sábado, 6 de junho de 2020

Nosso ato político



Olhando para essa foto, eu menino, 10 anos, ao lado do Lula. Vejo a expressão de cansaço físico. O esgotamento das forças físicas num dia, lembro bem, de muita caminhada, comício, conversa... campanha eleitoral é um dia atrás do outro de muito movimento, pouco descanso, muitas trocas, muita energia. Muito esforço, muito sonho. A alegria da alma de entrar numa luta que vale a pena. Dentro de nós existe esse lugar: a boa briga.

10 anos.
20 anos.
30 anos.
40 anos: fui com um grupo do Yoga de Rua participar do retiro de silêncio, meditação e técnica Alexander no M.U.D.A, em Piracaia - SP. Uma semana juntos com outras pessoas de diferentes lugares. E ali, misturados, eu e o nosso grupinho de 5 pessoas incríveis que tinham em comum a experiência de viver na rua.

Para mim, organizar essa ida do grupo para aquela vivência, que alguma coisa produziria em sua jornada de vida, era o mais potente ato político que estava em minhas mãos realizar. Valeria todo o cansaço.

Um dos participantes era o Fênix (nome ficctício).

Lembro dele nos grupos do café da manhã ali do Flamengo - RJ. Depois lembro dele numa meditação que a Ivana conduzia semanalmente às seis da manhã no Aterro do Flamengo, perto do aeroporto (cartão postal do Rio). Ali conversamos e fui com ele até a casa da ex-mulher ver as filhas, e até a casa da mãe e da irmã. Fomos ficando amigos...

Que história é essa de meditar e fazer yoga com as pessoas na rua? É onde chegou a minha história com a política. Desde 1989... eu segui um caminho de fazer política. O Lula seguiu o dele. Ambos temos uma coisa em comum. O gosto de entrar em boas brigas. A minha briga foi com a falsa verdade estabelecida de que as pessoas que moram nas ruas não são pessoas. Não parariam para meditar e fazer yoga, por exemplo.

Outra verdade até então aceita é que yoga é coisa de ricos, no Brasil. Eu não tentei convencer ninguém. Não fiz nenhuma manifestação, nenhuma pressão parlamentar, nenhuma reunião com ninguém influente. Não fiz parcerias com empresas, nem governos, nem fundei nenhuma ong. Fui lá e vi que era possível fazer. Tinha grama, nem tapetinho precisava. E não fiz porque queria ensinar nada, nem provar nada. Eu estava praticando yoga diariamente e estava vinculado a essas pessoas numa atividade em comum que era o café. Daí, desse vínculo e da minha cabeça vazia e das minhas angústias de que o que estávamos fazendo ali era pouco, nasceu a ideia. Ofereci partilhar o que eu sabia, convidei-os a praticar comigo, mesmo eu não sendo professor.

Essa foi a potência política completamente fora do que eu esperava quando comecei esse caminho lá atrás, sonhando em mudar o mundo, aos 10 anos. Eu fui caminhando pela vida, buscando saber e descobrindo o não saber, entrando e saindo de ideologias e crenças, me esvaziando de expectativas e de presunção e fui ver que eu já não era mais um professor dando aulas, mas o amigo querendo ter práticas em grupo. Juntos, tivemos ótimos professores. De graça. E até hoje eu não sou professor. É maravilhoso não precisar ser professor.

Que impacto esse tipo de política pode ter no mundo? Não sei. É o que esteve nas minhas mãos fazer. Foi o meu caminho. Claro que, para mim, não era só fazer yoga com as pessoas. Era, de algum jeito, dentro da minha leitura do mundo, ir lá na ferida social, e atuar a partir dali. Diante do imenso... fazer algo que esteja ao meu alcance. De outro jeito que não só o assistencial. E escrevi e falei sobre isso ao longo de tempo. (Não tenho planetas na casa do voluntariado, estão todos na casa da ação no mundo... ainda vou entender melhor o sentido astrológico disso)

Quando o presidente dos Estados Unidos se encontrou com Teresa de Calcutá a conversa foi assim:

"Madre! Que trabalho maravilhoso a senhora faz. Eu gostaria de fazer o que a senhora faz."

E ela respondeu:

"Você não pode fazer o que eu faço. Mas eu também não posso fazer o que o senhor faz. Se o senhor for um bom presidente, o mundo se beneficiará imensamente."

Ali no retiro, cada um com sua individualidade... foi maravilhoso poder ter essa troca. Adoraria falar de cada um aqui. Quem sabe numa conversa futura. Voltemos ao Fênix.

