quinta-feira, 18 de junho de 2020

A terceira mão


Seguimos na jornada da travessia.

Já uma mês e meio se passou. E nos últimos dias o foco lá em casa foi arrumar as coisas para viajar para Piracaia.

Sim, a travessia para nós foi também uma travessia de casa, de estrada, de amigos, de cidade, de paisagem, do virtual para o presencial.

A gente começou com a rotina de três vezes por semana ir pro cantinho lá da nossa casa e ouvir o encontro com a Ana pelas manhãs. Ao longo dos dias íamos vivenciando, experienciando os processos... 

E aqui esse livro vai sendo escrito com essas vivências e criações. Escrever como ato!

Enquanto escrevo sou. Quem sou? Que força é essa que sinto quando entro aqui em processo nessa arte de criar pensamentos? Hoje em dia, usando teclado do computador uso duas mãos para escrever. Mas sinto que existe uma terceira mão. A que me impulsiona a um pulsar, contemplar, criar... tudo isso ao mesmo tempo. Será essa a mesma terceira mão que nos empurrou para cá?

Em nós, já desde antes, estava a vontade de estar lá, ou melhor, aqui. Especialmente quando Ana e Fábio abriram as conversas sobre a Vila XI, um espaço de moradia, convívio e... principalmente: serviço.

Serviço à terra. 

Tudo que estamos trabalhando na jornada tem a ver com a arte de escutar. Escutar o outro, escutar a si, escutar a vida.

Escutar os velhos padrões da mente, dos sistemas, dos enredos que ficamos mestres em contar enquanto nos enredamos em ciclos de sofrimento e esquecemos de olhar o real.

E qual o fazer emerge da escuta?

Foi então que ouvi Ana e Fábio falando sobre a necessidade do serviço.

Tão simples, tão antigo, e tão original nas conversas... (a gente quase nunca ouve a Ana falar disso. É claro, a toda parte há gente falando em servir, mas acaba que o serviço nasce de uma motivação moralista, dualista, cheio de segundos interesses... quando é que o serviço nasce genuíno?)

Desconstrói, olha o conflito, integra, olha a dor, integra, desconstrói, desfaz certezas, esvazia, desilude, esvazia... e o que fica? 

Servir.

Servir a quem? 

Qual o serviço que não entra na roda do sofrimento e termina por servir a manutenção do sistema de opressão? São questões que me tocam nesse momento de crise com a profissão.

Como saber?

Não é questão de saber... é questão de ouvir... ou melhor de se deixar empurrar pela terceira mão.

Nessa semana ouvi a história da iluminação de Kuan Yin.

Quando jovem, Miao Chan, contraria a vontade de seu pai, um rei cruel, e consegue evitar o casamento e adentrar num monastério. No entanto, o rei faz de tudo para prejudicar seu caminho: pediu que dessem a ela os piores serviços. Quando o pai soube pela superiora do convento que uma força divina ajudava sua filha a manter a diligência no serviço, ele ficou furioso e mandou incendiar o mosteiro com as monjas dentro. Porém, uma tempestade debelou o fogo. Depois mandou executar a jovem, mas no momento da execução a espada do algoz se partiu ao meio. E outras armas também ruíram. Até que um tigre celestial leva o corpo inanimado da moça e a leva ao interior da floresta onde é recebida por um ser celestial, vestido de azul. Juntos fizeram uma jornada aos infernos para que os espíritos em sofrimento pudessem ouvir as orações da jovem. E o inferno se transformou num paraíso de alegria. Instrumentos de tortura se transmutaram em flores. Por fim a alma da jovem volta ao corpo na floresta e o Buda aparece para ela e a convida a um mosteiro antigo numa ilha, habitada por imortais. Após 9 anos ela atingiu sua meta e foi entronizada para que o mundo pudesse se beneficiar de sua iluminação. Proclamada soberana do céu e da terra, e um Buda, recebeu seu novo nome: Kuan Yin. Com seu poder de devoção e propensão ao sacrifício ela transformou seu pai, de um rei tirano a um homem compassivo. E sua mãe também se tornou sábia.

Essa história tem muito detalhes, aqui é só um resumo.

Mas um deles me marcou muito.  

Quando jovem, ao recusar o pedido de seu pai para se casar ela disse:

"Meu desejo é curar a humanidade de todos os seus males, por meio da bondade."

A terceira mão.

As duas mãos calculam, pesam, conversam, analisam. Agem, colhem os frutos. Vêem as polaridades. E até se juntam trazendo um vazio criativo no centro. Mas existe uma terceira mão. Em mim, sinto que ela me empurra mais ou menos no meio das costas. Impulsiona meu tronco ligeiramente a frente ao passo que sustenta a coluna. Sutilmente abre o coração que se ilumina de uma alegria quente como o sol no fim de tarde. Me faz acreditar no amor ou algo que tenha um nome para isso. Me faz confiar na vida e que tudo vai dar certo. Me empurra em direção a bondade. Pelo menos até aqui ela nos trouxe. Vamos ver até onde vamos.

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