terça-feira, 12 de novembro de 2019

Esquizoyoga e o yoga de rua


Schizo, Maya, Avidya, Viveka, Mantra, Yoga.

Do grego schizo, desagregação, separação.
A personalidade dividida.
No sânscrito avidya, ignorância, a ilusão de separação, o mergulho na dualidade.
Yoga, unir (tudo é Brahman), mas na condição comum (doente?) nos percebemos separados, isolados.

Observando as oscilações mentais, quem de nós estaria livre de se perceber schizo?
Yoga é a cessação das oscilações mentais (citta vritti nirodha).

O estado de yoga, é o estado de integração.
A vida do ser humano comum, sejamos honestos, é uma vida de desintegração.

Quando fazemos yoga estamos em busca de algum nível de integração, centramento, de viveka (clareza mental) que nos faça ao menos perceber que em geral estamos mergulhados em padrões mentais de repetição e repetição, separação e autoafirmação esquizóide da separação, ... dispersão.

De perto ninguém é normal.

Um grande professor de yoga brasileiro, nosso querido Hermógenes, resumiu:

"Deus me livre dessa estranha doença chamada normalidade"




Ser normal, numa sociedade mergulhada na ignorância, é uma verdadeira doença, que ele chamou de normose.

Comecemos então nossa jornada partindo desse reconhecimento inicial:

Assumo a loucura. Parto em busca de alguma integração no meio disso tudo.

A equipe do Yoga de Rua se reuniu para assitir o filme "Nise: o coração da loucura".



Nise da Silveira, inaugurou uma nova etapa da psiquiatria. Começou a se comunicar com as pessoas internadas no manicômio e inaugurou o esforço de "escutar" o que as pessoas estavam comunicando através de seus desenhos, suas pinturas. Uma linguagem diferente, a expressão do inconsciente, através da arte. Com a inspiração da teoria de Carl Gustav Jung sobre os arquétipos, Nise percebeu certos padrões de expressão, o círculo, as mandalas, como um trabalho do inconsciente em busca de uma integração, o ser em busca de integração de Si.



Cá estamos nós. Praticantes de yoga na mesma trilha.


E na rua estamos nos abrindo cada vez mais a esse esforço de escuta de nós mesmos em contato com nossos alunos. Alguns estão chegando para as aulas em "crise" e nessa expressão estamos buscando escutá-los e nos abrir para acolhê-los. O que estão nos dizendo em seus expressões: a dança, o grito, a agressividade, o estar de fora da roda, a sensualidade?



Algumas questões foram lembradas e estamos pensando a partir delas:

1- o yoga de rua é um projeto voluntário e temos esse limite de tempo para um contato mais frequente com os alunos.Cabe uma pergunta: de onde vem o dinheiro, o sustento material na sociedade em que estamos? Por que o trabalho, muitas vezes o mais importante e útil que fazemos, não tem remuneração nos termos do acordo coletivo de nosso mundo? Sair da loucura não é tão simples!
Como estabelecer vínculos afetivos, com o pessoal que ainda tá morando na rua, capazes de dar conta e continuidade desse acolhimento e escuta? As vezes um voluntário só está no projeto de quinze em quinze dias. Da mesma forma temos dificuldade em termos esse tempo para um encontro periódico para discussão dos casos em equipe. Ainda assim, a equipe está bem disposta a ter mais rotinas de encontros e reuniões.

2- estamos juntos para a prática de yoga e talvez a expressão simbólica desses inconscientes vão precisar de outras ferramentas/linguagens... precisamos nos abrir para o fato de que possivelmente a yoga não seja o ponto final de relização dessas pessoas que nos chegam ao projeto. A humildade de sermos só uma estação, um lugar de passagem.

3- Estamos nos perguntando quais as metologias do universo da yoga podem ser mais apropriadas para essa entrada na loucura para o caso específico das pessoas que vivem nas ruas? Que formas de prática de yoga são possíveis ali, são necessárias? As conversas em roda, que outras formas de encontro/expressão? Num universo tão simbólico como as mitologias (que estão por trás dos asanas...) estamos pensando... quem sabe uma série de yoga não é na verdade uma grande contação de história... quem sabe o teatro desoprimindo... a dança... a música, os mantras... como terapias coletivas...

4- existem situações de risco envolvidas, para nós e todo o grupo e isso aumenta a nossa responsabilidade de estar na condução ali de um grupo onde podem surgir situações de violência. As pessoas estão confiando de que estamos criando um espaço seguro e de repente, as pessoas do proprio grupo começam a representar ameaças... surge o medo no grupo e precisamos pensar a respeito disso.

Que paradigma é esse?

Yoga é desapego. O sofrimento é apego. Apego é sofrimento. As fortes paixões. As fortes frustrações. Praticar yoga é uma forma de fortalecer-se para abrir mão das projeções e fantasias e encarar o real a partir de um lugar de maturidade e plenitude.

Mas a rua tem um enigma. Ali as pessoas romperam os laços. Não se desapegaram. A frustração, o sofrimento do convívio foi tão grande que a rua foi a estação final de um longo processo de mal estar nas relações.

Descontinuidades. Perdas. Angústias. Abandonos. Expectativas. Saudades. Morte. Vida. Sentido de vida.

Tudo está em carne viva.

"Prefiro não falar sobre isso."

Então o yoga de rua precisa propor um caminho de volta:


Uma schizo yoga vinculativa, uma yoga do encontro afetivo libertador.


Afeto.
Afeto.
Afeto.

Marca do trabalho da Nise da Silveira e de Paulo Freire, o educador popular.



A vinculação.

A rua é solidão.
Yoga é vinculação.

A imagem do iogue isolado, meditando... é uma imagem exterior, um estigma limitado.

O que o iogue em solitude está fazendo é o extremo da vinculação em plenitude com todos os seres... a deusa Mãe, que é a totalidade de todos os seres... ver o divino em todos os seres. Estação final da comunhão cósmica.

Até chegar à divina solidão que é união... temos um percurso.

Começa resgatando os fios do investimento afetivo que ficaram caídos no chão...

Reconstrução de afetos. Novos e antigos afetos.

Yoga de rua começa com a vontade de encontrar um amigo, uma amiga.

Criar laços.

Saber de ti.

Falar de mim.

E aqui há um risco muito maior.

O perigo de gostar das pessoas e se vulnerabilizar, o perigo de, por fim, acabar amando alguém.

O diferencial no diálogo com alguém em crise é o amor.

Amor, no sentido absoluto da palavra amor, que significa não pressupor saber do outro o que é melhor pra ele, amor no sentido do reconhecimento do mistério insondável do outro e da escuta sensível, pelos poros, do que o outro está expressando, amar do verbo amoral. 

Yoga é plenitude, o tempo eternidade (pra alem de todos os limites) ,o espaço infinito (pra além de todas as fronteiras), é salvação-libertação pra além de toda dualidade.

Estamos todos em exílio, em maya, na rua da amargura... e nessa mesma fase de ruptura e descontinuidade com o real... nosso trabalho aqui com yoga é reconstrução de nós mesmos e o outro é a ponte para o caminho que conduz ao centro de mim mesmo.

Deus, revela-Me.

Hari Om!
Gam Ganapataye Namah!