sábado, 9 de maio de 2020

Renda-se se for capaz


Saí de lá e chorei. Foi tão maravilhoso olhar as coisas sob a perspectiva simples e sábia de Dona Lucyla... aquilo tudo me tocou e trouxe uma luz que inevitavelmente mostrou as sombras aqui de dentro.

Caminhei um pouco pensando: tudo que eu quero nesse momento é descarregar o peso da mochila que venho carregando. Um fardo pesado... a vida se tornou pesada... por que é tão difícil simplesmente ser? Por que tanta busca, tanta finalidade, tanto pensamento, tanta crítica, tanto controle, tanto esforço, tanta adequação?

Eu estava realmente insatisfeito comigo mesmo.
Depois de ter sentido tanta alegria na simplicidade, confiança na vida e uma certeza de que as coisas seriam mais leves...
Fui novamente tomado pelo labirinto de meus pensamentos.
Na tela da mente iam surgindo: pessoas com quem tenho dificuldade de me relacionar, ressentimentos, situações que quero controlar, parece que eu mesmo que estava antes me sentindo como um sol brilhando para todas as direções, de repente construí um muro novamente, me tranquei de volta num lugar velho conhecido meu de crítica e auto-cobrança. Então pensei: acho que nunca serei capaz de mudar.

Fui andando assim num torvelinho de pensamentos e memórias... decepcionado e desanimado.

De repente comecei a ouvir uma música gostosa e me dei conta que uma artista de rua estava começando a cantar uma canção (clique se quiser ouvir) Naquele momento sem perspectivas, resolvi parar para ouvir. A música foi me envolvendo num sentimento de paz... a letra falou diretamente ao meu coração. Era algo assim:

Vai! Paciência, direção, levados pela impermanência...
Vai! Paciência, diversão, levados pela impermanência...

Parece que pensar é perecível
a mente é cabível
mas eu não caibo aqui

sentido é só sentindo que se sente
eu sou possível
já tô aqui

se a gente solta colhe o imprevisível
presente disponível
do vento do devir

love, love, love, surrender, surrender
surrender just to be

(amor, amor, amor, entregue-se, entregue-se
entregue-se a simplesmente ser).

A cada verso a música ia me tocando. Fazendo sentido. Falando comigo.
Fiquei ali impressionado com a sincronicidade do momento.
Não podia ser mais perfeita essa música, o encontro com essa artista que brotou na minha frente justo quando eu mais precisava.
Era como a aparição de um anjo. Até porque estávamos só nós dois ali naquele momento. Provavelmente ninguém mais a ouviu. Ninguém filmou esse momento. Até agora não sei exatamente se existiu.

A moça me olhou e sorriu.
Um sorriso feliz e cúmplice como se ela se visse no meu lugar quando também em sua vez saiu a caminhar e chorar.

Sem dizer uma palavra estendeu uma caneca na minha direção
Eu me vi levado a aceitar.
Provei: gengibre e cravo... foi o que consegui identificar do forte aroma daquela bebida quente.
Acalentou o estômago e o coração.

"Que música linda!, eu falei. Ela é muito cheia de significado".
"Sim. É tudo que a gente precisa na vida. Amor e entrega".

E eu completei sorrindo: "e paciência".

E rimos.

"Ah sim. Paciência..." ela comentou; e continuou me dando sua perspectiva sobre a música:
"Isso de viver é um caminho.
Que precisa ser caminhado: Vai! Direção... A gente precisa fazer, agir, interagir, para que as coisas aconteçam e a gente vá aprendendo com os próprios erros. Tem gente que fica parado, esperando ser perfeito pra viver, esperando aprender a amar pra se relacionar, esperando mais aquele curso, mais aquela formação... é muito medo, na verdade, medo de se expor, medo de sofrer, medo de não agradar... na base disso tem uma finalidade imatura de ser reconhecido. Ora, andar se aprende andando, cantar, cantando, sentir, sentindo e amar, amando.

Mas vai com paciência consigo mesmo, não se cobre tanto... traga um tanto de humor e diversão na estrada: desfrute a vida.
Altos e baixos são justo parte da impermanência...

Tudo passa, tudo é tão passageiro, perecível...
O próprio pensar é perecível. Creio ter um pensamento certo, mas o certo para um é errado para o outro e vice versa... o certo hoje é errado amanhã... impermanência...

A mente é cabível, eu sinto tanta coerência em meus pensamentos, tanta lógica, tanta certeza...
Constrói sentido, lindos sentidos de vida,  mas eu me aperto pra caber nesses sentidos que no fundo não são tão meus.

Definir é limitar. Não me cabe. Tem algo em mim que não cabe nesse ordem de certezas da mente inteligente, a experiência é mais que o pensamento.

Transbordo a prisão de meus pensamentos e encontro a mim mesma, eu sou possível, já estou aqui.
Não é nada que precisa ser feito para chegar em parte alguma. Eu sou possível.

Já estou aqui. É como um pouso. Percebo que estava viajando, perdida num filme... e volto e percebo: estou aqui. Até a respiração volta a ficar consciente.

Plantando se colhe, as sabedorias falam muito disso. Mas o que amo nessa música é essa inversão... ao invés de plantar, soltar.
Soltando colhemos o imprevisível
Abrir-se à imprevisibilidade...
Presente disponível... o momento presente torna-se disponível para mim... eu me torno totalmente disponível para o que está presente
E para o que o vento conduzirá

O amor, o amor para além das caixas de certezas é uma entrega
Entrega ao desconhecido...
Entrega a simplesmente ser...
Abandone todo esforço... só seja..."

