segunda-feira, 20 de julho de 2020

Da Jornada ao Bardo e de volta à Jornada


Viemos para a Vila XI no meio da Jornada. Com a companheira e a filha, deixei nossa casa de onde assistíamos os encontros com a Ana às segundas, quartas e sextas e viemos para cá nos lançar no desafio de viver aqui, juntos, esses princípios, esse novo modo de vida, bases para um outro ser humano emergir.

Estando aqui a Jornada ganha novas dimensões. Não que ela não ganharia se estivéssemos lá. Mas a nossa realidade agora é aqui. E os elementos que vamos trabalhando em nós vão sendo vivenciados no nosso cotidiano aqui, no convívio e sob as trocas de olhares de outras pessoas que estão vivendo esse processo coletivo.

Ampliação e intensificação das luzes e sombras de mim mesmo.

Falando das sombras, foi ficando claro para mim, uma imensa dificuldade em morrer.

No grupo, li o Alexandre usar a metáfora da tábua que ajuda a salvar o náufrago, mas que com o tempo fica difícil abandoná-la, mesmo depois que a tempestade passa.

Até porque, há um núcleo de defesa, de resistência, que cria as tempestades.

Tenho observado essas tempestades em mim. Minha mente cria monstros (Goya). Começo a desconfiar: será que há consistência mesmo nesse trabalho aqui? Será que não é tudo mais uma grande e velha inconsistência numa roupagem nova? Posso confiar nessas pessoas?

E, como a Ana diz, não tem guru. Onde então o critério, a luz do discernimento? Que horas que a tempestade passa? Eu me sinto muito perdido nessas horas.

Quando a última tempestade passou me veio que a pergunta relevante é: posso confiar em mim mesmo? Por que olhar tanto para fora nas horas de desconfiança? Posso acreditar nas fontes de alegria e de poder de transformação que existem em mim? Onde está o guerreiro que não pode se permitir ficar tímido?

Hoje isso está mais claro, mas uns dias atrás estava mergulhado na tempestade.

Um dos caminhos que trilhei aqui que me ajudaram no processo de abertura foi a leitura do Bardo Thödol, o livro tibetano dos mortos. Depois pude fazer uma sessão de holocromos e esse diálogo simbólico está dando clareza a caminhos internos.

Nesse momento quero contar pra vocês um pouco sobre a riqueza desse livro que estava na estante aqui da biblioteca da Vila XI.

Certamente as sessões de meditação com a Cuca diante do altar estão sendo um caminho para esse universo tibetano, que é novo para mim. Causas e condições para esse livro parar na minha mão. Ou melhor, se insinuar aos meus olhos, enquanto eu falava ao telefone... com meus pais! Muitas causas e condições, não é mesmo?

O livro tibetano dos mortos é, sob uma primeira perspectiva, um guia para a condução no estado após a morte até o momento de renascimento. O Bardo Thödol (Bardo = transição entre as vidas; thödol = libertação) guiará aquele que vai guiar o morto. O oficiante encontra no livro as palavras a serem sussurradas no ouvido do moribundo e, depois, para o cadáver, dia a dia, como tentativa última de sua compreensão da Verdade Mãe.

Uma possibilidade de iluminação e libertação do círculo do samsara desde os momentos finais da vida até a hora de seu renascimento, 49 dias após sua passagem. É um livro que contém instruções para lembrar dos ensinamentos recebidos ao longo da vida. Que sirvam, senão para a libertação definitiva, ao menos para se obter um bom renascimento já que o último pensamento (ou digamos, o estado mental no período do Bardo), torna-se a semente de seu próximo nascimento.

No livro há passagens assim: no dia tal você irá encontrar determinada divindade que emanará uma luz de determinada cor. Você irá sentir medo e vontade de fugir, mas acredite, reúna sua fé e abra-se para essa luz. Nesse momento você também perceberá uma luz opaca, e se sentirá atraído por ela, sentirá vontade de segui-la, mas resista, pois essa luz te conduzirá ao sofrimento do renascimento.

Este verdadeiro guia para alma pode ser lido e ser um guia para a vida, e não só para preparar para a morte, mas para seguir o caminho luminoso na própria vida.

Em que dilemas nos encontramos? Eu que estava aqui em meio a tempestade: confio e desconfio, creio e descreio, ora as pessoas parecem ser dignas de confiança, ora entram em descrédito ao meu juízo. Estou aqui buscando um caminho que parece luminoso e em seguida tenho medo dele. Prefiro o caminho da luz opaca da dualidade e não percebo que construo meu próprio destino de sofrimento.

Assim o livro trouxe essa clareza, me fez ver com clareza. Mais tarde lembrei as primeiras palavras espirituais que chegaram até mim, 20 anos atrás: Ore e confie!

