quinta-feira, 2 de julho de 2020

Santidade cidadã


Fazendo algumas leituras nesses dias, encontrei umas coisas que ajudam a não sucumbir quando tudo parece ruir. Na interpretação do arcano O Carro, lá pelas tantas uma frase me tocou:

"Quando me encarno em você, os fracassos se convertem em novos pontos de partida, e dez mil razões para renunciar não valem nada diante de uma única razão para continuar."

Estamos falando em mergulhos profundos. E é bom entregar-se de todo sabendo de uma luz capaz de guiar.

É um entregar-se sem se entregar. 

Jodorowski diz que depois de muitos caminhos percebeu que quem quer alcançar a sabedoria devia trabalhar na solidão.

"A semente, para germinar, precisa da escuridão das profundezas da terra, da mesma maneira que o feto precisa da escuridão do ventre materno e que a alma, segundo San Juan de la Cruz em "A subida do monte Carmelo", deve, para chegar à união com Deus, passar pela noite escura da fé, pela nudez e pela purgação:

En la noche dichosa,
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba otra cosa,
sin otra luz ni guía
sino la que en el corazón ardía.

"Na noite ditosa,
em segredo, que ninguém me via,
nem eu olhava outra coisa,
sem outra luz ou guia
senão aquela que o coração ardia".

Que luz é essa?

Os budistas trazem uma teoria de consciência em três camadas:

1- A psique
É a camada mais grosseira e superficial de consciência. Compreende os cinco sentidos físicos, juntamente com os fenômenos mentais conscientes e inconscientes – pensamentos, sentimentos, sensações, e assim por diante. Esta é a nossa mente comum e condicionada. A psique emana de uma camada intermediária mais profunda chamada consciência substrato.

2- A consciência substrato
É o fluxo mental sutil contendo atitudes, hábitos e tendências latentes que remontam a vidas anteriores.

3- A consciência primordial
É a camada mais profunda e mais fundamental. Ela inclui a psique e a consciência substrato, é um nível absoluto de sabedoria pura, onde o “interior” (mente) e “exterior” (mundo fenomênico) são não duais. A realização da consciência primordial é a porta de entrada para a iluminação completa.

A consciência primordial é a a luz na noite escura de João da Cruz.

Jodorowski diz que a consciência não é o ato de tomar consciência de alguma coisa.

"A finalidade da Consciência é vir a ser ela mesma para se oferecer em seguida à divindade.

Não se pode tê-la completamente: é uma semente que se desenvolve por mutações sucessivas."

Então descreve os estágios a serem percorridos:

1- Consciência Animal
Vivo para satisfazer as necessidades materiais e sexuais. Não domino meus instintos, ignoro o respeito pelos outros. Sou agressivo como defesa, por medo de perder.

2- Consciência Infantil
Não aceito a velhice ou a morte, vivo de maneira superficial. Me recuso a meditar para me conhecer, coleciono objetos inúteis e distrações, sem nenhum senso de responsabilidade.

3- Consciência Romântica
Não domino os sentimentos, que me invadem. Eterno adolescente, apaixonar-me é o caminho da vida. Crio um ideal amoroso de conto de fadas. Confundo o ser pelo parecer. Depois das desilusões é possível que chegue a fase adulta.

4- Consciência Adulta
Pela primeira vez, o outro existe.Em vez de exigir devo investir. Há o risco de ganhar sede pelo poder, como fazem os "exploradores, tiranos, industriais sem escrúpulos, escroques de toda sorte. Egoísmo que tem sua antítese: pessoas que, por se sentirem nobres, passam o tempo a ajudar os outros por preguiça de ajudarem a si mesmas. Se isso se torna, na verdade, uma ajuda para as pessoas, abre-se o nível da consciência social."

5- Consciência Social
Luto pela felicidade de todos os seres humanos, mas também pela saúde das plantas, dos animais, do planeta. Mais tarde se abre à Consciência cósmica.

6- Consciência Cósmica
Pertencendo a um mundo infinito e eterno me abro a uma mutação constante. Descarto os sistemas vigentes e vou além dos limites geracionais preparando o terreno para o advento do novo ser.

7- Consciência Divina
"No centro obscuro do inconsciente, há um ponto brilhante de lucidez total, aliado poderoso que, se bem utilizado, se manifesta como deus interior ou, se mal utilizado, como demônio interior. Esse nível é aquele que conhecem os gênios, os profetas e os magos."

A consciência divina é a luz na noite escura de João da Cruz.

Esses são alguns mapas.

Voltamos-nos para nossas paisagens e o que vemos?

Defendemos nossas limitações, com as quais nos identificamos.

Rejeitamos a fé de que possuímos as forças para nos curar.

Trazemos o coração cheio de rancor, embora dizemos que ele está vazio.

Perdemos a fé em nossa criatividade e nutrimos vergonha por nossos desejos.

Atrofiamos os movimentos de nosso corpo, enrijecido com a moral.

Aceitamos a culpa como ação de uma justiça soberana.

Justificamos nossos erros sem tentar mudar.

E desejamos mudar, amar, criar, mas estacionamos no primeiro impulso.

Queremos nos vingar dos que nos fazem mal.

Nos jogamos num sexo possessivo.

Buscamos drogas ou fama e giramos em torno de nós mesmos.

Fincamos raízes na árvores da crítica e não enxergamos o valor dos outros.

