto. Seja qual for. Que seja nascido em ti no mesmo lugar de onde nasce esta carta em mim.

Não há nada que possa ser feito a não ser isso.

Tomada de consciência, introspecção, mergulho no presente.

Unidade da vida humana: emoções, pensamentos, necessidades corporais e desejos.

Sem sacrifício, sem esforço, sem compensação... unidade.

Penso a emoção da ação do desejo.

Sinto o desejo do corpo e digo a palavra: amor.

Fazemos justiça a nós mesmos?

Estou me dando aquilo que mereço?

Em nosso mundo de instituições, o Estado, o emprego, o chefe fazem nascer o castigo, a culpa, a vigilância, a vergonha.

Em nosso mundo de vergonha, vigilância, culpa e castigo, faço nascer o chefe, o emprego, o Estado e todo o mundo institucional.

Vento. O vento desloca e por isso uma das primeiras medidas dos governos é fazer parar o vento. Por isso trabalha-se em locais onde o vento não possa atrapalhar.

O vento desfaz cidades, escritórios, governos.

Vento.

Cada ser pode ser aquilo que é.

Ação desprovida de intenções subjetivas.

Justiça perfeita.

É tempo de amar.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Quem sou eu?


Sou a profundidade e a beleza.
O conhecimento intuitivo e a alegria da vida.
Estou além da definição, além das palavras e das descrições.
Sou o vinho, o néctar, a fonte.
Sem alarde, faço-me presente na suavidade da respiração.
Sou o frescor: minha pele é tão sutil quanto o ar.
Meus olhos brilham como estrelas.
Meus cabelos formam-se da aura de uma sabedoria talhada no sofrimento.
Meu coração é a pura compaixão.
De minha boca, podeis encontrar a doçura de minhas expressões.
Sou o amor, a ternura, a inocência, a pureza, a poesia.
Habito o coração da vida.
Podeis me encontrar nas altas montanhas tanto quanto nas casas simples da humildade.

Resguardo-me em meu próprio mistério.
Sou o silêncio em meio ao vozerio.
Não falo, insinuo-me.
Conheço meu poder de encanto, de sedução.
Sou a própria paixão e o fascínio.
Sou a obscuridade, a intuição.
Relaciono-me a partir do sentir.
Uso a linguagem arquetípica.
A simpatia.
Podeis ouvir meus pensamentos como sussurros levados pelo vento.
Sou a luz inacessível do interior.
Mais e mais para dentro...
Vinde, vinde... e jamais ireis me atingir, jamais ireis me possuir.

Eu sou o oposto complementar
Da ação eu sou recolhimento
Do recolhimento eu sou a força
Se sois casa, sou templo
Se sois rua, sou abrigo
Se sois semente, sou a terra fértil
Se sois chão, sou o céu infinito
Se sois a claridade do dia, sou o frio da noite
Se sois movimento, sou repouso
Se sois repouso, sou a ação

Eu tenho a qualidade de reerguer o que está caído.
Por minha influência aglutinam-se as forças, trago de volta à vida quando se está à beira da morte.
Sou o influxo à destreza, ao aprimoramento, à excelência, mas não estipulo nenhuma meta nem recompensa. Apenas atraio, irradio minhas perfeições.

Quando me tocais, sentis que sou feita dos elementos da natureza.
Se abris vossos olhos, sou invisível.
Se me procurais nas formas, sou além de toda forma.
Se abandonais a forma e me procurais na vacuidade, apareço-vos como uma excelsa divindade.
Eu sou a beleza da forma.
A procura inatingível dos sonhadores e dos amantes.
Sou a transparência ofuscante da verdade.
Sou o amor: a mais perigosa, desconhecida e incompreendida potência humana.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Encontro com um velho sábio


Eu conheci um velho sábio.
Um velho sábio eu conheci.

Um velho sábio não me falou de silêncio nem de som.
Mas do intervalo.
Um velho sábio ouvia o tempo, o ritmo, a vida.

A seu lado fui criança e adulto.
Aos seus olhos, nascimento e morte.
A seu lado, o prazer e a gravidade.
Em seus olhos vi o mundo.

