sábado, 20 de junho de 2020

Nem egoísmo, nem altruísmo.


Sento para meditar.

Observo a respiração.

Vem pensamentos. Alguns ignoro e volto a respiração.

Alguns olho, desenvolvo, descubro a polaridade, olho ambos em mim. Respiro.

A mente esvazia, volto para a respiração.

Assim vai, respiração, pensamento, respiração, integração, respiração.

Até que me chega um momento, sem planejar, se esperar, me pego sentindo uma brisa fria e gostosa em minhas mãos.

Esqueço a respiração, esqueço os pensamentos, fico ali no friozinho visitante.

Quem é você?

O vazio, o frio, a mão, o agora.

* * *

O grupo da jornada finalmente pode se encontrar. Num lugar sem tempo e sem espaço, Ana convidou o grupo para fazer uma trilha na floresta cujo destino seria o alto de um monte. "Vamos olhar a vista lá de cima" ela propôs.

Éramos mais de cem. Ao longo da jornada vinhamos aquecendo esse vínculo e o trabalho coletivo criou campo para esse encontro. Estávamos todos felizes, entusiasmados. Alegria e bate papo durante o início da caminhada. O sol, o céu, o frescor da mata a nossa volta. Íamos chegando a uma parte da trilha mais fechada. "Uma espécie de labirinto, Ana revelou, se viéssemos antes eu tenho certeza de que não conseguríamos achar o caminho. Mas agora eu tô sentindo que a gente está preparado. Mas estar preparado não é garantia. Para onde vamos não há planejamento que nos garanta o sucesso. Vamos ter que atualizar constantemente."

Dizendo isso deu aquele senso de aventura e mistério, que ela costuma dar criando campo para uma abertura no grupo, abrir mão das respostas prontas. Uma trilha sem mapa. Vamos precisar ler nossos instintos. Farejar o caminho. Perceber o movimento da emoção.

Movimento conceitual.

Movimento da emoção.

Quando seguimos o movimento conceitual, é o caminho da razão, da matemática. Isso tem sua graça. Uma boa partida de xadrez é um embate matemático. O equilíbrio das peças, as regras dos movimentos, o que pode, o que não pode, e o jogo vai se estabelecendo num equilíbrio de ataque e defesa, de disputa equilibrada por posições. Até que um dos oponentes vence uma batalha. Toma uma peça de valor. Desequilibra o jogo e daí em diante a tendência é ganhar. Num jogo de mestres, assim que perde uma peça importante, o adversário já desiste. Não é fraqueza. É que matematicamente o jogo está ganho. Não tem distrações. O jogo está definido.

Levamos a vida no movimento mental. Estamos acostumados a ele. Mas isso não nos garante a vitória sobre a confusão, a desconexão, a doença, a ignorância, o sofrimento. Porque o movimento emocional tem suas próprias leis e quando nos deludimos com o atraente jogo mental, nos esquecemos dos caminhos do sentir. Deixamos as sensações, o corpo, e os sentimentos em segundo plano e seguimos mentalmente em busca das segundas intenções, já que as primeiras estão escondidas para nós mesmos.

Então o convite da jornada tem sido seguir, ver de perto, olhar, para os movimentos da emoção.

E quando a Ana nos convidou para essa trilha disse que teríamos de acessar esse movimento, farejar o caminho, permitir-se sentir. Essa coragem envolve admitir coisas que não estaríamos prontos para admitir nem para nós mesmos. Ainda mais ali, no meio de cem pessoas. Deu medo. Mas deu alegria também. E a alegria foi maior do que o medo. Seguimos.

Chegamos a uma bifurcação. Um caminho da esquerda e um caminho à direita. O grupo parou. Cada um consultou sua intuição. Fomos pelo caminho da esquerda. Caminhamos, caminhamos, caminhamos. E a trilha nos levou a um paredão rochoso. A pedra que leva ao topo do montanha. Dava para ver o topo. Mas não tínhamos equipamento para escalar. Não era por ali. Tentemos a trilha da direita.

Voltamos e seguimos o outro caminho. Caminhamos, caminhamos, caminhamos. a trilha chegou ao fim num imenso precipício. Olhando para trás, dava para ver lá no alto o topo do monte. Mas ali era o fim da linha. Caso contrário a queda era certa.

Voltamos à bifurcação e meditamos. Fomos integrar as emoções que nos surgiram durante a caminhada nas duas trilhas.

Cada um fez o seu execrício de olhar as emoções.

Eu, que estava perto de pessoas que tinham filhos ou eram educadores, olhei para essa relação com as crianças.

Quero que a criança não passe pelas dores que passei. Isso me leva a um movimento de proteção. Essa é a trilha da esquerda. Tento ser bom para elas. Lembrei de uma cena que vi na infância que ficou marcada na memória. Foi a perda da inocência. Não quero que as crianças percam a inocência. Ajo marcado por esse medo. Minha bondade não é boa, é medrosa. Bato contra a parede.