Num dos prefácios do livro, o psicanalista Carl G. Jung diz que o livro é um processo de iniciação cujo propósito é o de restaurar na alma a divindade que ela perdeu ao nascer.



O que é alma? Quem somos? O que é a vida?

No alemão, diferentemente no sentido de soul em inglês, Seele significa a Realidade Última, a shakti, a psique coletiva, matriz de tudo, o Dharmakaya, o oceânico corpo primordial.

E assim, diz Jung:

“A alma certamente não é pequena, pois é o próprio Deus. O ocidente considera esta afirmação bastante perigosa, quando não francamente blasfema, ou mesmo aceita-a impensadamente e, assim, cai no mal da retórica teosófica vazia. Mas, se pudermos controlar-nos o suficiente para nos prevenirmos de nosso erro principal, de sempre querer fazer algo com as coisas e dar a elas um uso prático, poderemos talvez ser bem sucedidos em aprender uma importante lição a partir desses ensinamentos; ou, pelo menos, sermos capazes de apreciar a grandeza do Bardo Thödol, que confere ao morto a verdade última  e suprema, ou seja, que mesmo os deuses são o resplendor e a reflexão de nossas próprias almas. Por conseguinte, nenhum sol é eclipsado para o oriental como o seria para o cristão, que sentir-se-á roubado por seu Deus; pelo contrário, sua alma é a luz do próprio Deus, e o próprio Deus é a alma.

Estamos tão oprimidos, condicionados e obstruídos pelas coisas, que nunca temos uma oportunidade, em meio a todas essas coisas "dadas", de perguntar quem as "deu". É deste mundo das coisas "dadas", que o morto se liberta; e o propósito da instrução é o de ajudá-lo no sentido dessa libertação. Se nos colocarmos em seu lugar, obteremos uma recompensa não menor, já que aprendemos que o "doador" de todas as coisas "dadas" habita dentro de nós mesmos.

É necessária uma reestruturação radical do ponto de vista, à custa de muito sacrifício, antes que possamos ver o mundo como coisa "dada" pela própria natureza da alma. Trata-se de algo muito mais direto, mais vívido, mais impressionante e, por conseguinte, mais convincente ver que as coisas acontecem para mim do que observar como eu as faço acontecer. De fato, a natureza animal do ser humano faz com que ele resista em enxergar a si mesmo como o autor de suas circunstâncias.

Bardo Thödol é, então, um processo de iniciação cujo propósito é o de restaurar na alma a divindade que ela perdeu ao nascer."

Do mundo das coisas dadas ao mundo onde somos os criadores de nossas próprias circunstâncias. Esse livro me colocou de volta aos caminhos da nossa jornada.

Olhar o mundo não como algo dado, mas como uma co-emergência. Certa vez Ana escreveu:

“Não existe um mundo pronto onde passivamente recebemos informações. O mundo é construído num processo incessante e interativo com cada um de nós singularmente, com cada um de nós em sociedade. Todos os seres vivos estão ativos nessa criação.
Estamos ativos em cada ação que vivemos, sustentando por aliança ou por antagonismo.
Ao transmutarmos nossa percepção, outra "realidade" se faz presente.
Uma quarentena mundial é uma quarentena singular ao mesmo tempo. Todos na mesma situação e cada um tendo uma experiência singular.”

Uma imensa revolução está em nossas mãos! Uma revolução que se dá com a mudança nas nossas percepções.

No Bardo Thödol uma das recomendações é que a pessoa, diante das luzes e divindades, não se perca, mas conscientize-se de que tudo que aparece fora existe, na realidade, dentro. E nessa introspecção concentre-se em sentir, em si mesmo, a luz, o amor, a vacuidade, e que confie, se entregue a essa luz de si mesmo!

Quando assumiremos a autoria de nossos próprios pensamentos?

Quando olharemos os arames farpados que cercam nossos territórios e nos veremos co-responsáveis pela existência de arames farpados? E territórios e propriedades? E identidades e ódios? E guerras e campos de concentração?

E quando olharemos os arames farpados e, por detrás de todos os instrumentos feitos para machucar o outro, colaremos nossa mente num fluxo de amor e compaixão por toda a humanidade, pelos animais e todos os seres vitimados pela ignorância, ódio e apego?

Da dor à compaixão. Da compaixão à libertação.

Se não agora, ao menos na morte. Num momento de intensa atenção e dedicação.

Mergulho na morte sozinho, com intensa energia. Curioso e atento caminho passo a passo. Antes da transição tomo a seguinte resolução:

"Ó, esta é a hora da minha morte. Aproveitando-me desta morte, assim agirei, pelo bem de todos os seres sensíveis que povoam a amplidão ilimitável dos céus, a fim de obter o Perfeito Estado de Buda, dedicando amor e compaixão a eles e dirigindo todos os meus esforços à Única Perfeição. Aparecerei em qualquer forma que beneficiará todos os seres vivos sejam eles quais forem: servirei todos os seres sensíveis infinitos em número como os limites do céu."