Um velho sábio eu vi.
Eu vi um velho sábio.

Um velho sábio me lembrou do meu amor pelo saber, pelo domínio das artes.

A vida tem sua métrica, seus ritmos...

No intervalo pude escutar o galo, o pássaro e a enxada do homem ao longe. A sinfonia das coisas.

E o vento soprava.

E o sol cálido da manhã, o sol quente do meio dia, o sol fresco do fim da tarde. Variações em torno da pele.

A passagem do tempo.

O velho sábio mal respira. Não se nota. Mal se move. Ele olha e a respiração me vem.

O velho sábio está além da passagem do tempo.

O conhecimento íntimo das coisas. Uma intuição mística, uma intuição científica... Não sabemos de onde vem, nem quando, nem como... chega a nos angustiar...

No meio de nossa conversa ele me disse que tinha um grande baú em sua casa, com todos os seus escritos guardados.

Mas tudo passa como o vento. Ele me diz.

Preciso ler. Pensei. Apesar do risco de não mais conseguir escrever. Uma simples formalidade.

Não preciso ler. O velho sábio é a completude de todos os textos inacabados. Para que ler o passado, o morto, se tenho aqui diante de meus olhos o presente vivo?

Finalmente encontrei alguém que era a feição bela e verdadeira de seus pensamentos. Por toda parte encontrei pensamentos belos desencontrados da vida de seus autores. Agora não. Um homem era a expressão não só de seu pensamento mas que o ultrapassou.

A seu lado adormeci e sonhei.

Sonhei minhas vidas inacabadas.

O amor pela escola em minha província natal. Estudar, estudar, aprender, conhecer.

Minha curiosidade pelo segredo das coisas. Aprimorar meus talentos. Cultivo das artes, despertar do dom.

As escolas me deram caminhos. Nas áreas do saber, caminhei, caminhei. Por anos a fio.

Quando cheguei a algum lugar vi que era lugar nenhum. Fiquei perdido entre os saberes sem chegar ao saber.

Jamais me deparei com a chave de compreensão íntima de que a matemática não é só matemática.

O velho me fez ver que a toda a natureza é matemática.

O jogo, a dança, a música, a enxada, o galo, o pássaro. O intervalo.

O céu, a estrela, o sapo, o frio, o sono. O intervalo.

O medo, o pai, a mãe, o gozo, a lentidão.

Derivadas e integrais.

Integral. Todas as somas. Num átimo, o elã.

Uma intuição da vida. O velho destelhou a casa de meu pensamento simplório.

Celestiou-me com as coisas simples a minha volta.

Nascemos para a excelência. Seja em uma arte, seja em todas.

Nascemos para o amor. Quer pelas multidões, como na política ou na história, quer por uma pequena família.

Relação, expressão, comunicar-se. A matemática das coisas também está nas palavras e seus intervalos.

O encanto, a magia, a arte de falar para ver além do óbvio. Sentir a matéria.

Ora! Como sentir a matéria?

Sim. A palavra preenche o vazio entre os átomos. O amor, o vazio das tristezas. O poema, o corpo. 

Me empenho em aprender. Não desisto.

Mas saber o quê?

As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender...

O velho contém em si todas as áreas do conhecimento.

Um velho interdisciplinar.

Ele me riu da definição que lhe dei.

Por que estudei tanto?

Desde jovem senti o lapso entre o não saber e o saber. O domínio de uma arte é uma jornada, a travessia de uma ponte de um ser limitado a um ser ilimitado.

Por onde me perdi?

Pelo lapso entre a submissão à arrogância escolar e a coragem de ver.

A escola, e depois as escolas, me deram visões compartimentadas do saber.

Minha era moderna tecno-científica produziu a pobreza e a riqueza da especialização.

E o conhecimento final (temporário) perdia-se dos princípios unificadores.

E na escola, e nas escolas, havia uma autoridade dizendo: excelente! Nota 10! Chegou ao final. E eu acreditava. Quando na verdade aquilo poderia ser um bom começo.

O maior pecado de um mestre é aprovar um aprendiz. Como se houvesse uma linha de chegada.