Volto e trilho o caminho oposto. Quero que a criança faça o meu caminho. Aprenda o que aprendi. Passe pelo que passei. Na base de minhas ações tem uma emoção de raiva. Se sofri, que sofram também. Me vejo numa emoção de despeito. Reproduzo exatamente a violência que me fizeram passar. Isso é sem querer. Mas é esse o movimento da emoção. Eu não faço fisicamente. Mas minha garganta se entope, a mágoa aparece. E não consigo fingir. As crianças sentem. Caio no precipício.

Volto. Nem um nem outro. Medo caminha junto com abandono. Proteção com frieza.

Vi a criança numa relação em que ela era subjugada pelas mais velhas. Sofri com isso. Depois a vi com uma criança da mesma idade, de certa forma, mandando na brincadeira. Minha mente disse que isso também não era certo. Mas minha emoção me denunciou, sentindo uma alegria. Uma pequena vingança. Minha mente é Descartes. Meu coração é Shakespeare.

Uma vontade fraca. Uma vontade forte. O meu caminho, o outro caminho. De um polo a outro.

Estou ali com o grupo, diante dos dois caminhos. Nenhum dos dois nos levou ao alto do monte. Acho que era isso que Ana estava querendo nos mostrar com essa caminhada. Eu não sabia o que se passava dentro de cada um dos participantes ali. Mas a meditação foi ganhando um nível de silêncio maior, estava mais fácil concentrar e esvaziar.

Então me veio mais um pensamento. Na base de minha emoção está: eu quero ajudar. Quero que sigam meus conselhos, que minha intervenções sejam úteis. Quero um mapa. Um método. Bastaria repetir. Quero fazer o outro ver. Na base dessa emoção tem uma crença: Eu vejo, mas o outro não vê. Volto para mim: eu vejo e não vejo.

O que está escondido? O que me trouxe aqui?

Sigo a meditação, respiração, pensamentos, a montanha, atualiza, nem espontâneo, nem controlado, nem egoísmo, nem altruísmo.

Quero ajudar. Tenho medo de atrapalhar. Se atrapalho... Não sou legítimo . Pai é aquele que ajuda. Quando ajudo eu adquiro legitimidade. Revelou -se:

Eu busco legitimidade. Eu busco me tornar legítimo.

* * *

Marisa Monte gostou de ouvir uma pessoa desafinada. Ampliou-lhe as possibilidades musicais.

Desafinado. Afinado. Só conhecemos o canto afinado. O desafinado se cala. Outras tonalidades. Não conceitual. Não dá pra saber. Não dá pra explicar. Não dá pra traçar roteiro. Nada fazer. Fazer livre. Mas não um livre oposto ao padronizado. Um fazer. Não dá pra explicar. O jeito é confundir.

O mundo doente. Se estou bem estou mal. Se estou mal estou mal. Não há saída.

Escola. Fora dela sou louco. Dentro dela sou louco. Se a critico sou louco. Que fazer?

Não resolve. Dissolve.

Brisa fria em minhas mãos.

Acho que tenho poder. Rezo pelo outro como se fosse fazer alguma diferença. Não tenho poder. Me rendo. Rezo pelo outro e contemplo o poder inerente a vida. E os pássaros cantam. E a brisa das mãos penetra a perna.

E assim todo o corpo... vou sentindo o mundo sub atômico.

E, não sei como estava o processo de cada um ali na floresta, mas o fato é que todos ao mesmo tempo abrimos os olhos. À nossa frente já não havia mais floresta. Nem trilha da esquerda, nem trilha da direita. A floresta se abriu. Era um campo aberto. A montanha desapareceu! Caminhamos. Ocupamos o lugar onde antes era a montanha, olhamos para o alto e vimos as paredes da montanha. Entramos! Estávamos dentro da montanha! Que surreal!

Ali dentro a mesma pergunta nos contagiava: para que subir a montanha se podemos estar dentro dela?

E assim ficamos, contemplando o lugar que chegamos juntos.

No xadrez das emoções, a grande figura é o cavalo. Os bispos cercam a montanha pelas diagonais. Torres pelos lados. Rainha protege as peças. Os peões avançam. O rei fica resguardado. Mas só o cavalo pula. A peça que não anda reto. Salta para frente e para o lado. Nenhum trilha nos levaria até lá enquanto andássemos pelo caminho reto. O cavalo desorienta. Por isso cheque mate de cavalo é a maior elegância na tradição do xadrez. É o menos óbvio. E assim nosso grupo experimentou um elegante cheque mate. A travessia se completou. Estamos dentro da montanha. Para onde iríamos então?

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