Que palavras maravilhosas! Que volição benéfica a ser cultivada em vida e será a melhor possível na hora da morte. Vejo aqui um profundo diálogo com as raízes do cristianismo, que possivelmente passa despercebido aos cristãos. Jesus parte o pão e diz: tomai e comei este é o meu corpo. Qual o significado disso?

A inter-existência. A consciência de completa abnegação fez como que seu corpo agora seja o pão, o alimento, o fruto da terra que alimenta todos os seres. Ele e nós, se o compreendermos bem, estamos presentes em cada ser vivo. Não há divisão, não há separação. Eis o enigma da entrega de Jesus na sua paixão. Eis o convite de Buda a uma vida de compaixão. Não é um sentir amor pelo outro, é sentir-se inseparável do outro: eis o mistério do maha karuna que Thomas Merton foi buscar na Ásia, e o encontrou dias antes de morrer num trágico acidente após sua palestra sobre marxismo e budismo! Mortevidabudacristopãorevolução...

Grande Compaixão, alma do mundo...

Mas não é bem assim que as pessoas entendem. Vamos aos templos em busca do sagrado como quem vai a farmácia em busca de um remédio. E seguimos tomando nossas doses diárias de desconexão. Seja das mãos dos sacerdotes seja dos psiquiatras. O sonho da razão cria monstros.

A humanidade é desumana, mas ainda tempos chance...

No Bardo é dito ao morto:

"Ó nobre filho [fulano], escuta. Agora estás experimentando o Resplendor da Clara Luz da Realidade Pura. Reconhece-a. Ó nobre filho, teu presente intelecto, vazio em sua real natureza, não formado no que respeita a características ou cor, naturalmente vazio, é a verdadeira Realidade, o Todo-Bondoso.

Teu próprio intelecto, que agora é vacuidade, não deve, contudo, ser visto como vazio de nada, mas como sendo o próprio intelecto, desobstruído, claro, vibrante e jubiloso, é a própria consciência, o Todo-Bondoso Buda."

Somos a verdade. A clara luz.

Sem nascimento, nem morte.

Como será para mim e para você viver esta divina iniciação antes da morte?

Como será nossa vida a partir de então? 

Não sei dizer.

Em mim, essa leitura e tudo o que veio depois dela aqui em nosso convívio cotidiano na Vila XI, percebi um renascer de uma disposição para viver que há muito eu não experimentava. Aquela energia que me fazia apaixonadamente preparar uma aula, nos meus primeiros tempos como professor. Aquela paixão de criar projetos novos... me fez olhar aqui para as pessoas, a terra, a família e pensar: vai dar certo! O quê? Minha companheira perguntou. Não sei, qualquer coisa. Tá dando certo. Não importa tanto o conteúdo, os personagens, mas a abertura. Estamos falando de amor.

Por isso, esse sentimento de amor, de convicção que encontrei nesse Bardo, me lembrou dos êxtases de Teresa de Ávila e suas angústias de separação. Em especial esse poema sobre o morrer libertação e o viver em meio a ferros. Analogia para os estados de alma que experimentamos aqui em nossas tempestades e claridades, não é mesmo?


O que dizer para nossas almas quando nos demoramos em nossas tempestades? Que palavras e encantamentos podem ser ditas quando estamos prestes a sucumbir? Seu último pensamento, sua próxima vida. Se aqui morremos e renascemos em vida... qual a próxima vida receberemos na nossa próxima respiração?

Vivo sin vivir en mí
y tan alta vida espero
que muero porque no muero.

Vivo ya fuera de mí
después que muero de amor,
porque vivo en el Señor,
que me quiso para sí;
cuando el corazón le di
puso en mí este letrero:
Que muero porque no muero.

Esta divina unión,
y el amor con que yo vivo,
hace a mi Dios mi cautivo
y libre mi corazón;
y causa en mí tal pasión
ver a mi Dios prisionero,
que muero porque no muero.

¡Ay, qué larga es esta vida!
¡Qué duros estos destierros,
esta cárcel y estos hierros
en que está el alma metida!
Sólo esperar la salida
me causa un dolor tan fiero,
que muero porque no muero.


Acaba ya de dejarme,
vida, no me seas molesta;
porque muriendo, ¿qué resta,
sino vivir y gozarme?
No dejes de consolarme,
muerte, que ansí te requiero;
que muero porque no muero.



Um comentário:

  1. Legal André,a tempos queria conhecer este texto do Livro dos Mortos... Na expressão da face representada nessa escultura, na lascívia do corpo, na posição do anjo e na simbologia da flecha como penetração, apontada em direção à vagina, a mão do anjo levantando a roupa... se trata de uma representação do êxtase sexual.

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