sexta-feira, 17 de julho de 2020

Lembra


Voltamos a nossa conversa aqui.

Uma conversa através da escrita e da leitura.

Seria muito bom que após a leitura você pudesse me escrever.

Como aquela troca de cartas que se fazia antigamente.

De qualquer forma quando me ponho a escrever, escrevo para você. E isso já te faz presente na conversa. Daí, mesmo que você não escreva de volta, é como se essa escrita aqui já fosse sua. Enquanto me abro para escrever você vai dizendo por mim. Já falamos sobre isso em outros textos. Mas lembrar nunca é demais.

Lembrar.

Esse bem que pode ser o nosso mantra.

Depois de percorrer tantos processos de observação, de integração, de conexão, de meditação, de ver as coisas sob a perspectiva da vacuidade... chega um tempo que não precisamos mais entrar em longos argumentos para promover aquele deslocamento emocional-mental que nos tire de um nó, que nos libere de visões parciais, dualistas. Já podemos ir direto ao ponto.

Não há nada a fazer.

Essa é uma frase-mantra que a Ana andou sugerindo nos últimos dias.

Um caso: estou andando com pressa, com a mente lá na frente, pensamentos perdidos...

Então me lembro da frase: "não há nada a fazer". E volto a pisar sobre meus pés. Volto a ouvir com meus órgãos internos, a sentir a respiração. Volto. Retorno à casa.

Ando com minha filha e lhe digo: "estamos juntos. E quando estamos juntos essa é a nossa casa".

O que me fez lembrar de que não há nada a fazer? Quando foi que me peguei distraído?

Não sei dizer. Quem saberá? Mas o fato é que ao percebermos a distração, podemos retomar a atenção.

Então poderíamos ter um mantra: lembra.

Lembra. E aí já não precisa mais fazer um processo mental de argumentação. Lembrou, conectou.

Lembra. E a respiração está aqui.

Lembra. E as coisas já não são o que parecem ser. Já a vacuidade se insinua por trás das coisas.

Lembra. É tudo como um sonho. Assim como o sonho nos parece real e quando acordamos vemos que não é, aqui o que nos parece real também não é e podemos acordar e ver.

"Os fenômenos da vida podem ser comparados a um sonho, a um fantasma, a uma bolha, a uma sombra, a uma orvalhada cintilante ou a um raio luminoso; e como tal deveriam ser contemplados." Buda, O Sutra Imutável

Lembra. E eu já sou uma "base válida de imputação", ou seja, já estou em relação, já sou legítimo em ser quem sou (seja lá o que seja isso), e não preciso entrar num processo de busca desesperada por reconhecimento.

Lembra. E já estou num constante processo de impermanência, e então vejo o surgir e o desaparecer constante de sensações e percebo o surgir e o desaparecer de uma mente para outra, uma mente de alegria dá lugar a uma mente de tristeza, uma mente que se sente perseguida dá lugar a uma mente que vê a bondade dos outros seres, e assim por diante: anicca, anicca, anicca.

Lembra. E o êxtase se encontra com a vacuidade... a plenitude e o vazio.

Lembra.

Lembra.

Lembra.

Entreguei meus pais aos pés de meu mestre.

Jogo pingue-pongue e me vejo querendo antecipar jogadas. E digo: "dessa vez vou jogar dando cortadas", e aí erro. "Dessa vez vou ganhar esse ponto, vou jogar sem erros", erro. Então... lembra... não há futuro. Jogo a bola como ela vem do meu adversário. Se surgir oportunidade, cortada, se vier cortada, defesa... o pingue-pongue está me ensinando a viver o presente, e ver o outro real antes de agir sobre ele.

Ser uma base válida de imputação é tudo. E é nada porque não é o que somos na realidade. Mas é o que somos convencionalmente que nos permite estar em relação, e daí ver o sofrimento profundamente enraizado em si mesmo e nos outros, e daí perceber que estamos girando no samsara, e daí perceber que não queremos mais girar e girar em sofrimento sem fim, e daí decidir nos dedicar a uma outra mente, e daí perceber a impermanência de todas as coisas, sem se identificar com nenhuma auto-imagem, e daí lembrar que ser a base válida é sonhar, e daí tomar consciência da própria  vacuidade. Só se chega à verdade última estando vivo.

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