A maior virtude é mostrar o tanto de estradas a percorrer. Mostrar as novas linhas de partida.

A busca de reconhecimento é uma linha paralela que compete com o empenho pessoal. Quando nos damos conta estamos buscando falsos alvos. Nos esquecemos do infinito.

A desejo de aprovação é uma triste senhora que tenta a todo custo submeter a curiosidade inocente, o desejo primordial. Deixamos de olhar pra fonte do desejo e seu mistério.

E a beleza? E o real? E o amor?

O que é a vida? O que é a história humana? O que fazer nesta vida? Onde chegar sem sair do lugar?

Saber parar. A calma do velho falou-me por si.

As notas azuis ou vermelhas não dizem nada aos fios brancos da barba do sábio.

Que caminhos terá feito o velho? Que caminhos terá abandonado?

Ele saiu para pegar seus escritos, de tanto que insisti.

Fiquei ali, diante da vastidão do lugar, morros e terra e céu e galinhas e os pequenos vermes brancos no chão, com os meus antigos escritos na bolsa, ansioso também para mostrar-lhe e quem sabe presenteá-lo.

Enquanto aguardava, no intervalo da solitude, lembrei-me de que, há muitos anos, trilhei aquela jornada da travessia. E pude rever toda a minha vida, inclusive as vidas possíveis que não tive, as artes cultivadas até então. E me lembrei de como no final da jornada e nos anos que se seguiram fui abandonando todas as áreas do saber e inventando meus próprios caminhos nas coisas simples e nos amores próximos. E como depois de tanto tempo acontecia esse encontro com o velho.

O velho sábio me fez ver tudo isso naqueles breves momentos que eu o aguardava.

Olhei para os textos escritos na minha velha bolsa.

Percebi o vento.

E já não havia mais nada que eu não quisesse ver.

Eu conheci um velho sábio.
Um velho sábio eu conheci.

sábado, 4 de julho de 2020

Pingue-pongue de emoções



Quando decidi que durante minha participação na Jornada eu escreveria um livro, assumi um compromisso pessoal de relatar os processos que estariam vivos em mim.

Por isso, lá nos primeiros textos que compõem essa coleção, deixei claro que eu não iria fazer resumos das falas dos encontros, e que por vezes traria para cá alguns temas, de certa forma, independentes.

De todo modo, tive a certeza de que estaríamos sempre em diálogo. Mesmo que eu não participasse de um encontro, e nem o assistisse depois, algo invisível estaria nos ligando. E os temas estariam relacionados.

Mesmo que eu não explicitasse as correlações, mesmo que eu mesmo nem soubesse conscientemente essas relações, algo oculto estaria sendo lido, afinal você que está lendo é autor/autora do que você está pensando agora. Então tem sua própria criação acontecendo junto.

E um dos processos que estão muito vivos aqui em mim é minha relação com o pingue-pongue.

Aqui na Vila XI tem uma mesa e temos jogado com frequência. Uma frequência crescente nos últimos dias.

Meus amigos aqui são bastante competitivos no jogo. É uma batalha muito feroz. Nos envolvemos intensamente nas partidas de 21. Às vezes jogamos 3 sets. E depois ficam aquelas provocações e brincadeiras gostosas de quem ganhou e quem perdeu. Essas coisas muito humanas e que a gente vai aproveitando pra olhar também pras emoções que nos envolvem.

Como é perder? Como é ganhar? Como é errar?

Como é o medo de perder? Como é o medo de ganhar e estremecer a amizade?

Uma das coisas fascinantes do jogo é que ele se alimenta na relação.

Quando um joga bem, estimula o outro a jogar bem também.

E aqui um de nós começou inclusive a ver uns vídeos e a estudar. E tem treinado cortadas e o jogo de todos foi ficando melhor.

Nos últimos dias começamos a conversar e filosofar um pouco sobre o jogo.

Existe uma dimensão meditativa do jogo. Exige muita concentração. Uma distração e você erra a raquetada. Bola fora, bola na rede.

