quinta-feira, 20 de junho de 2019

Eles me receberam em sua casa: a rua



Uma visita prometida

Essa visita já estava prometida com nossos alunos do projeto yoga de rua. Vou dormir na rua com vocês, vamos fazer uma vigília de meditação... Onde? eles perguntavam. Não sei, onde vocês estiverem eu vou.
Nessa terça feira, 18 de junho, fui até o Refettorio Gastromotiva, onde há uma janta às 18hs para as pessoas em situação de rua envolvidas com diferentes projetos parceiros do restaurante. Deixei mochila, dinheiro, celular numa casa amiga e fui só com roupas de frio, um documento, umas frutas e dois livros, um sobre Shiva e um dicionário de sânscrito.
Rodrigo estava na fila e o Sávio já estava lá dentro. Ambos perguntaram a mesma coisa: vai ser hoje?
Sim. E logo já assumiram a liderança.
Depois do jantar estavam na porta me esperando. Pra onde você quer ir? Pra algum lugar meditar, encontrar o pessoal. Não, não, vamos ali no Farol da Lapa (uma igreja que serve janta), você vai andar com a gente pra saber como é a nossa vida. Vocês vão comer de novo?! Eles riram. Vem com a gente. Aqui eu sou o Swami.

A inspiração espiritual - Deus onde estás?

Rodrigo quis dizer que ele seria o guia. Nos últimos dois fins de semana tínhamos ido ao arati da ordem Ramakrishna. Sob a liderança do Swami Nirmalatmananda aquele grupo celebrava o ritual sagrado e meditava em meio a muitas canções e aos tradicionais hinos compostos por Swami Vivekananda, o discípulo de Ramakrishna que iniciou a ordem monástica que hoje conta com milhares de centros e obras sociais em todo o mundo. Aqui no Brasil, Swami Nirmalatmananda é um verdadeiro diretor espiritual dos devotos, e os guia com um coração muito amoroso.
Ramakrishna adorava a Deus na forma feminina de Kali, a deusa mãe, todo-misercordiosa e cujo mistério atrai as pessoas mais simples... a deusa negra, nua, usando uma guirlanda de cabeças e dedos, de pé sobre o corpo de Shiva, com a língua de fora... cultuada em crematórios, é a personificação da destruição e do terrível, que anuncia sua presença naquilo que é belo tanto quanto naquilo que parece feio aos nossos olhos. Deus está na flor, mas também no verme do solo. Kali-Ramakrishna, nos lembra a onipresença de Deus sem esquecer nenhuma criatura, nem mesmo a menor das partículas. Tudo é Deus. E nessa inspiração caminhei nas ruas até meus amigos em busca dessa revelação, Onde estás? Na noite, no medo, no abandono, na violência social, nos ratos e baratas, na sujeira, na embriaguês, na fome, onde estás?

Comida não falta!

No Farol da Lapa o ambiente era mais denso. Um culto batista, misturado a muita gente falando junto com as senhoras que citavam a Bíblia, pessoas alcoolizadas, um amigo doente no chão. As pessoas tinham ido no Gastromotiva e estavam ali para comer de novo. E decidi ajudar a arrumar as cadeiras enquanto o pessoal ia pra fila.
Enquanto comiam, aproveitei para conversar com um amigo doente deitado no chão. Febre, dor de garganta. Escutei-o e então propus de aplicar uma técnica japonesa do toque nos dedos. Ficamos ali em concentração. Ele descansou bastante.
Conversei com outras pessoas e ao final Rodrigo e Sávio me levaram adiante. Passando na Lapa, me mostraram a janta da Igreja Universal. Ao ar livre, mais uma janta! Eu já tô cheio, disse Savio. Mas tem gente que ainda vai comer mais. Vamos pra Cinelândia. A gente vai dormir lá? Não, lá é a sala. Rimos. O quarto a gente te mostra depois. No caminho, percebi que Rodrigo escolheu entrar numa esquina.  Sua atitude impassível expressava aquela certeza intuitiva de ir no caminho certo.  Adiante, caixas de papelão. Pegaram alguns. Era a minha cama! Olha, costuma não ter aqui esses papelões, o pessoal da reciclagem pega mais cedo. Foi um presente divino pra você, me disseram. Andávamos assim, com esse espírito de paz, de graça, de estarmos acima das dificuldades, na presença de Deus, no estímulo da fé.

Meditação na sala

Sentados nos bancos da Cinelândia, invisíveis às pessoas no seu corre-corre, enquanto outros assistiam o jogo do Brasil, ficamos ali meditando, lendo trechos de Swami Vivekananda no livrinho que ele havia sido presenteado la no centro Ramakrishna, domingo. Lemos trechos como esses:

"Desde o mais elevado Brahman até o verme mais inferior, e até o mais diminuto átomo, em todas as partes está o mesmo Deus, o Todo-Amor. Amigo, oferece mente, alma e corpo aos seus pés. Estas são suas múltiplas formas ante ti. Desprezando-as, aonde buscas a Deus?"

