domingo, 26 de julho de 2020

O último texto e a passagem

Escrever.

Por que escrever?

Não sei se tem um porquê. Talvez tenha múltiplos. Se sou múltiplo terei múltiplas escritas e infinitos porquês.

Quais assuntos, quais caminhos, quais palavras, quais referências de fundo?

O caminho da escrita. Será como um rio que tem um fluxo definido? Mas... e as múltiplas nascentes, os múltiplos afluentes? Existirá um rio? Ou será o que chamamos rio águas que passam, pedras e terras e peixes... como é o rio percebido pelos diferentes sujeitos que nele habitam ou que por ele passam, navegam, pescam, banham-se, lavam suas roupas?

Rio passagem. Contínuo vir a ser. O devir do rio não é o mar é ser passagem.

Por isso nas histórias do Hesse o rio está lá como um guru. O rio e o velho. Velho é devir rio. Rio é devir velho. Mestre da impermanência, sabedoria dos que chegam ao fim da busca pela outra margem e percebem ali, na passagem, a terceira margem. Nem lá, nem cá. O caminho. Os “meios pelos quais” que a Ana traz com a técnica Alexander como princípio sem fim.

O que você sente com essa pergunta que ela fez: o que você sente se eu te disser que não importa quem você é, mas quem você pode vir a ser?

Não é sobre futuro.

É sobre ser em estado de mudança, de passagem.

Abandono de toda fixidez. O rio, o velho, o velho do rio que vira cobra, quem sabe vira lobisomem, mulher que vira onça... a natureza selvagem, na borda, na margem do rio, na margem do humano... do marulhar das águas tudo é movimento. Como é ser humano visto pela perspectiva do rio?

Abstratamente parece fácil. O intelecto chega à compreensão e se entusiasma com o conceito. Eleva-se, aspira, chega a uma espécie de samadhi, uma compreensão do tipo de quando se entende uma piada. Sim! Faz sentido. Viver no fluxo! As pessoas dizem.

Mas não somos só intelecto.

Vem o corpo e seus sentires. Que trazem o intelecto lá das nuvens da transcendência ao chão onde ainda agarram as raízes de profunda delusão e seus apegos e aversões. Aqui a dor é sentida, o coração trai, a voz trai, a fleuma trai, o humor cai... não gosto, estou oprimido, triste, muito triste, e vingativo, ou conquistativo, preciso vencer! Enraízo em árvore morta e não saímos para dançar quando Ele toca a flauta.

Ou seja, vem uma circunstância, uma pessoa, um barco na direção contrária, e perco a paz. Fecho os olhos e os ouvidos. Confusão. Tristeza. Que tragédia! Que conflito! Vivemos em conflito. Aí vem a Ana e diz: É possível viver sem conflito. E quantas pessoas vem ouvir o que ela tem a dizer? E dizem: oi, meu nome é conflito, me ajuda a sair dessa?

Oposição não é contra. Como posso compor com a força que me toca?

Numa aula da técnica Alexander pude ter uma percepção disso. Era um jogo, uma brincadeira. Uma pessoa tenta levantar e a outra vai tentar, com todas as forças, empurrando-a com as mãos, não deixar que ela se levante. Aí a pessoa de início começa a tentar ir na direção contrária a outra. Uma briga. E corre o risco de sucumbir. Pode até vencer mas terá de fazer muito esforço. Mas quando percebe que ao invés de ir contra pode se apoiar na força do outro... ela vai pra um lado, pro outro e vai compondo com a força do outro que o impulsiona para cima.

É o que ensinam as artes marciais: use a força do outro a seu favor.

Então a conclusão é: não existe contra. Tudo que chega até mim é a favor da vida. Tudo é um presente.

Desde que você encontre as novas sinapses. Novos caminhos neurais, novos caminhos musculares. E que pare de brigar.

Isso não significa que não tem emoção, que não tem desafio, que não tem frio na barriga...

Não é tudo ao simples apertar da tela. O músculo vai tensionar mas você pode perceber a tensão e ir reduzindo. E observando e encontrando outro caminho e outras composições na relação. Nada a fazer. E daí surge uma ação.

Por que isso é revolucionário?

Lao Tsé e Chuang Tzu estão para Confúcio assim como...

O nada a fazer só é revolucionário se ele nasce do distencionamento e não de uma busca de adequação à ordem do céu e da terra segundo a tradição. Em outras palavras, abrir mão do alvo mas não deixar de alegrar-se com o tiro. O arqueiro atira sem alvo nem mira...

Inibir a intenção, a ambição, o propósito maior... o que vem?

Entre o arqueiro e o alvo há muito caminhos. Entre a raquete e o outro lado da mesa a bolinha pode fazer quase infinitas trajetórias. Entre eu e você... entre eu e Deus... ô... tem caminho pra esse trem.

Voltemos a nos perguntar: por que escrever?

Quais assuntos, quais caminhos, quais palavras, quais referências de fundo?

Na famosa história da Chapeuzinho Vermelho aparecem dois caminhos. O que ela faz e o que o Lobo faz para chegar antes. A casa da vovó é um cruzamento de caminhos. Que caminhos outros a história não descreve? No encontro com o Lobo, Chapeuzinho vive uma transformação (a perda da “inocência”), uma nova fase de vida, uma iniciação... e abrem-se ainda outros caminhos a partir dali. 

Quem conheceu uma Chapeuzinho na vida real sabe que ela começou a ir muito mais longe do que a casa da vovó. Quem te viu quem te vê... Tem umas até que começaram a correr com os lobos...

A vida é feita de encontros, de encruzilhadas, de iniciações dentro de iniciações.

Não vou andar. Ando. Não vou sentar. Sento. Não vou escrever...

Comecei essa série de textos no início dessa jornada entusiasmado com a redescoberta da paixão pela escrita e a possibilidade de me dizer: sou escritor.

Depois de 36 textos escritos com o corpo, chego ao final da jornada abrindo mão dessa posição profissional. Não é possível ser escritor, para mim. Ter uma cadeira confortável (dessas que giram) na sede do Jornal do Brasil, beber cafezinho no corredor com os demais jornalistas (que era assim que nasciam para a fama os escritores que eu amava ler) nada disso é possível para mim que abri mão da escrita como um lugar de chegada.

Eu não sou escritor.

Eu só escrevo de passagem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário