sábado, 4 de julho de 2020

Pingue-pongue de emoções



Quando decidi que durante minha participação na Jornada eu escreveria um livro, assumi um compromisso pessoal de relatar os processos que estariam vivos em mim.

Por isso, lá nos primeiros textos que compõem essa coleção, deixei claro que eu não iria fazer resumos das falas dos encontros, e que por vezes traria para cá alguns temas, de certa forma, independentes.

De todo modo, tive a certeza de que estaríamos sempre em diálogo. Mesmo que eu não participasse de um encontro, e nem o assistisse depois, algo invisível estaria nos ligando. E os temas estariam relacionados.

Mesmo que eu não explicitasse as correlações, mesmo que eu mesmo nem soubesse conscientemente essas relações, algo oculto estaria sendo lido, afinal você que está lendo é autor/autora do que você está pensando agora. Então tem sua própria criação acontecendo junto.

E um dos processos que estão muito vivos aqui em mim é minha relação com o pingue-pongue.

Aqui na Vila XI tem uma mesa e temos jogado com frequência. Uma frequência crescente nos últimos dias.

Meus amigos aqui são bastante competitivos no jogo. É uma batalha muito feroz. Nos envolvemos intensamente nas partidas de 21. Às vezes jogamos 3 sets. E depois ficam aquelas provocações e brincadeiras gostosas de quem ganhou e quem perdeu. Essas coisas muito humanas e que a gente vai aproveitando pra olhar também pras emoções que nos envolvem.

Como é perder? Como é ganhar? Como é errar?

Como é o medo de perder? Como é o medo de ganhar e estremecer a amizade?

Uma das coisas fascinantes do jogo é que ele se alimenta na relação.

Quando um joga bem, estimula o outro a jogar bem também.

E aqui um de nós começou inclusive a ver uns vídeos e a estudar. E tem treinado cortadas e o jogo de todos foi ficando melhor.

Nos últimos dias começamos a conversar e filosofar um pouco sobre o jogo.

Existe uma dimensão meditativa do jogo. Exige muita concentração. Uma distração e você erra a raquetada. Bola fora, bola na rede.

Portanto, concentração é um requisito. A gente tem pensado na força dos orientais nesse esporte.
Uma concentração de base para que o movimento aconteça para além do pensar. O corpo, o braço, a mão, a raquete como extensão do corpo, e a bolinha com a força, direção e efeito, que vem do oponente... não dá tempo de pensar tudo isso. Se pensar, erra. Pensar é distração. É um jogo que acontece não no pensamento, mas num fluxo de movimento e integração.

Emoção. Corpo. Presença. Intensidade. Concentração.

Esse tem sido o meu ciclo virtuoso no jogo. Eu sinto muito medo. Minhas pernas tremem. Minha mão treme um pouco também. Seja no jogo, seja quando tenho de pegar a bolinha que cai no chão. Respiro. Não acalma totalmente. Fica o medo. E eu estou afirmando o medo para mim. Reconhecendo ele. Dando risada para ele. Jogando com ele.

E quando eu começo a ganhar ou faço jogadas incríveis ou as famosas “casquinhas” de pura sorte (ou às vezes admirando a jogada do outro) me vem vontade de rir. E estou rindo, expressando alegria. Deixei de lado aquele jogo de: melhor não rir para não mostrar ao adversário e vai que ele ganha e depois seu riso fica no chão. Estou aceitando, acolhendo e expressando o riso e o medo. Hoje, numa das partidas, senti vontade de chorar. Não entendi o motivo. Achei que meu amigo poderia estar triste, sei lá. Comecei a achar que o jogo poderia ser um processo de cura, mas não aprofundei. Não dá tempo. Deixei o choro vir. Ele não veio mas senti a emoção que estava nele. Continuei assim jogando, assim sentindo. Jogo da integração.

Uma integração com os elementos do jogo, com sua geometria e com o próprio amigo que está lá do outro lado e como tudo isso que há do lado de cá, nesse infinito particular.