"Este é o ponto essencial de toda devoção - ser puro e fazer o bem aos outros. Aquele que vê Shiva no pobre, no fraco, no doente, adora Shiva realmente, mas é apenas incipiente a veneração daquele que vê Shiva só na estátua. Shiva fica mais satisfeito com quem ajuda e serve a um pobre vendo nele o próprio Shiva e sem pensar em sua casta, credo ou raça, do que com o homem que o vê somente na igreja e nos templos."

Rodrigo propôs uma meditação que ele gosta. Esfrega-se uma mão na outra para energizar e então afasta um pouco uma mão da outra e fica assim sentindo a energia. Ficamos assim por um bom tempo. Rodrigo tem interesses esotéricos, técnicas de cura, trabalhos com energia. Gosta de ler sobre os mestres da humanidade e seus poderes de realizar milagres. Nesse dia me falou sobre a provável iniciação de Moisés nas tradições do Egito Antigo.

Encontro com um grupo de caridade

Vamos lá. Agora vamos para o quarto. Caminhamos até o prédio da Defensoria. A lua estava alta e convidava a uma caminhada contemplativa. Lugares mais silenciosos, percebíamos o ar mais fresco, carregado da maresia da Guanabara. Olha lá a carreata. Mais comida? Tinham uns 5 carros que traziam quentinhas ao pessoal que dorme ali. Sentimos uma energia muito boa no ambiente, a presença do amor. Uma alegria. Rodrigo começou a cantarolar uma música espontaneamente. Chegamos mais perto e me ofereceram bolo e um cobertor. Finalmente, agora eu tinha o papelão como cama e um cobertor para me proteger do frio da noite!

Sugeri ao Sávio e ao Rodrigo que cantássemos uma música para eles, em retribuição ao bem que nos faziam. Nós cantamos um mantra para Rama, Sita e Hanuman. Pelo que percebi, houve um certo constrangimento de ambas as partes. Nós ficamos com vergonha. E as pessoas não se entregaram a escuta. Estavam ali para doar, não esperavam receber. Não estavam abertos.

Lembrei de quando comecei a servir quentinhas na rua há uns 20 anos. Uma vontade de ajudar, misturada a timidez, sem saber o que dizer, como se fosse preciso dizer algo, uma palavra amiga, algo que ajudasse a pessoa. Dessa vez eu estava, de certa forma, disfarçado. Já havia tido a oportunidade de viver isso. E realmente, estando do outro lado, sinto uma certa invisibilidade. Na conversa com as pessoas sinto que elas não nos ouvem. Querem falar coisas, palavras que acabam soando vazias. Mas nem nos olham direito.

Foram fazer uma prece de encerramento entre eles. Eu olhei e nos chamaram para participar. Uma prece espírita. Que falava de um despertar para o recomeço de vida das pessoas. Essa prece calou fundo no inconsciente do pessoal.  No fim uma senhora disse que eu parecia filósofo. Falei que não era filósofo mas que já dei aula de filosofia. Mas hoje dou aula de outras coisas. E ela disse: o importante é não parar de estudar. Ela não se deu conta de que se dou aula... e estou na rua... como é isso? que tipo de aula é, onde é? Não me ouviu.

Saímos caminhando felizes e com esse constrangimento do encontro. Sim, foi bom. Mas reconhecemos a distância que nos separa. Nós dissemos a eles que íamos meditar e se quisessem vir conosco... Eles nem disseram que não nem que sim. Só estranharam. Falamos do yoga de rua, divulgamos o café. Sim. Agradeci em meu coração pelo cobertor, pela brecha de disponibilidade em seus corações. Por estarem ali fazendo o seu melhor, uma presença semanal que vai fazendo diferença.

O que estamos fazendo?

Fico pensando nas distâncias quase intransponíveis... e de como para quebrar essas distancias é que estamos com o yoga de rua, ampliando vínculos, fazendo os retiros com o pessoal e percebi que era chegado esse momento que então estava vivendo... dormir na rua.
Achamos um lugar silencioso para dormir. Montamos as camas, deitamos, mas... mosquitos... Tem muito mosquito aqui! Vamos voltar pra Cinelândia! Rimos da situação e voltamos a caminhar.
Esses meninos são muito amigos, muito parceiros um do outro. Uma aceitação tranquila das necessidades de cada um. Uma legitimidade real do outro.

