terça-feira, 7 de julho de 2020

Encontro com um velho sábio


Eu conheci um velho sábio.
Um velho sábio eu conheci.

Um velho sábio não me falou de silêncio nem de som.
Mas do intervalo.
Um velho sábio ouvia o tempo, o ritmo, a vida.

A seu lado fui criança e adulto.
Aos seus olhos, nascimento e morte.
A seu lado, o prazer e a gravidade.
Em seus olhos vi o mundo.

Um velho sábio eu vi.
Eu vi um velho sábio.

Um velho sábio me lembrou do meu amor pelo saber, pelo domínio das artes.

A vida tem sua métrica, seus ritmos...

No intervalo pude escutar o galo, o pássaro e a enxada do homem ao longe. A sinfonia das coisas.

E o vento soprava.

E o sol cálido da manhã, o sol quente do meio dia, o sol fresco do fim da tarde. Variações em torno da pele.

A passagem do tempo.

O velho sábio mal respira. Não se nota. Mal se move. Ele olha e a respiração me vem.

O velho sábio está além da passagem do tempo.

O conhecimento íntimo das coisas. Uma intuição mística, uma intuição científica... Não sabemos de onde vem, nem quando, nem como... chega a nos angustiar...

No meio de nossa conversa ele me disse que tinha um grande baú em sua casa, com todos os seus escritos guardados.

Mas tudo passa como o vento. Ele me diz.

Preciso ler. Pensei. Apesar do risco de não mais conseguir escrever. Uma simples formalidade.

Não preciso ler. O velho sábio é a completude de todos os textos inacabados. Para que ler o passado, o morto, se tenho aqui diante de meus olhos o presente vivo?

Finalmente encontrei alguém que era a feição bela e verdadeira de seus pensamentos. Por toda parte encontrei pensamentos belos desencontrados da vida de seus autores. Agora não. Um homem era a expressão não só de seu pensamento mas que o ultrapassou.

A seu lado adormeci e sonhei.

Sonhei minhas vidas inacabadas.

O amor pela escola em minha província natal. Estudar, estudar, aprender, conhecer.

Minha curiosidade pelo segredo das coisas. Aprimorar meus talentos. Cultivo das artes, despertar do dom.

As escolas me deram caminhos. Nas áreas do saber, caminhei, caminhei. Por anos a fio.

Quando cheguei a algum lugar vi que era lugar nenhum. Fiquei perdido entre os saberes sem chegar ao saber.

Jamais me deparei com a chave de compreensão íntima de que a matemática não é só matemática.

O velho me fez ver que a toda a natureza é matemática.

O jogo, a dança, a música, a enxada, o galo, o pássaro. O intervalo.

O céu, a estrela, o sapo, o frio, o sono. O intervalo.

O medo, o pai, a mãe, o gozo, a lentidão.

Derivadas e integrais.

Integral. Todas as somas. Num átimo, o elã.

Uma intuição da vida. O velho destelhou a casa de meu pensamento simplório.

Celestiou-me com as coisas simples a minha volta.

Nascemos para a excelência. Seja em uma arte, seja em todas.

Nascemos para o amor. Quer pelas multidões, como na política ou na história, quer por uma pequena família.

Relação, expressão, comunicar-se. A matemática das coisas também está nas palavras e seus intervalos.

O encanto, a magia, a arte de falar para ver além do óbvio. Sentir a matéria.

Ora! Como sentir a matéria?

Sim. A palavra preenche o vazio entre os átomos. O amor, o vazio das tristezas. O poema, o corpo. 

Me empenho em aprender. Não desisto.

Mas saber o quê?

As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender...

O velho contém em si todas as áreas do conhecimento.

Um velho interdisciplinar.

Ele me riu da definição que lhe dei.

Por que estudei tanto?

Desde jovem senti o lapso entre o não saber e o saber. O domínio de uma arte é uma jornada, a travessia de uma ponte de um ser limitado a um ser ilimitado.

Por onde me perdi?

Pelo lapso entre a submissão à arrogância escolar e a coragem de ver.

A escola, e depois as escolas, me deram visões compartimentadas do saber.

Minha era moderna tecno-científica produziu a pobreza e a riqueza da especialização.

E o conhecimento final (temporário) perdia-se dos princípios unificadores.

E na escola, e nas escolas, havia uma autoridade dizendo: excelente! Nota 10! Chegou ao final. E eu acreditava. Quando na verdade aquilo poderia ser um bom começo.

O maior pecado de um mestre é aprovar um aprendiz. Como se houvesse uma linha de chegada.

A maior virtude é mostrar o tanto de estradas a percorrer. Mostrar as novas linhas de partida.

A busca de reconhecimento é uma linha paralela que compete com o empenho pessoal. Quando nos damos conta estamos buscando falsos alvos. Nos esquecemos do infinito.

A desejo de aprovação é uma triste senhora que tenta a todo custo submeter a curiosidade inocente, o desejo primordial. Deixamos de olhar pra fonte do desejo e seu mistério.

E a beleza? E o real? E o amor?

O que é a vida? O que é a história humana? O que fazer nesta vida? Onde chegar sem sair do lugar?

Saber parar. A calma do velho falou-me por si.

As notas azuis ou vermelhas não dizem nada aos fios brancos da barba do sábio.

Que caminhos terá feito o velho? Que caminhos terá abandonado?

Ele saiu para pegar seus escritos, de tanto que insisti.

Fiquei ali, diante da vastidão do lugar, morros e terra e céu e galinhas e os pequenos vermes brancos no chão, com os meus antigos escritos na bolsa, ansioso também para mostrar-lhe e quem sabe presenteá-lo.

Enquanto aguardava, no intervalo da solitude, lembrei-me de que, há muitos anos, trilhei aquela jornada da travessia. E pude rever toda a minha vida, inclusive as vidas possíveis que não tive, as artes cultivadas até então. E me lembrei de como no final da jornada e nos anos que se seguiram fui abandonando todas as áreas do saber e inventando meus próprios caminhos nas coisas simples e nos amores próximos. E como depois de tanto tempo acontecia esse encontro com o velho.

O velho sábio me fez ver tudo isso naqueles breves momentos que eu o aguardava.

Olhei para os textos escritos na minha velha bolsa.

Percebi o vento.

E já não havia mais nada que eu não quisesse ver.

Eu conheci um velho sábio.
Um velho sábio eu conheci.

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