O pingue-pongue ensina muita coisa. Uma delas é sobre impermanência. Ora a gente tá naquela alegria, acertando as bolas. De repente começa a errar. Ora ganhando, ora perdendo.  

A dimensão do mistério começou a se mostrar para mim.

Mistério 1. Numa das partidas tivemos uns rallys tão intensos e tão disputados que foi uma alegria o simples fato de jogar. Perdi a partida mas saí absolutamente feliz do jogo. Puxa, valeu! Dissemos um para o outro. Fiquei assim perplexo comigo mesmo. Entrei no jogo para ganhar. Lutamos um contra o outro com nosso melhor. Perdi. Mas foi um jogo tão legal que tudo bem ter perdido. Isso foi uma grande novidade para mim. Toda vez que eu começava um jogo e dizia: posso perder que tudo bem. Isso era uma frase da boca para fora. Mas... aconteceu! Foi uma experiência que trouxe esse prazer. Esse, não vou dizer desapego, mas essa outra perspectiva do jogar.

Mistério 2. Comecei uma partida e tive a percepção de que a força do meu adversário estava vindo para mim. Isso é muito subjetivo, mas foi assim que senti. Há um mimetismo. A gente começa a jogar um pouco parecido com o outro. Senti como se quando entrássemos em jogo houvesse essa troca de forças, esse partilhar, na verdade. Estamos falando de algo que tem sido dito na jornada, não é mesmo?

Mistério 3. Hora da meditação. Sentei para meditar. Meditação silenciosa. De repente minha mente começou a pensar em pingue-pongue. Eu comecei a achar graça disso. Mas vi que a coisa estava séria. Era como se meu cérebro estivesse aproveitando o descanso mental para “estudar” o jogo. Qual ângulo a raquete deve estar para rebater a bola que vem dessa direção, nessa angulação, com essa intensidade? Eu não pensava essas coisas assim mas vinha como um desenho na minha mente.

Loucura! Além de achar engraçado o fenômeno, tentei “cortar” o pensamento trazendo seriedade a meditação: puxa, o que estou buscando aqui? Eficácia, vitória? Estou meditando para me tornar um bom jogador, ou para encontrar paz? Estou entrando nessa onda midfullness, medite para obter sucesso?

Tive uma pequena crise com essa história, mas resolvi relaxar. Observar. A mente silenciou. Mas fiquei e ainda estou atento ao processo.

Mais tarde fomos jogar. Comecei a ganhar. Ganhei uma. Ganhei outra. Não perdi mais. Meu Deus! O que está acontecendo? Quando vi meus amigos jogando entre si, cortadas fulminantes, jogo forte, eu olhava de fora e pensava, nossa! Não tenho como ganhar desses caras. Aí quando comecei a jogar, comecei a ganhar.

Fui percebendo essa força além do pensamento. E falei: isso vai virar texto para a jornada.

Tem tudo a ver.

A gente não antecipa o futuro. Não sabe como a gente vai atuar quando entrar no "jogo". A gente vive o presente, a situação como ela se apresenta. E se a gente está inteiro naquilo, com alegria, com amor, olhando pras emoções a gente alcança um estado muito além do que a gente imagina sobre nós mesmos. Na verdade, nem posso dizer "eu mesmo". No ato, ultrapassamos o "eu mesmo". Somos algo mais. Eu ganhei. Mas terá sido eu mesmo? Onde está o eu? Que é o corpo? Que é a força atuando ali no jogo?
   
Filosofia sobre pingue-pongue. É o texto de hoje. Pingue-pongue zen.

Mistério 4. Bom, esse quarto mistério eu não quero contar ainda. É um pequeno segredo. Parece que descobri uma arma secreta. Talvez eu conte um dia. Deixa eu testar mais um pouquinho para ver seus efeitos.


E que eu me lembre da impermanência. Amanhã é dia de ganhar e perder. E tudo bem.

Agradeço pela partida. Quero dizer, pela leitura.

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