Dormir sob a luz da amizade

Estamos quase chegando na praça e o Rodrigo novamente teve aquela liderança enérgica. Aqui! Vamos dormir aqui. Era na calçada em frente a um restaurante. Começaram a abanar o chão com seus papelões (é assim que varrem) quando Sávio disse com espanto: aqui uma vassoura! Sim. Não tínhamos percebido ainda. Justo li onde escolhemos dormir, havia uma vassoura, como que esperando por nós. Mais um presente divino. Rimos de alegria por tantos presentes.
Deitamos. Meditei ali em profunda emoção. Senti que de algum modo, assim como Sávio e Rodrigo estavam sendo meus protetores, me hospedando em seu ambiente de vida, eu estava também sendo importante para eles. Pedi em meu coração que eles pudessem ter uma boa noite de sono.

Meditei até ficar com bastante sono. Meus companheiros já estavam dormindo. Então me deitei. Lembro de acordar muitas vezes. Barulho de ônibus passando. Uma baratinha que subiu na minha mão tirou meu sono por mais tempo, especialmente pelo medo dela voltar. E de outras vezes, acordei para me virar, por causa da dor de dormir de lado no chão duro.

Quando acordo, em quem eu penso?

Quando senti que acordei de vez, o primeiro pensamento que me veio foi a imagem dos professores da capoeira que iríamos encontrar logo mais. Senti profunda emoção por esse vínculo. Sávio especialmente é um capoeirista experiente e apaixonado. Vive fazendo capoeira, cantando as músicas. Soube que seu pai é capoeirista lá no Ceará. E então quando acordei ali no escuro da madrugada, veio-me a imagem dos professores. Pensei nessa maravilha desses projetos! E que o essencial mesmo é que as pessoas possam se vincular ao ponto de que a esperança seja criada no coração de quem acorda de manhã. Como é bom acordar de manhã e saber que vou encontrar essas pessoas! Isso dá um tremendo sentido pra se levantar.

Andei até a praça para ver a hora na estação do VLT. Tudo estava muito silencioso e eu temia que ainda fossem umas 2 da manhã. 4:15. Ufa, já está na hora. Então segui minha rotina diária de praticas matinais. Os meninos acordaram depois das 5 e já era hora mesmo porque o fornecimento do restaurante já estava chegando. Eu ainda estava terminando de recitar um sutra em sânscrito.
Bom dia!

Banheiro, caminhada e Surya Namaskar

Caminhamos. Fomos até o aeroporto Santos Dumont usar o banheiro. No caminho encontramos outros amigos que iam e vinham de lá. Dali caminhamos pelo aterro. Pudemos contemplar a cidade amanhecendo. Rodrigo nos guiou numa saudação ao sol, na grama do aterro. Lemos noticias de  jornal na banca do Largo do Machado e finalmente chegamos no ambiente do café, na São Salvador.

Como vai ser?

Cansaço, fome, sede. Tudo isso é até suportável. Depois dessa pequena experiência na rua sinto que o pior da situação de rua não é a rua em si. Mas a mente. O que se passa na mente, as memórias daquilo que leva as pessoas a rua, sua ruptura de vínculos, suas incertezas de para onde caminhar, seus enganos e desilusões nesse caminho de vida. Cuidar dessa mente...

Na prece em grupo lemos de como Jesus orou no Getsêmani. Essa passagem fala da intensidade da angústia e da intensidade da oração. "Apareceu-lhe então um anjo do céu que o fortalecia. Estando angustiado, ele orou ainda mais intensamente; e o seu suor era como gotas de sangue que caíam no chão." Essa intensidade de esforço de conexão com Deus que Jesus ensina. Não é pouca coisa!

E quando eu estava ali e me ocorreu que a leitura não foi lá muito útil para as pessoas, me chega um senhor e pára do meu lado e diz: posso alugar seu ouvido por um minuto? Eu falei: por dois. Ele então cantou uma versão musicada dessa passagem de Jesus. E eu pude olhar seus olhos. Como essas pessoas são maravilhosas! Na capoeira eu estava sem forças, cansado. Como são fortes esses meninos!

Lorena, nossa fotografa oficial há anos, estava lá e pedimos para fazer essas fotos e registrarmos esse dia. Fizemos capoeira, yoga, almoçamos juntos. E nos despedimos. Quando quiser, pode voltar. Sávio falou.

Penso nessa nossa amizade. Desde o primeiro retiro penso nisso. Como vai ser essa amizade com pessoas que moram na rua? Como é isso de nos encontrarmos eu voltar pra casa e meus amigos ficarem na rua?

Pra completar as coincidências, ao escrever esse texto me dei conta que 18 de junho de 2005 foi quando começamos o projeto dos cafés da manhã. Essa ida a rua para dormir com meus amigos foi uma bela forma de celebrar o aniversário. Uma bela forma de dar início a algo novo. O que será que vem por aí?