Portanto, concentração é um requisito. A gente tem pensado na força dos orientais nesse esporte.
Uma concentração de base para que o movimento aconteça para além do pensar. O corpo, o braço, a mão, a raquete como extensão do corpo, e a bolinha com a força, direção e efeito, que vem do oponente... não dá tempo de pensar tudo isso. Se pensar, erra. Pensar é distração. É um jogo que acontece não no pensamento, mas num fluxo de movimento e integração.

Emoção. Corpo. Presença. Intensidade. Concentração.

Esse tem sido o meu ciclo virtuoso no jogo. Eu sinto muito medo. Minhas pernas tremem. Minha mão treme um pouco também. Seja no jogo, seja quando tenho de pegar a bolinha que cai no chão. Respiro. Não acalma totalmente. Fica o medo. E eu estou afirmando o medo para mim. Reconhecendo ele. Dando risada para ele. Jogando com ele.

E quando eu começo a ganhar ou faço jogadas incríveis ou as famosas “casquinhas” de pura sorte (ou às vezes admirando a jogada do outro) me vem vontade de rir. E estou rindo, expressando alegria. Deixei de lado aquele jogo de: melhor não rir para não mostrar ao adversário e vai que ele ganha e depois seu riso fica no chão. Estou aceitando, acolhendo e expressando o riso e o medo. Hoje, numa das partidas, senti vontade de chorar. Não entendi o motivo. Achei que meu amigo poderia estar triste, sei lá. Comecei a achar que o jogo poderia ser um processo de cura, mas não aprofundei. Não dá tempo. Deixei o choro vir. Ele não veio mas senti a emoção que estava nele. Continuei assim jogando, assim sentindo. Jogo da integração.

Uma integração com os elementos do jogo, com sua geometria e com o próprio amigo que está lá do outro lado e como tudo isso que há do lado de cá, nesse infinito particular.

O pingue-pongue ensina muita coisa. Uma delas é sobre impermanência. Ora a gente tá naquela alegria, acertando as bolas. De repente começa a errar. Ora ganhando, ora perdendo.  

A dimensão do mistério começou a se mostrar para mim.

Mistério 1. Numa das partidas tivemos uns rallys tão intensos e tão disputados que foi uma alegria o simples fato de jogar. Perdi a partida mas saí absolutamente feliz do jogo. Puxa, valeu! Dissemos um para o outro. Fiquei assim perplexo comigo mesmo. Entrei no jogo para ganhar. Lutamos um contra o outro com nosso melhor. Perdi. Mas foi um jogo tão legal que tudo bem ter perdido. Isso foi uma grande novidade para mim. Toda vez que eu começava um jogo e dizia: posso perder que tudo bem. Isso era uma frase da boca para fora. Mas... aconteceu! Foi uma experiência que trouxe esse prazer. Esse, não vou dizer desapego, mas essa outra perspectiva do jogar.

Mistério 2. Comecei uma partida e tive a percepção de que a força do meu adversário estava vindo para mim. Isso é muito subjetivo, mas foi assim que senti. Há um mimetismo. A gente começa a jogar um pouco parecido com o outro. Senti como se quando entrássemos em jogo houvesse essa troca de forças, esse partilhar, na verdade. Estamos falando de algo que tem sido dito na jornada, não é mesmo?

Mistério 3. Hora da meditação. Sentei para meditar. Meditação silenciosa. De repente minha mente começou a pensar em pingue-pongue. Eu comecei a achar graça disso. Mas vi que a coisa estava séria. Era como se meu cérebro estivesse aproveitando o descanso mental para “estudar” o jogo. Qual ângulo a raquete deve estar para rebater a bola que vem dessa direção, nessa angulação, com essa intensidade? Eu não pensava essas coisas assim mas vinha como um desenho na minha mente.

Loucura! Além de achar engraçado o fenômeno, tentei “cortar” o pensamento trazendo seriedade a meditação: puxa, o que estou buscando aqui? Eficácia, vitória? Estou meditando para me tornar um bom jogador, ou para encontrar paz? Estou entrando nessa onda midfullness, medite para obter sucesso?

Tive uma pequena crise com essa história, mas resolvi relaxar. Observar. A mente silenciou. Mas fiquei e ainda estou atento ao processo.

