quinta-feira, 25 de junho de 2020

Abuso sexual, medo do abandono e o despertar do amor


Onde a gente conseguiria ter uma boa conversa sobre um tema tão delicado como abuso sexual?

Que ambiente é esse capaz de nos deixar a vontade tanto para falar quanto para ouvir sobre as histórias reais de abuso?

Adultos falando de suas memórias. Os contextos, os personagens reais de suas infâncias. Um pai, um tio, um namorado da mãe, uma pessoa da família, uma pessoa de confiança...

A dor calada: "sinto que se eu contasse, meus pais não iriam dar conta."

A dor silenciada: "contei para minha mãe e ela disse: não fale para mais ninguém isso."

A dor do abandono: "meus pais estavam muito distantes e desatentos de mim."

A dor. 

Anos e anos lidando com um evento que marca uma vida.

E cada uma, cada um, foi encontrando seus caminhos de cura, de superação, de transformação.

E aí surge a possibilidade da gente falar sobre isso. Não só conceitualmente, mas com as emoções que nos tocaram e nos tocam ainda hoje.

Uma conversa emocional. Uma possibilidade de seguir um processo curativo.

É isso que estamos vivendo, durante essa semana, na jornada. Uma jornada que nos leva a uma mudança em nosso emocionar.

Um processo difícil, forte, duro, delicado. Intenso. Mas ao mesmo tempo muito amoroso, libertador, transmutador e acolhedor graças a esse ambiente de escuta que não é só escuta... é um estar junto, um mergulhar junto num mar muito violento e arriscado para salvar, não uma vida, mas as nossas vidas, de todos nós. 

Para mim veio a tarefa de escrever um pouco sobre isso. Vai ser uma escrita entre tantas possíveis. 

Temos os relatos das pessoas sobre seus processos de cura. Isso é insubstituível. Adoraria que relatos como esses que ouvi fossem partilhados para públicos mais amplos. 

Há pessoas escrevendo também sobre seus processos dizendo onde, em si mesmos, toda essa conversa curativa está tocando.

Aqui vai uma contribuição pequena, mais para organizar o pensamento e trazer um pouco meu coração nesse tanto que estamos vivendo. Adoraria fazer uma junção das palavras que li e ouvi, mas isso não é possível. Cada fala é intraduzível. Então aqui vai uma fala dentre tantas. Nunca é demais. Precisamos falar mais sobre sexo, suas delícias mas também suas dores. Sobre suas dores e também suas delícias. Mas hoje, vamos falar mais das dores.

Convido você que lê essas palavras agora a avaliar se esse é o melhor momento. Se precisar de um outro tempo, volte a ler numa hora em que você esteja mais disponível. Para que você possa fazer seu mergulho também. Nessa nossa história. Nossa história emocional, cultural. Nossa história humana. 

Voltando a pergunta inicial: que ambiente é esse de conversa?

No encontro de segunda-feira, Ana foi trazendo elementos de reflexão para que a gente pudesse olhar a questão dos abusos de uma perspectiva que nos ajudasse a olhar as emoções, e o sistema mais amplo onde estamos inseridos. E, é bom que se diga, não foi ela quem trouxe o tema intencionalmente. É que os aprofundamentos nos processos emocionais vão nos trazendo as nossas feridas à flor da pele. E assim os participantes foram trazendo e pedindo ajuda para olharmos para a questão juntos. 

A primazia da ética

Em primeiro lugar, Ana lembrou ao grupo de que a criança não é culpada. "Ela não fez nada para que isso acontecesse. Ela não provocou. Não deu mole. Não facilitou" É bom que se diga isso num contexto social que sugere a culpabilização da vítima (argumentos do velho sistema). Portanto compreenda: a criança não é culpada pelo que aconteceu.

E o adulto que abusa sexualmente de uma criança é uma pessoa doente.

É bom partir de um ponto de vista ético que não seja o relativismo. Em nossos processos de liberação emocional, muitas vezes precisamos relativizar certezas, abrir mão de crenças. Mas temos evidência suficiente, ouvindo as histórias do sofrimento que fica para as pessoas, que não há relativização possível nesse caso. Relação sexual com crianças é absolutamente anti-ético.

