domingo, 28 de junho de 2020

Sobre a tristeza


Entristeci-me ao ser lembrado de que há gente com mais facilidades de dizer não.

Lembrei-me dos privilégios sociais que usufruo.

As situações que não precisei passar, e que a maioria das pessoas passa todos os dias.

Nesses meses de jornada muita coisa fui olhando aqui.

Tem uma coisa aberta ainda. Uma "ferida acesa" que trago no coração.

"Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão."

Vejo essa condição social a minha volta e me faço o seguinte exercício: será que eu conseguiria trocar de posição social?

Servir ao doutor? Servir a patroa? Humilhar-me para favorecê-los em seus luxos? Ter de oferecer meu corpo além dos limites de meu consentimento?

"Você morreria de indignação", disse minha companheira.

Será mesmo impossível? Será mesmo que estarei sempre preso ao lugar social, determinado pela cultura e pela história de onde nasci?

Olhei pra isso que chamamos vida social. Sentei no ponto de ônibus. E ali fiquei. E ao longo do dia foram passando pessoas. Homens, mulheres, jovens, idosos... E eu ali sendo visto por cada uma delas. Como me tratam?

Senhor.

Não só pela idade. Mas pelo status que aparece ao nosso imaginário coletivo.

Marilena Chauí diz com Espinosa que não somos uma democracia justamente pela cultura da distinção que marca as aristocracias.

Não tenho como disfarçar. Está no gesto, no jeito de sentar, na angulação do olhar, na roupa, no corte de cabelo, e, se eu abrir a boca então! Está no tom de voz, na melodia da fala, e as palavras denunciam uma escolaridade... doutor, professor, senhor. Essas pessoas não me veem como um igual. Com admiração, desprezo, inveja ou ódio, sou o outro.

Quem são?

Na rua, com o pessoal que mora na rua, gosto de estar de chinelo. Um dia um moço me disse: não adianta disfarçar, irmão. Você vai ser sempre diferente, vai ser sempre o professor. Entendi o recado. Continuei usando chinelo porque gosto. Mas não tento disfarçar. E mesmo na noite que fui dormir na rua pra conhecer seu cotidiano, pude ouvir: "não vai ser igual. Você vai saber como é dormir na rua. Mas não vai saber nunca como é dormir na rua sem ter mesmo pra onde ir, machucado pelo mundo que você teve de deixar pra trás, abatido pela depressão."

Quem sou?

Desde pequeno me sensibilizo com esse recorte social.

"Se tremes de indignação perante uma injustiça no mundo, então somos companheiros."

Por séculos, pensamentos e ações revolucionárias olharam para isso. Não sou o primeiro.

Sofri de TRH (transtorno robin hoodiano)... aquela vontade de distribuir a riqueza... que nos tempos atuais significa entrar no sistema, ter uma profissão legal e fazer algo com impacto, seja na cultura, seja na economia, seja no pensamento: "I have a dream today!"

Meus heróis não morreram de overdose. Morreram assassinados.

Como pode um ser humano mandar no outro?

Lembro do dia que entrei empolgado num mosteiro franciscano para ver de perto a vida dos seguidores de um homem inspirador que abraçou a pobreza para encontrar liberdade. Quando cheguei vi um homem varrendo o chão. Mas ele não era um irmão da Ordem. Até que um irmão veio para me receber e apresentar o mosteiro. Eu perguntei: e aquele moço? É funcionário. Mas porque vocês não varrem? Se eu tivesse que varrer eu não poderia estar aqui conversando com você. Fui embora. Não engoli a justificativa que me fez ver como a Ordem compactuou com a escravidão e o patriarcado em meu país. Não é à toa que se chama Ordem.

Tudo isso está no meu caminho de vida.

Só que agora na jornada tudo isso ganha uma nova perspectiva.

E estamos justamente entrando no tema Trabalho.

Como ser útil e fazer o que gosto? Essa a pergunta dos coachings e aqueles que falam sobre propósito.

Mas vem a Ana e nos convida a abrir mão de ser útil.

Fiquei até sem pergunta.

E abrir mão dos conceitos. E tudo isso que escrevi até agora é um olhar conceitual sobre realidade.

Como se eu tivesse armado todas as peças do jogo de xadrez, me preparado para jogar e a pessoa vem e diz: não, vamos jogar pingue-pongue. Então, não só cai o Rei, mas todas as peças são derrubadas ao chão.

Ela nos convidou a abrir mão das finalidades.

Ter um trabalho para mudar algo? Não! Abra mão das finalidades. E sem medo disso te deixar indiferente. Pelo contrário. Abrir mão dos conceitos, finalidades e até mesmo do sentido de vida vai te abrir caminho para se relacionar.

E o que fazer?

Nada. Observa o sentir. Da pele para dentro.

Meu sentimento é de tristeza quando vejo uma pessoa trabalhando e calando seu cansaço pelo medo do patrão. Sua voz silenciada.

Triste.

Triste. Não vivi os abusos que as mulheres sofreram. E entristeço pelas suas dores e por fazer parte desse sistema.

Triste. A violência racial. O preconceito me entristece. A violência estatal contra os pobres. O silenciamento brutal. O assassinato das crianças negras e pobres.

Triste. O mundo do trabalho ainda é anti-vida.

Triste. "Não me resigno, a fome será vencida."

Triste de ver armas, guerras e soldados treinando em escolas militares.

Tristeza.
Estou aqui te olhando.
Que não seja a tristeza burguesa, conceitual.
Mas a tristeza aqui dentro do corpo.
O que faço com essa tristeza?

Nada.

Hoje bati a enxada com força na terra.
Tinha música de capoeira ao fundo.
O professor de capoeira nos convidou a cuidar da terra.
Não fez nenhuma evocação. Mas não era óbvio que estavam conosco ali nossos ancestrais no terreno simbólico do trabalho na terra?

Tristeza. Bati com força na terra. Não pra tristeza passar. Bati. Cavei. Sonhei com o plantio numa terra cansada de tanto gado, e gado cansado de tanta escravidão.

Renée pediu para Jiddu falar sobre a teoria do big bang para seu livro sobre ciência e meditação. Ele disse: "Se meu filho ou meu irmão acaba de morrer não estou disposto a falar sobre big bang com você. Dê-me mais alguns dias, cara amiga, pois agora estou chorando, estou sofrendo, meu interesse é este, não aquele."

Tristeza. Fui lá na casa da Maria e do Zé e tomei café e pudemos conversar de igual pra igual.

Tristeza, fiz de suas palavras minha poesia.
Tristeza, de meus erros me trouxe até aqui,
Tristeza fonte de meu amor secreto.

Amiga, amigo, escuto toda essa nossa tristeza
Devolvo ao mundo atos de amizade.

"Pra onde eu vim não vou chorar.
Já não quero ir mais embora
Minha gente é essa agora

Se estou aqui, trouxe de lá
Um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar."
(clique aqui para ouvir musicado)

"Poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação.
Um poeta satisfeito não satisfaz."

"O mais triste de um passarinho engaiolado é que ele se sente bem."


citações fora da ordem:
Chico
Mario
Jiddu
Ana
Che
Caetano
Gabriela
Martinho
Herbert
Milton

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