Mais tarde fomos jogar. Comecei a ganhar. Ganhei uma. Ganhei outra. Não perdi mais. Meu Deus! O que está acontecendo? Quando vi meus amigos jogando entre si, cortadas fulminantes, jogo forte, eu olhava de fora e pensava, nossa! Não tenho como ganhar desses caras. Aí quando comecei a jogar, comecei a ganhar.

Fui percebendo essa força além do pensamento. E falei: isso vai virar texto para a jornada.

Tem tudo a ver.

A gente não antecipa o futuro. Não sabe como a gente vai atuar quando entrar no "jogo". A gente vive o presente, a situação como ela se apresenta. E se a gente está inteiro naquilo, com alegria, com amor, olhando pras emoções a gente alcança um estado muito além do que a gente imagina sobre nós mesmos. Na verdade, nem posso dizer "eu mesmo". No ato, ultrapassamos o "eu mesmo". Somos algo mais. Eu ganhei. Mas terá sido eu mesmo? Onde está o eu? Que é o corpo? Que é a força atuando ali no jogo?
   
Filosofia sobre pingue-pongue. É o texto de hoje. Pingue-pongue zen.

Mistério 4. Bom, esse quarto mistério eu não quero contar ainda. É um pequeno segredo. Parece que descobri uma arma secreta. Talvez eu conte um dia. Deixa eu testar mais um pouquinho para ver seus efeitos.


E que eu me lembre da impermanência. Amanhã é dia de ganhar e perder. E tudo bem.

Agradeço pela partida. Quero dizer, pela leitura.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Santidade cidadã


Fazendo algumas leituras nesses dias, encontrei umas coisas que ajudam a não sucumbir quando tudo parece ruir. Na interpretação do arcano O Carro, lá pelas tantas uma frase me tocou:

"Quando me encarno em você, os fracassos se convertem em novos pontos de partida, e dez mil razões para renunciar não valem nada diante de uma única razão para continuar."

Estamos falando em mergulhos profundos. E é bom entregar-se de todo sabendo de uma luz capaz de guiar.

É um entregar-se sem se entregar. 

Jodorowski diz que depois de muitos caminhos percebeu que quem quer alcançar a sabedoria devia trabalhar na solidão.

"A semente, para germinar, precisa da escuridão das profundezas da terra, da mesma maneira que o feto precisa da escuridão do ventre materno e que a alma, segundo San Juan de la Cruz em "A subida do monte Carmelo", deve, para chegar à união com Deus, passar pela noite escura da fé, pela nudez e pela purgação:

En la noche dichosa,
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba otra cosa,
sin otra luz ni guía
sino la que en el corazón ardía.

"Na noite ditosa,
em segredo, que ninguém me via,
nem eu olhava outra coisa,
sem outra luz ou guia
senão aquela que o coração ardia".

Que luz é essa?

Os budistas trazem uma teoria de consciência em três camadas:

1- A psique
É a camada mais grosseira e superficial de consciência. Compreende os cinco sentidos físicos, juntamente com os fenômenos mentais conscientes e inconscientes – pensamentos, sentimentos, sensações, e assim por diante. Esta é a nossa mente comum e condicionada. A psique emana de uma camada intermediária mais profunda chamada consciência substrato.

2- A consciência substrato
É o fluxo mental sutil contendo atitudes, hábitos e tendências latentes que remontam a vidas anteriores.

3- A consciência primordial
É a camada mais profunda e mais fundamental. Ela inclui a psique e a consciência substrato, é um nível absoluto de sabedoria pura, onde o “interior” (mente) e “exterior” (mundo fenomênico) são não duais. A realização da consciência primordial é a porta de entrada para a iluminação completa.

A consciência primordial é a a luz na noite escura de João da Cruz.

Jodorowski diz que a consciência não é o ato de tomar consciência de alguma coisa.

"A finalidade da Consciência é vir a ser ela mesma para se oferecer em seguida à divindade.

Não se pode tê-la completamente: é uma semente que se desenvolve por mutações sucessivas."