Um segundo elemento, trazido pela Ana, tem a ver com a forma como lidamos com a sexualidade enquanto adultos. Podemos nos envolver com outro ser humano, amá-lo, admirá-lo, podemos criar intimidade, parceria, mas isso não precisa necessariamente terminar em sexo. Ela deu exemplo do aluno que se apaixona por um professor e o professor pode dizer: "eu sei, eu estou aqui num lugar de destaque, apaixonado pelo que faço, apaixonado pelos meus alunos, cheio de brilho e amor, mas percebo que você está se iludindo. Não precisamos nos relacionar sexualmente." Portanto uma atitude ética é não permitir que esse apaixonamento seja sustentável.

Amigos podem se apaixonar. Especialmente quando "tiramos as interferências (projeções)" e vemos o outro ser humano. "Encontrar o ser humano é sedutor". Mas, imagina, que esses amigos são casados. Então eles podem se perguntar: "onde isso vai me levar se eu entro numa intimidade sexual?"

E assim cada um pode escolher ficar com sua parceira, seu parceiro. Porque do contrário entramos nessa história de amor livre, relações plurais que é um escape. E ao dizer isso Ana pergunta-nos:

"Por que sempre que me apaixonar por alguém isso vai acabar em sexo?"

Ela mesma responde: "É uma infantilidade. Uma falta de maturidade, de percepção mais ampla."

Daí há dois caminhos: a moral ou a ética. Onde há moral não há ética. Onde há ética não há moral. Se entramos na moral, vira uma confusão. A proibição. Os casos escondidos, os segredos, a traição, a opressão, a omissão... Os livros e os filmes sobre vida amorosa do presente e do passado estão repletos disso. Nossa vida está repleta disso. Não é à toa que uma sociedade moralista seja tão anti-ética e, portanto, doente e, portanto, capaz de produzir uma brutalidade desse tamanho que é quando o abuso chega a uma criança.

A opção pela ética é a escolha por uma relação sadia. Um encontro profundo. É não cair na adolescência de achar que tudo precisa terminar num gozo sexual.

Aqui vemos onde está a doença. Lembro do Reich no livro "O Assassinato de Cristo" relacionar a crucificação de Jesus com essa doença emocional que é o mal estar, a repressão e moralismo sexual da humanidade. Mataram Jesus não por motivos políticos ou por questões religiosas. Mas porque ele era um homem capaz de amar.

Um homem potente com um amor potente!

E as pessoas ainda não conseguiam conviver com o amor e a potência humana.

Após ouvir os relatos, as memórias dos abusos, Ana sugeriu que a gente olhasse, sentisse as emoções que nos vinham. E foi conduzindo processos de olhar as emoções descoladas do fato. Elaborasse a partir da emoção e depois revisitamos os fatos. Esse movimento da emoção nos faz ver e tocar nosso passado de um outro modo. Um acolhimento de si que nos levou às lágrimas. Difícil descrever isso aqui.

Antes de tudo, no entanto, sugeriu um artifício:

Recebemos algo como uma herança, que vem não só da pessoa que nos violentou. Mas que vem de nossos antepassados, uma herança ancestral. E o artifício é pensar o seguinte: "isso só aconteceu com a gente porque a gente é capaz de dar conta disso e curar essa herança ancestral." Não deixar passar isso para as gerações seguintes.

Como curar?

É um processo muito pessoal. Muito individual. Mas é coletivo também.

Se olhamos com profundidade vemos que não há um culpado isoladamente. Que a doença de um indivíduo é sustentada por um sistema. Ele vive uma dor tão grande que sua dor transborda e atinge o outro. E isso se torna um círculo vicioso.

Lembro de uma vítima de abuso dizer que depois de anos curando essa ferida chegou a um lugar emocional em que pode dizer que junto do amor profundo que sente por essa pessoa, que é um familiar próximo, sente até mesmo gratidão por ter acontecido isso com ela.

Ela o vê não como culpado. Mas compreende que ele foi a válvula de escape, por onde vazou a dor do sistema, o sintoma de toda essa moral, dessa questão mal resolvida em todo o sistema cultural em que vivemos.

