terça-feira, 26 de maio de 2020

Expressa-te


Eu estava aqui ao longo do dia pensando em vir escrever o texto e não sabia bem como começar.
Fiquei disperso com tanta informação, tantas dimensões que estamos tocando nessa etapa da jornada.
Não sabia onde essa criação aqui, que agora está em suas "mãos" iria chegar.
Se seria mais informativo, mais pessoal, ou mais ficcional...
Se teria citação dos relatos emocionados de outras pessoas do grupo...
Não sabia mesmo como começar... nem por onde seguir...

O começo, dependendo da estrutura do fenômeno, pode ser determinante para o desenho do conjunto...
Vamos pensar assim: o texto todo é um conjunto... que é mais que a soma de suas partes...
Em certo sentido o conjunto vem antes das partes
Mas também é verdade que das partes pode-se ampliar a visão e perceber o conjunto.
Me lembro de ler o Rubem Alves e ele dizer que as ideias têm vida própria...
Vão se ligando umas às outras como as contas de um fio...
Isso me levou a ler Hermann Hesse em seu imenso O jogo das contas de vidro, uma outopia futurista. E me apaixonar por ele.
E depois descobrir que ele é sempre igual. Depois de O Lobo da Estepe, li Sidarta (aliás, um livro mais budista que os próprios budistas) e um dia, de repente, ouvindo a música do Teatro Mágico, Sonho de uma flauta (clique aqui para ouvir também), soube de seu pequeno conto citado ali no título da canção e fui ler.
Descobri naquelas quatro páginas o Hermann Hesse inteiro!!
Mil páginas em quatro.
O todo na parte.

O matemático Mandelbrot, estudando as formas altamente complexas da natureza, exemplificava a teoria dos fractais mostrando como nos pequeninos pedaços da couve flor, estava a forma da couve flor inteira.
Lendo a Teia da Vida do Capra, entendemos que a geometria dos fractais e uma série de novas teorias nas diversas ciências inauguram um novo paradigma que ele chama de ecologia profunda, entre tantos nomes que estão sendo usados. Uma perspectiva que vem mostrando a ligação de todos os seres numa grande teia de inter-relações, uma visão sistêmica da vida.
Assim, no pequeno conto do Hesse, estava toda a sua obra e sua busca de compreender os caminhos da vida que levam a sabedoria na simplicidade.
Mas é claro que eu não saberia disso se não tivesse percorrido o trajeto todo.
O Rubem Alves, depois que se tornou avô, fala que percorreu o caminho da vida para se deleitar brincando com as crianças.
A gente poderia brincar a vida inteira se seguisse o conselho dele.
Só que não ia dar certo.
Precisa percorrer pra saber que não precisava sair do lugar.
Mas se não saísse do lugar, não saberia.
Portanto, estamos destinados a viver!
A viver a travessia que chamamos vida.
A viver, enfrentar o percurso e depois retornar de onde saiu.
Mas retorna diferente. Igual, mas diferente.
É sobre isso que vamos falar hoje: para trás não há caminho.
Na verdade já falamos. Mas vamos percorrer um caminho juntos.

Essa questão entre todo e parte envolve a história do pensamento humano nas diferentes áreas.
E aparece aqui na hora de escrever um texto.
E vai aparecer na forma como nos relacionamos.
Existe pessoa fora da relação?

A vida inteira me encantei com os pensadores sistêmicos.
Visto pejorativamente como ecléticos pelas diferentes escolas científicas, eu achava que eles é que eram sábios.

Articulavam saberes diversos e o que diziam ressoava em um lugar profundo em mim.
Então eu sempre quis esse caminho de pensar de forma sistêmica.

Me lembro de uma vez fazendo uma trilha na floresta e meu amigo me contava de um livro do Leonardo Boff. Ele partia da história da águia e da galinha, para falar de dimensões muito diversas. A história, contada por James Aggrey, um educador popular, incentivou a luta pela independência do povo de Gana. Leonardo Boff pegou essa história e trouxe seus símbolos para a atualidade e mostrava os arquétipos águia e galinha como estruturadores da realidade das emoções humanas, assim como da constituição do universo, das forças físicas, biológicas, da espiritualidade, da filosofia, da política... Essa conversa era tão interessante porque era um saber que me ligava ao todo. Um conhecimento da realidade que não era uma curiosidade, mas uma ética, um estar no mundo de forma ativa e consciente do meu lugar aqui.