Então descreve os estágios a serem percorridos:

1- Consciência Animal
Vivo para satisfazer as necessidades materiais e sexuais. Não domino meus instintos, ignoro o respeito pelos outros. Sou agressivo como defesa, por medo de perder.

2- Consciência Infantil
Não aceito a velhice ou a morte, vivo de maneira superficial. Me recuso a meditar para me conhecer, coleciono objetos inúteis e distrações, sem nenhum senso de responsabilidade.

3- Consciência Romântica
Não domino os sentimentos, que me invadem. Eterno adolescente, apaixonar-me é o caminho da vida. Crio um ideal amoroso de conto de fadas. Confundo o ser pelo parecer. Depois das desilusões é possível que chegue a fase adulta.

4- Consciência Adulta
Pela primeira vez, o outro existe.Em vez de exigir devo investir. Há o risco de ganhar sede pelo poder, como fazem os "exploradores, tiranos, industriais sem escrúpulos, escroques de toda sorte. Egoísmo que tem sua antítese: pessoas que, por se sentirem nobres, passam o tempo a ajudar os outros por preguiça de ajudarem a si mesmas. Se isso se torna, na verdade, uma ajuda para as pessoas, abre-se o nível da consciência social."

5- Consciência Social
Luto pela felicidade de todos os seres humanos, mas também pela saúde das plantas, dos animais, do planeta. Mais tarde se abre à Consciência cósmica.

6- Consciência Cósmica
Pertencendo a um mundo infinito e eterno me abro a uma mutação constante. Descarto os sistemas vigentes e vou além dos limites geracionais preparando o terreno para o advento do novo ser.

7- Consciência Divina
"No centro obscuro do inconsciente, há um ponto brilhante de lucidez total, aliado poderoso que, se bem utilizado, se manifesta como deus interior ou, se mal utilizado, como demônio interior. Esse nível é aquele que conhecem os gênios, os profetas e os magos."

A consciência divina é a luz na noite escura de João da Cruz.

Esses são alguns mapas.

Voltamos-nos para nossas paisagens e o que vemos?

Defendemos nossas limitações, com as quais nos identificamos.

Rejeitamos a fé de que possuímos as forças para nos curar.

Trazemos o coração cheio de rancor, embora dizemos que ele está vazio.

Perdemos a fé em nossa criatividade e nutrimos vergonha por nossos desejos.

Atrofiamos os movimentos de nosso corpo, enrijecido com a moral.

Aceitamos a culpa como ação de uma justiça soberana.

Justificamos nossos erros sem tentar mudar.

E desejamos mudar, amar, criar, mas estacionamos no primeiro impulso.

Queremos nos vingar dos que nos fazem mal.

Nos jogamos num sexo possessivo.

Buscamos drogas ou fama e giramos em torno de nós mesmos.

Fincamos raízes na árvores da crítica e não enxergamos o valor dos outros.

Não reconhecemos que habitamos um cosmos e temos um limite muito estreito de moradia.

Aceitamos que somos uma parte, mas não que somos o todo.

E conclui: "Quanto maior é a separação dos outros, menor é a consciência. Vítima de ideias abusivas, o consulente nega sua capacidade de realizar milagres (entendemos aqui "realizar" como o fato de se dar conta de que a realidade não se comporta segundo um modelo preestabelecido, mas de uma maneira incompreensível para uma mentalidade prisioneira de um sistema lógico) e, desamparado, pensa viver sozinho, sem desconfiar que o universo - "o inconsciente" - é seu aliado."

Daí ele propõe, no seio da atividade de ler cartas para um consulente, uma atitude muito amorosa.

"Enquanto a pessoa embaralha as cartas, o leitor fica imóvel, serenamente. A voz que ele emprega não deve ressoar no crânio, mas no peito, uma voz suave, a voz que usamos para falar com uma criança, vinda do coração, não do intelecto. É um tom de bondade, muito difícil de obter ... Para chegar aí, o tarólogo deve se aproximar de um estado de santidade..."

Pode soar estranho se falar em santidade aqui.