Gratidão e amor.

Claro que nem todo mundo chegou a essa camada profunda de cura.

Em algum momento do encontro Ana disse que todos somos abusadores. Mas encontramos justificativas, através de nosso movimento conceitual. Mas se encararmos nosso emocionar teremos de admitir que geramos sofrimento para nós e para os outros.

Por que abusamos dos outros ou de nós mesmos?

Medo. Medo do abandono. Medo de não ser aceito, de não ser amado. Medo de desaparecer.

E assim, com esse emocionar, permitimos o jogo, de abusadores e abusados.

Só há processo de cura quando o adulto abre mão de ser amado.

Veja um exemplo de um dia na vida sexual de um casal homem-mulher.

Durante o dia os dois se encontram, se abraçam, se beijam. Na intimidade de seu encontro vão tecendo carícias e acendendo o desejo. Quando ambos vão ficar a sós o homem está com muita vontade. Mas, nesse exemplo aqui para nossa didática, imagine que ela não está mais com a vontade que experimentou ao longo do dia. Passou. Mas ele manifesta seu desejo acariciando-a de uma forma íntima. Ela pensa em dizer não. Mas aí pensa também: o que ele vai pensar se eu disser não? Vai ficar frustrado. Vai ficar triste e com raiva. Vai achar que eu não estou correspondendo. Então ela cede. Isso é uma forma de abuso? Quantas pessoas passam por isso na vida adulta?

Veja como essa expectativa sobre o mundo emocional do seu parceiro é o de que ele é uma pessoa infantil. Que não consegue ouvir não. Que acha que um não significa que não é amado. E se a pessoa não se sente amada ela sofre tristeza, raiva. Veja como na visão da mulher, seu companheiro é uma pessoa que se deixa determinar pelo que recebe do outro. Isso é uma embolação. E por que ela se relaciona com alguém infantil?

Um outro desfecho: depois do dia de aproximação ambos sentem desejo e eles fazem sexo. Ela chega ao orgasmo. Ele ainda não. Ela sente vontade de deitar e ficar abraçada. E quem sabe dormir assim, aconchegada. Esse é o seu desejo. Mas ele está cheio de apetite. E ele não sabe lidar com toda essa tensão no corpo. Mas cede, não quer abusar de sua companheira. Mas faz isso de uma forma não integrada. Quando a excitação diminui, como ele não teve orgasmo, não consegue se entregar ao gozo de estar abraçado. Está focado demais em seu prazer genital que é a forma como aprendeu a sentir prazer. O amor, o encontro, a união, nada disso importa agora. São conceitos com os quais ele convenceu parte de sua mente. A outra parte começa a ficar cheia de pensamentos. Não quer estar ali. E começa a ruminar que não ama, que não é amado, que é um infeliz. É dominado pela tristeza, pela frustração. Uma pergunta surge: como eu posso ser feliz sem forçar/convencer/seduzir o outro a fazer o que me apraz? Assim passamos a vida aprendendo a arte de seduzir, de conquistar, de possuir o outro, mas pouco aprendemos da arte de amar.

Um outro desfecho: ela tem o orgasmo. Quer parar mas continua, por ele. Abre mão do que está querendo, do que está sentindo, do que está escutando de seu corpo. Cede à vontade do outro. Então eles continuam até que ele tenha o ápice do prazer. Mas ela não está tão quente. Está fria, dolorida, incomodada. Terminam sem a união de alma como já viveram em outras vezes. E daí vem de novo a enxurrada de pensamentos: ela não me ama, e fica triste, com raiva, etc. E ela se sente machucada, abusada, e com raiva de si mesma por, mais uma vez, não ter ouvido seu corpo.

Não tem para onde correr.

A vida afetiva não se resolve no sexo. O sexo é que se alimenta da vida afetiva. Mas poucos conseguimos viver isso. É um segredo. Não falamos sobre essas coisas. Demoramos a aprender. E não basta falar e convencer a mente. Se o corpo, a emoção, continua vivendo a limitação do desejo de ser amado, do medo de ser abandonado. E pensar que muitos de nós nascemos de uma relação sexual assim. Que herança recebemos? Temos ou não temos muita ferida para curar?