A contação de histórias, seus símbolos, tem esse poder de tocar a inteireza, mais do que o entendimento racional. Mas quando eu falava de Leonardo Boff na faculdade, os professores torciam o nariz: era pseudo-ciência. Quando falei de Rubem Alves na teologia torciam o nariz, diziam que ele era um bom poeta. Assim fui... buscando algo diferente. Algo que tivesse alegria junto com crítica. Nada me marcou mais nos anos de juventude do que ouvir Milton Santos numa palestra no Planetário do Rio de Janeiro. Falando de estrelas, da Terra, da opressão colonial e de uma nova era... e... sempre sorrindo. Eu não queria só o conhecimento, queria o sorriso também.

A parte e o todo.
O pensamento e a inteireza.
Como eu disse, as ideias têm vida própria. Estamos sem planejar, citando Fernando Pessoa:

Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.

Agora imagine... a inteireza e profundidade do que somos como humanos. Então olhamos para o mundo e não vemos, não deciframos a ordem inerente às coisas e aos fenômenos. Chamamos de caos. Não parece ter um padrão, uma forma, uma explicação. Mas imagine que haja uma forma, ainda não decifrável pela mente. E essa forma também existe dentro da gente, afinal somos natureza. Imagine que essa forma de dentro possa reconhecer a forma de fora... desde que a mente não atrapalhe. Uma espécie de linguagem intuitiva. E ao combinar a forma de dentro e a forma de fora, através dessa linguagem própria, você possa extrair alguma informação compreensível para você. Esse é o holocromos que a Ana apresentou no décimo encontro da jornada.

O holocromos é um sistema terapêutico desenvolvido por Moni Oliveira que apresenta 64 telas com desenhos de fractais. Há uma ressonância entre a tela e o inconsciente, e a pessoa vai escolhendo as telas, que depois vão ser lidas, trazendo luz às questões para serem trabalhadas. Sob a condução da Ana fizemos uma leitura coletiva com as 8 telas escolhidas por participantes do grupo.

É um sistema interessantíssimo!

Lembra um Tarot, nesse mecanismo simbólico de expressão do inconsciente. Mas a leitura não aponta tanto para previsões e sim para introvisões. Que acabam levando para orientação de caminhos.

Lendo as 8 telas a Jane, uma professora de holocromos que faz parte do nosso grupo, disse mais ou menos o momento em que estamos vivendo:

"Começamos com um sentimento de abertura para viver esse processo de autocriação, com um sentimento de saber-se espiritual e que temos capacidade de exercer uma liderança. Mas há uma confusão: são tantas as dimensões envolvidas que ficamos querendo integrar todas elas mas ficamos sem saber como. Estamos abertos para transitar na multidimensionalidade. Mas, apesar de perceber que tudo isso faz sentido e que estamos vivendo intensos processos de transformação, estamos num momento de dispersão, tendo dificuldade em trabalhar com nossa capacidade criativa. Não estamos conseguindo organizar essas interações.

Há muita emoção contida, oprimida. E a capacidade criativa que precisa se expressar não está encontrando caminhos. Estamos revisitando nossa criança interna, vendo em nós uma polaridade entre um movimento de doação excessiva e uma retração de se fechar para receber. A confiança fica abalada e reprimimos.

Precisamos ir para um lugar de neutralidade, equanimidade, para olhar essa feridas e confusões e encontrar clareza. É preciso se expressar para clarear. É o movimento de expressão que vai trazer clareza. Caso contrário correremos o risco de ficar em pensamentos fixos, repetitivos, causando uma intoxicação, um embotamento dos chakras.

A leitura sugere o resgate da criança interna, um aterramento, buscar a vitalidade e força de realização e materialização. Usar a força de agressividade que libera e constrói ao mesmo tempo.

A criança interna precisa de acolhimento e amorosidade. Sentir que fomos amados na infância. Assim abrimos a possibilidade para nos transformar. Não ficar no desequilíbrio do dar e receber, mas entrar no movimento das emoções, ganhando flexibilidade, aceitando o fluxo das coisas, liberando-se da rigidez da mente, da resistência. Enfim: "se joga!"

Ela nos disse que há um força enorme e que a mudança será inevitável. Em algum momento vamos ter que dar o salto para o novo. E acessar o potencial de se perceber único."

Ao final ela e Ana lembraram que a leitura retorna ao começo: uma abertura. É o que estamos fazendo, continuamente em processos não lineares. Dar a volta e retornar a si mesmo. Cria o caos e retorna para uma nova integração.