Num dos dias do nosso retiro, o grupo estava todo na Redonda (sala de práticas) e com as conversas e os processos acontecendo, o Fênix demonstra estar bem contrariado e fala: "o problema de vocês é que vocês estudam demais." Ele quase sai da sala mas a Ana conseguiu continuar a conversa, e foi contando de sua história, da relação que ela tem com a escolarização, da admiração que tem pelo Sr Antonio, do Cariri, que não sabe ler etc. E fomos chegando a um trabalho coletivo das emoções ali presentes.

No dia seguinte, ao amanhecer pude ter uma conversa com o Fênix onde ele me contou um pouco mais de sua história (depois ele contou essa história na Redonda). As violências que ele e a família sofriam do pai, o caminho que ele fez no tráfico de drogas, as situações em que quase morreu, as situações em que pode salvar vidas, como foi poderoso ali naquela cultura do crime na favela e depois como foi saindo e como foi parar na rua, e as filhas que teve, e o fato de nunca ter batido em nenhuma delas... e todo aquele universo das periferias das grandes cidades, na voz de quem vive aquilo tudo na pele.

Aquele história não só foi ouvida. Mas fez parte dos processos de integração de todos os participantes sob a condução da Ana, e das meditações da vacuidade e da interexistência, com a Cuca e a Guida. Muitos de nós tivemos pesadelos, mergulhamos nesse mal estar contemporâneo, nossas estruturas, nossa cultura...

Como é fazer parte desse mundo num lugar de privilégio? Como, mesmo assim, integrar e voltar a si e se abrir ao que surge como ação?

Como é sentir-se impotente para mudar os rumos dos acontecimentos? O que se faz depois disso que não nasça da impotência nem da busca pelo poder, mas da integração da polaridade?

Quais as ações políticas que nos cabem?

Nessa jornada da travessia estou lembrando de tudo isso e sentindo que estou num caminho de volta à política. Uma volta de onde eu nunca saí. Mas tem algo mudando... não sei o quê?

Estou processando aqui dentro, tudo isso.

Diante de tantas notícias recentes, trazendo à tona nossas cotidianas opressões e estruturas racistas, machistas, nossa devastação das florestas e dos ambientes naturais, nossa invasão das terras indígenas, nosso descaso com a guerra civil contra as pessoas das favelas, o descaso diante da desigualdade faraônica onde vivemos, o medo e o silêncio ante às questões de saúde  mental, a homofobia, a gordofobia e tantas outras xenofobias...

(Li que a travessia do povo judeu no deserto tinha como ponto de partida a intolerância ao nível de desigualdade e opressão política sofridas nas grandes cidades de então. O índice de desigualdade naquele tempo era semelhante aos índices brasileiros...)

Comecei a meditar através dos livros de um monge que, durante a Guerra do Vietnã, propunha uma espécie de budismo engajado. Em resumo: meditar, sim, indo para dentro, mas sem perder o vínculo com o mundo fora. Meditar como uma forma de integração entre eu e o mundo.

Lá no nosso retiro lemos um poema do Thich Nhat Hanh que vou transcrever aqui para vocês. Ele escreveu esse poema depois de ler uma notícia muito devastadora, um momento de grande horror, um pirata que estuprou uma menina que, com a família num barco, assim como muitos outros barcos, tentavam fugir de um campo de refugiados na Tailândia, e se arriscavam não só a naufragar como a sofrerem esses ataques piratas. A menina tinha só doze anos, jogou-se no mar e morreu.

Ele diz que a tendência é tomarmos partido contra o pirata e ficar do lado da vítima. Mas, meditando viu mais profundamente que se tivesse nascido na mesma aldeia que o pirata, vivido sob as mesmas condições que ele, ele também muito provavelmente se tornaria um pirata. E que se nada for feito, daqui a alguns anos as crianças que nascem lá poderão se tornar piratas também. Simplesmente atirar no pirata não resolve o problema, é atirar sobre nós mesmos.

Lemos esse poema, lá no retiro, pensando nos policiais e traficantes do Rio de Janeiro. E cada um ali, a seu modo, ampliando e pensando nos atores desse estranho drama que vivemos, com suas vítimas e seus culpados.