Mas ele diz:

"Não falo do aspecto exterior, estereotipado de um santo de almanaque, mas de um sentimento verdadeiro, poético e sublime. Diversas religiões dominaram o conceito de santidade, dando-lhe significados que o limitam. Entre esses limites, existe a negação da sexualidade, da reprodução, da família, conjugada à exaltação do martírio, à rejeição do mundo real por um além mítico. Fala-se de santos católicos, muçulmanos, budistas, judaicos (os justos) etc., mas não se concebe uma santidade cidadã."

Então vejo aqui um texto muito inspirador. Faz acender em nós algo que podemos ser.

Santidade cidadã

"O cidadão santo pode amar um ser do sexo oposto, ter filhos, formar uma família, levar uma vida sadia, não pertencer a seitas, não adotar doutrinas ditadas por um deus com figura e nome, e praticar uma moral que não seja fundada sobre as interdições mas sobre o conceito de atos úteis para a humanidade.

O leitor do Tarot, se não é um santo, deve imitar a santidade.

Em algumas culturas orientais, papagaios, macacos e cães são descritos como animais sagrados que representam o ego individual, pois são capazes de imitar seus donos.

Como aprender a imitar um santo? A santidade não é inata, nem tampouco é um dom vindo do exterior, mas é obtida pouco a pouco. Para ser forte nas grandes coisas, é preciso sê-lo nas pequenas, no cotidiano, dando sem esperar nada em troca, nem agradecimento, nem dinheiro, nem admiração, nem submissão ...

Sem nos compararmos, sem rivalizarmos, aceitando com humildade os valores dos outros. Não colocando nosso ponto de vista como unidade de medida do mundo, aceitando de bom grado as diferenças.

Aprendendo, entre muitas outras coisas, a:

concentrar nossa atenção, controlar durante a leitura nosso pensamento, nosso desejo, nossas emoções;

vencer nossa preguiça, terminar sempre aquilo que começamos, não ficarmos nervosos se o consulente recusa a tomada de Consciência, fazer o melhor possível naquilo que estamos fazendo;

eliminar vícios e manias,

realizar atos de generosidade sem testemunhas,

purificar o espírito eliminando interesses supérfluos sem cair em uma autocrítica excessiva nem na autoindulgência,

agradecer conscientemente cada dádiva,

meditar, a rezar para o deus interior,

contemplar, a conversar sozinho sobre temas profundos,

desenvolver os sentidos,

parar de ficar se definindo a si mesmo,

saber escutar,

não mentir para os outros e nem para si mesmo, não nos comprazermos com a dor ou com a angústia,

ajudar o próximo sem torná-lo dependente,

não querermos mais ser imitados,

e empregar o tempo de maneira lúcida,

fazer planos de trabalho e a realizá-los,

não ocupar muito espaço,

não dilapidar,

não fazer barulhos inúteis,

não comer alimentos insalubres só pelo próprio prazer,

responder da maneira mais honesta possível cada pergunta,

vencer o medo da existência e da morte,

não viver apenas no aqui e no agora mas também no algures, no além e no depois,

não abandonar jamais as crianças e velar por elas desde a infância,

não ser dono de nada nem de ninguém,

dividir igualmente,

não nos enfeitarmos com roupas e objetos por vaidade,

não enganar,

dormir o estritamente necessário,

não seguir as modas,

não nos prostituir,

respeitar escrupulosamente todo contrato assinado e toda promessa feita,

ser pontual,

não invejar o sucesso alheio,

falar somente o que for preciso,

não pensar nos benefícios de uma obra, mas a amar a obra por si mesma,

jamais ameaçar ou maldizer,

nos colocar no lugar do outro,

fazer de cada instante um mestre,

desejar e admitir que os filhos nos superem,

ensinar os consulentes a aprenderem por si mesmos,

vencer o orgulho transformando-o em dignidade, a cólera em criatividade, a avareza em sabedoria, a inveja em admiração pela beleza, o ódio em generosidade, a falta de fé em amor universal;

não aplaudir a si mesmo e nem se insultar,

não se queixar,

não dar ordens por prazer de nos vermos sendo obedecidos,

não contrair dívidas,

jamais falar mal de alguém,

não conservar objetos inúteis e, sobretudo,

jamais agir por interesse próprio, mas em nome do deus interior.