Não reconhecemos que habitamos um cosmos e temos um limite muito estreito de moradia.

Aceitamos que somos uma parte, mas não que somos o todo.

E conclui: "Quanto maior é a separação dos outros, menor é a consciência. Vítima de ideias abusivas, o consulente nega sua capacidade de realizar milagres (entendemos aqui "realizar" como o fato de se dar conta de que a realidade não se comporta segundo um modelo preestabelecido, mas de uma maneira incompreensível para uma mentalidade prisioneira de um sistema lógico) e, desamparado, pensa viver sozinho, sem desconfiar que o universo - "o inconsciente" - é seu aliado."

Daí ele propõe, no seio da atividade de ler cartas para um consulente, uma atitude muito amorosa.

"Enquanto a pessoa embaralha as cartas, o leitor fica imóvel, serenamente. A voz que ele emprega não deve ressoar no crânio, mas no peito, uma voz suave, a voz que usamos para falar com uma criança, vinda do coração, não do intelecto. É um tom de bondade, muito difícil de obter ... Para chegar aí, o tarólogo deve se aproximar de um estado de santidade..."

Pode soar estranho se falar em santidade aqui.

Mas ele diz:

"Não falo do aspecto exterior, estereotipado de um santo de almanaque, mas de um sentimento verdadeiro, poético e sublime. Diversas religiões dominaram o conceito de santidade, dando-lhe significados que o limitam. Entre esses limites, existe a negação da sexualidade, da reprodução, da família, conjugada à exaltação do martírio, à rejeição do mundo real por um além mítico. Fala-se de santos católicos, muçulmanos, budistas, judaicos (os justos) etc., mas não se concebe uma santidade cidadã."

Então vejo aqui um texto muito inspirador. Faz acender em nós algo que podemos ser.

Santidade cidadã

"O cidadão santo pode amar um ser do sexo oposto, ter filhos, formar uma família, levar uma vida sadia, não pertencer a seitas, não adotar doutrinas ditadas por um deus com figura e nome, e praticar uma moral que não seja fundada sobre as interdições mas sobre o conceito de atos úteis para a humanidade.

O leitor do Tarot, se não é um santo, deve imitar a santidade.

Em algumas culturas orientais, papagaios, macacos e cães são descritos como animais sagrados que representam o ego individual, pois são capazes de imitar seus donos.

Como aprender a imitar um santo? A santidade não é inata, nem tampouco é um dom vindo do exterior, mas é obtida pouco a pouco. Para ser forte nas grandes coisas, é preciso sê-lo nas pequenas, no cotidiano, dando sem esperar nada em troca, nem agradecimento, nem dinheiro, nem admiração, nem submissão ...

Sem nos compararmos, sem rivalizarmos, aceitando com humildade os valores dos outros. Não colocando nosso ponto de vista como unidade de medida do mundo, aceitando de bom grado as diferenças.

Aprendendo, entre muitas outras coisas, a:

concentrar nossa atenção, controlar durante a leitura nosso pensamento, nosso desejo, nossas emoções;

vencer nossa preguiça, terminar sempre aquilo que começamos, não ficarmos nervosos se o consulente recusa a tomada de Consciência, fazer o melhor possível naquilo que estamos fazendo;

eliminar vícios e manias,

realizar atos de generosidade sem testemunhas,

purificar o espírito eliminando interesses supérfluos sem cair em uma autocrítica excessiva nem na autoindulgência,

agradecer conscientemente cada dádiva,

meditar, a rezar para o deus interior,

contemplar, a conversar sozinho sobre temas profundos,

desenvolver os sentidos,

parar de ficar se definindo a si mesmo,

saber escutar,

não mentir para os outros e nem para si mesmo, não nos comprazermos com a dor ou com a angústia,

ajudar o próximo sem torná-lo dependente,

não querermos mais ser imitados,

e empregar o tempo de maneira lúcida,

fazer planos de trabalho e a realizá-los,

não ocupar muito espaço,

não dilapidar,

não fazer barulhos inúteis,

não comer alimentos insalubres só pelo próprio prazer,

responder da maneira mais honesta possível cada pergunta,

vencer o medo da existência e da morte,

não viver apenas no aqui e no agora mas também no algures, no além e no depois,

não abandonar jamais as crianças e velar por elas desde a infância,

não ser dono de nada nem de ninguém,

dividir igualmente,

não nos enfeitarmos com roupas e objetos por vaidade,

não enganar,

dormir o estritamente necessário,

não seguir as modas,

não nos prostituir,

respeitar escrupulosamente todo contrato assinado e toda promessa feita,

ser pontual,

não invejar o sucesso alheio,

falar somente o que for preciso,

não pensar nos benefícios de uma obra, mas a amar a obra por si mesma,

jamais ameaçar ou maldizer,

nos colocar no lugar do outro,

fazer de cada instante um mestre,

desejar e admitir que os filhos nos superem,

ensinar os consulentes a aprenderem por si mesmos,

vencer o orgulho transformando-o em dignidade, a cólera em criatividade, a avareza em sabedoria, a inveja em admiração pela beleza, o ódio em generosidade, a falta de fé em amor universal;

não aplaudir a si mesmo e nem se insultar,

não se queixar,

não dar ordens por prazer de nos vermos sendo obedecidos,

não contrair dívidas,

jamais falar mal de alguém,

não conservar objetos inúteis e, sobretudo,

jamais agir por interesse próprio, mas em nome do deus interior.

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