O poema se chama, "Por favor me chame pelos meus verdadeiros nomes" (clique aqui para ler o capítulo completo do livro onde aparece o poema)

Chamem-me pelos meus verdadeiros nomes
Não digam que parto amanhã
Porque hoje estou ainda chegando.
Olhe bem, a cada instante estou chegando
Para vir a ser botão de flor em ramo de primavera
Para ser passarinho de asas frágeis
Aprendendo a cantar em meu novo ninho,
Para ser lagarta na corola da flor,
Para ser gema oculta na pedra.
Estou ainda chegando para rir e chorar,
Para sentir medo e esperança
O ritmo do meu coração é o nascimento e morte
De tudo o que vive.
Sou a libélula em metamorfose
Em vôo sobre as águas do rio
E sou pássaro que se lança ao ar para engolir a libélula.
Sou rã que nada descuidada
Nas águas claras da lagoa
E cobra que em silêncio se alimenta da rã.
Sou a criança em Uganda, só pele e osso
Minhas pernas como gravetos
E sou o traficante que vende armas para Uganda.
Sou a jovem púbere
Que escapa em uma balsa
E que, violentada por um pirata, lança-se ao mar
Mas sou o pirata ainda incapaz de sentir e de amar
Minha alegria é como a cálida primavera
Que faz florescer toda a Terra.
Minha dor é como um rio de lágrimas,
Tão vasto que enche os quatro oceanos.
Chamem-me pelos meus verdadeiros nomes,
Para que eu possa despertar e enfim escancarar
Em meu coração as portas da compaixão.
Meditar é um ato político.

É um ato político escrever o poema.

Qual ato político nascerá do seu mergulho interior?

Olhando aqui para meus processos, vi meus sentimentos de impotência diante das coisas do mundo, vi que, em mim, a polaridade da impotência era o poder. Qual o bom de se sentir impotente? Me exime de uma certa responsabilidade, bem deixa livre para "viver minha vida". Qual o ruim de adquirir poder? Ter que assumir as consequências, o poder traz limites. Vendo o bom da impotência e o ruim do poder... pude abrir mão do poder. "Eu abro mão do poder". Volto-me para a política do corpo. Meus pés se energizam, assim como minha cabeça. Daí o que me vem?

Me lembrei da leitura que fiz de um livro do Swami Vivekananda, Karma-yoga: o caminho da ação, no capítulo Liberdade:

"Os grandes seres humanos morreram incógnitos.

Os Budas e os Cristos que conhecemos são apenas heróis de segunda classe quando comparados com os grandes seres humanos de quem o mundo nada sabe. (!!!)

Centenas desses heróis viveram em todas as nações, trabalhando em silêncio.

Silenciosamente vivem e silenciosamente morrem; e a seu tempo, seus pensamentos encontram expressões em Budas e Cristos, e são esses os que mais tarde se tornam conhecidos para nós. (...)

Eles, os puros sattvikas, jamais criam alvoroço e se derretem no amor.

Conheci um yogi assim em uma caverna na Índia. Ele é uma das pessoas mais maravilhosas que conheci. Perdeu tão completamente o senso de sua própria individualidade, a ponto de podermos dizer que a pessoa que havia nele se foi por completo (...) se um animal morde seu braço, ele está pronto a lhe oferecer também o seu outro braço (...) Ele não se mostra às pessoas e, ainda assim, é um repositório de amor e de ideias delicadas e verdadeiras. (...)

Os seres humanos superiores são calmos, silenciosos e desconhecidos. São os que realmente conhecem o poder do pensamento; estão certos de que, mesmo se entrarem em uma caverna, ali se fecharem, e simplesmente pensarem cinco pensamentos verdadeiros e então morrerem, esses seus cinco pensamentos viverão por toda a eternidade.

Na verdade, esses pensamentos penetrarão montanhas, atravessarão oceanos e viajarão pelo mundo. Entrarão profundamente nos corações e cérebros humanos, despertando homens e mulheres que lhes darão expressão prática nas ações da vida humana."

Ouço isso... olho para a foto lá de cima e me pergunto se o que estamos, aqui e agora, fazendo é política.

8 comentários:

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  2. Que presente! ❤️ Obrigada André!!

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  3. Maravilhoso. Obrigada André por trazer a meditação de graça.

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  4. Com certeza, André, o que estamos, aqui e agora, fazendo é politica... numa dimensão, que muito além de política partidária, engloba todos os nossos atos e vivencias como seres conscientes em construção.
    Gostei muito, adorei.

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    1. Parece que houve aí 👆🏽👆🏽👆🏽 erro de usuário ou publicação. Peço desculpas, e por favor corrigir.
      Obrigada. Mila - mariamilapaul@gmail.com

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  5. Com certeza, André, o que estamos, aqui e agora, fazendo é política...numa dimensão,que, muito além de política partidária, engloba todos os nossos atos e vivências como seres humanos conscientes em permanente construção.
    Gostei muito, adorei!

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  6. Por favor, parece haver erro 👆🏽👆🏽👆🏽 de usuário, desculpe... peço corrigir.
    Mila - mariamilapaul@gmail.com
    Obrigada!

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