"O adulto que se liberta da necessidade de ser amado se liberta para amar."

A emoção raiz que trabalhamos nessa semana foi o sentimento de abandono.

Lá pelas tantas Ana lembrou da líder espiritual indiana que há anos abraça milhares de pessoas.
Amma integrou tanta atrocidade que viveu, tantos abusos que uma mulher pode sofrer, violência física, psíquica, emocional, a dor de ser linchada, estuprada, e ela conseguiu integrar tudo aquilo de uma tal maneira que surgiu um grande campo de compaixão. As pessoas que a abraçam sentem um amor incondicional.

O amor incondicional. O que é esse amor?

"O Namorado" é uma das cartas do Tarot de Marselha que se comunica muito com tudo que falamos aqui. Ana leu esse trecho no último encontro. A carta tem três personagens humanos no centro, um anjo que lança flechas do centro do sol no alto. No livro do Jodorowski quem fala na carta é justo o sol que está acima dos personagens da trama. O sol do amor. O que ele nos diz?

"Sou o sol do arcano, o sol branco: quase invisível, mas iluminando todos os personagens. Sou essa estrela: a alegria de existir, e a alegria de que o outro exista. Vivo no êxtase. Tudo me dá felicidade: a Natureza, o universo inteiro, a existência do outro sob todas as suas formas - esse outro que não é outro senão eu mesmo.

Sou a consciência que brilha como uma estrela de luz viva no centro do seu coração. Eu me renovo a cada instante, a todo momento estou nascendo. A cada batimento do seu coração, eu uno você ao  universo inteiro. É de mim que partem os vínculos infinitos que nos unem a toda criação. Ah, o prazer de amar! Ah, o prazer de me unir! Ah, o prazer de fazer aquilo que se ama!

Mensageiro da permanente impermanência, renasço a cada segundo. Sou como um arqueiro recém-nascido que lança flechas em tudo o que os sentidos podem captar.

Não sou a gentileza, não sou a ambição do bem-estar nem do triunfo. Sou o amor incondicional. Eu o ensinarei a viver no alumbramento, no reconhecimento, na alegria.

Quando penetro em você, como nos personagens do arcano, comunico o amor divino até à menor das suas células. Sopro na sua mente como um furacão caloroso que elimina da linguagem a crítica, a agressão, a comparação, o desprezo, e todas as gamas da arrogância que separam o espectador do ator.

Eu me insinuo na sua energia sexual para suavizar toda brutalidade, todo espírito de conquista, de possessão. 

Confiro ao prazer a delicadeza sublime de um anjo que exulta.

Quando eu me dissolvo em seu corpo é para separá-lo da ditadura dos espelhos e dos modelos, do olhar dos outros, da dor das comparações. Eu lhe permito viver sua própria vida, assumir sua própria luz e sua beleza.

No coração onde habito, afugento as ilusões da criança mal-amada. Como o sino de uma catedral, verto no sangue a vibração penetrante do amor, desprovido de todo rancor, de toda exigência emocional travestida de ódio, e de todo ciúme, que não passa da sombra do abandono. Eu o inicio no desejo de não obter nada que não seja também para os outros. A ilha do eu se transforma em arquipélago.

Tudo concorre para aumentar minha alegria, mesmo aquilo que você interpreta como circunstâncias negativas: o luto, a dificuldade, a pequenez, os obstáculos ...

Amo as coisas e os seres tal como são, com suas infinitas possibilidades de desenvolvimento.

A cada instante, vejo você e estou disposto a participar de seu desenvolvimento, mas também a aceitar que você continue sendo como é."




3 comentários:

  1. Gratidão, André. Seu texto me tocou profundamente. Um dos meus irmãos foi abusado quando criança e vou mandar para ele.

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  2. Muito forte André o texto. Assunto delicado.....
    Difícil de compreender....
    Vivemos uma vida inteira repetindo essas atitudes e não nos damos conta.
    Como nos perceber diante de tanta dificuldade emocional?
    Obrigada pelo relato.

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