Não sei exatamente o que me faz estar na jornada com a Ana. Mas é muito forte nela essa articulação sistêmica de saberes de uma forma que nunca fica só no plano do intelecto. Ela está sempre usando os saberes como artifícios para processos de transformação e autoconhecimento que levam a uma radicalidade de conexão com a fonte original da vida, de sermos quem somos, sem se deixar determinar pelo que vem de fora, sem se perder nos condicionamentos da mente e nas interferências das emoções estagnadas.

Eu poderia ler o livro do Capra e ficar cheio de saberes... mas sem saber muito bem o que fazer com tudo aquilo. Transformar aquilo numa nova ideologia, tentar convencer as pessoas a pensarem de uma forma diferente para, assim, mudarmos o mundo. Como se a mudança de paradigma dependesse de convencimento. Mas ora! convencimento era parte do paradigma anterior.

Aí vem a Ana e já trilhou um caminho que articulou esses saberes com um processo de integração nela mesma. Então, ouvir a Ana é um processo muito semelhante ao de ouvir as histórias, porque ressoa em algum lugar na minha inteireza. Só que ao invés de recorrer a símbolos ela relata seus próprios processos. E o faz inteira e verdadeira. Então ressoa dentro da gente que a ouve. E daqui de dentro vamos viver os nossos próprios processos.

Isso dá uma liberdade de ser singular. Não é um convencimento, não é uma ideologia, não é um acúmulo, não é uma organização institucional. É uma pessoa que conta de seus processos, das ferramentas que usa, dos artifícios que vai criando para lidar com sua própria mente e, nesse transbordamento de si nos afeta. Vamos fazendo nossos próprios processos pessoais também. E como um dos frutos do processo dela é o amor, uma vinculação muito amiga e carinhosa, naturalmente nos sentimos ali acolhidos e visceralmente em processo junto.

Nesse dia ela contou de um biólogo, Candace Pert, que descobriu que as nossas células, mesmo fora do corpo, continuam reagindo às emoções que sentimos. A capacidade de perceber, sentir e pensar não estão circunscritas no cérebro, estão nas células do nosso organismo. E continuam atuando como micro-mentes mesmo fora do corpo, como é o caso da saliva. Esse é um tipo de conhecimento que você não consegue deixar engavetado: minha mente não está no cérebro e eu não estou circunscrito ao meu corpo.

Onde está a mente? Está no corpo, num lugar perto do coração, dizem algumas tradições muito antigas.

Se eu não estou limitado pelo corpo... onde estou?
Na teia da vida, na rede de inter-conexão, onde estamos todos...
No nível sub atômico, estamos todos conectados.
No vasto campo sistêmico estamos inseridos.
Na campo primordial da vida.

Por isso o processo que um vivencia afeta o caminho do outro.
Estamos tão vinculados...

E o que fazemos quando estamos aqui?
Nada. O fazer se faz por si mesmo.

Hoje mandei para minha prima aquele texto sobre minha criança ferida ferindo um menino de 5 anos... (o texto se chama "Eu e...")
Ela me ouviu falando algo a respeito e quis saber o que tinha acontecido em nosso passado. Quem eram os adultos maus da minha infância.

Enviei para ela e fiquei fazendo yoga ao sol.
Provavelmente quando ela terminou de ler... a quilômetros de distância...
O menino de 5 anos veio até mim, me viu deitado em relaxamento e começou a fazer carinho nos meus cabelos.

Uma atuação no campo. Um movimento na teia. E eis que há um retorno.

Nossa criança precisa de acolhimento, sentir que fomos amados...

Chego a pensar que toda pessoa que está em criação, na sua conexão com a fonte, é, ela mesma, um fractal. Sem as distorções da busca por finalidades, compensações, legitimidade, a pessoa sendo ela mesma, quando ela até esquece que é ela e simplesmente é, essa pessoa é um fractal, aponta para a fonte, revela o todo. E olhar, ouvir, conversar com essa pessoa, é olhar, ouvir e conversar com a fonte, com o todo.

É assim que a verdade se revela na nuvem, na folha, na árvore, no pedacinho da couve flor, na criança brincando, no conto do Hesse, na música do Teatro Mágico... e pode estar numa pessoa também, assim que ela abandona toda a casca de condicionamentos em sua visão, deixa de lado as marcas e ressentimentos em sua emoção, se esvazia das certezas, entra nesse estado de vacuidade e pode ver simplesmente as coisas. Visto daí: o mundo é perfeito. E o que essa pessoa faz, ressoa... revela a verdade sobre quem somos.

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