Eu amei ouvir aquelas palavras todas e a naturalidade com que fluíam de uma pessoa muito integrada com o que dizia. Cantava com amor e entrega. E me acolheu ali naquele momento me olhando sem julgamentos. E falou do que sentia, sem querer me convencer mas apenas expressando sua forma de ver as coisas. Havia um tipo de leveza em seu jeito de falar que eu não sabia exatamente de onde vinha.

E eu estava mesmo querendo te contar tudo isso que vivi e o que andei pensando. Você, que ainda está comigo aqui nesse texto, lendo e refletindo comigo, sabe-se lá por quais caminhos a vida te trouxe até aqui... o que esses textos têm feito você pensar e repensar em seus processos e sua vida... o que essa música te faz pensar, sentir... gostaria muito de ouvir você. Como anda sua jornada de transformação.

Sabe? No último encontro a Ana chegou a dizer:
"Amar é se transformar."

Senão só entro em relação com as projeções que faço no outro
E as projeções já são marcadas pela velha mente

O amor só é possível quando eu desisto de sustentar as opiniões, as crenças, a própria mente que opera por dualidade. Para amar precisamos mudar a forma de funcionar da mente.

Se eu sou uma pessoa muito consciente, o outro é uma pessoa muito inconsciente.
Uma polaridade está aí.
Veja quantas polaridades sustentamos!
Se eu sou uma pessoa honesta o outro aparece como desonesto. Se sou generoso, o outro é mesquinho. Se sou inteligente o outro é ignorante. Se sou cuidadoso o outro é relapso. Se sou trabalhador o outro é preguiçoso. Se sou caridoso o outro é indiferente. Todo julgamento que fazemos do outro é porque estamos reforçando o outro lado da polaridade em nós. Queremos sustentar isso. Passamos a vida tentando ser o melhor possível. Mas com uma base ilusória. E isso não se sustenta. A vida sempre vem e traz conflito. A vida é perfeita para trazer aquilo que precisamos olhar. Surge o sintoma. No corpo, ou nas relações.

Às vezes a gente fica de uma polaridade a outra. Ah... cansei de ser bom, agora vou ser mau... cansei de ser igual minha mãe, agora vou ser o oposto... mas na verdade não saímos do lugar. O que a Ana vem sugerindo em nosso jornada é que o caminho está na integração das polaridades... ativar uma mente que seja paradoxal.

Ela usou aquelas figuras que aparecem formas que ou se vê uma coisa ou outra. Aquela conhecida do vaso e dos rostos. Aquela da jovem e da velha. Ou você vê uma imagem, ou outra... então o convite é ver as duas ao mesmo tempo. Isso ativa essa capacidade, nos traz uma abertura. Para ver ambas ao mesmo tempo.

Sou generoso e mesquinho. Ao mesmo tempo. E mesmo nos atos mais generosos, trago a mesquinhez em mim. E não demoro a julgar quem faz um pouco diferente de mim como uma pessoa mesquinha.  Mas não consigo ver os meus pequenos atos de mesquinhez. Mas se me olho com verdade... estão aqui... ambas, a generosidade e a mesquinhez.

Daí o que posso fazer? Um exercício que a Ana ensina é assim: Vai... respira, relaxa, se abre para fazer um processo. Pode ser sentado, deitado na posição semi-supina ou como preferir. Então perceba a generosidade (ou qualquer qualidade que você valorize) em você. Perceba que a mesquinhez (ou a qualidade oposta da que você está trabalhando) também está em você. Agora veja que ambas estão juntas, atuando constantemente em você. Traga consciência para isso. Então... agora... nesse estado com a mente calma e atenta abra mão de ser generoso. Diga assim, em voz alta se for preciso: eu abro mão de ser generoso.

Pode parecer loucura abrir mão de uma qualidade tão cara a você. Mas abra mão porque ela não tem sido para você uma totalidade. Quando você afirmar isso, perceba o que surge. Quando abro mão de ser generoso não quer dizer que opto por ser mesquinho. Abro mão de ambos. Saio da polaridade e minha mente entra num vazio. Num mar de possibilidades.  Pode ser que daqui em diante eu pratique atos que podem ser vistos, avaliados pelas pessoas, como algo generoso, ou mesquinho, mas para mim será algo que as circunstâncias me trouxeram e que sinto como natural fazer. Sem pensar em prêmios e recompensas emocionais. Abrir mão de um dos polos me libera da polaridade e me liberta para uma criação. Se a gente solta colhe o imprevisível...

Quando fiz isso, a pessoa que eu via como mesquinha... mudou. Já não é mais mesquinha. É até bem generosa. Isso ampliou minha perspectiva. E me aproximou dela de novo. Olhar e pensar "mesquinha"... me afastava dela. Fui, sentei, reconheci em mim a polaridade, soltei, voltei e olhei para ela... sem julgamentos... pude ver.

E o resultado disso é amor. Olhar o outro.

Esses são processos que a Ana faz e está nos convidando nessa jornada da travessia.

Podemos passar a vida em conflito, reclamando e criticando a todos a nossa volta... ou podemos começar a integrar em nós as polaridades... essa mente que integra é que a Ana tem chamado de mente paradoxal. Porque eu sou honesto e desonesto. Carrego a desonestidade comigo quando procuro ser honesto. Ver e aceitar isso precisa de muita sutileza e precisa se vulnerabilizar.

Só vivo amor se eu me vulnerabilizo a esse ponto.

O outro é a chave para olhar em mim o que está na sombra daquilo que valorizo como luz.
O conflito é a chave para a integração de luz e sombra.

E agora ao invés de reclamar o dia inteiro, passo o dia olhando o que se passa em mim quando me vêm os conflitos e usando tudo como exercício. É uma arte de viver.

E o amor é o resultado de quando nos liberamos e nos desfazemos das projeções.

O amor não é um cultivo. É o que surge após a liberação.

Se a semente morre não nasce a árvore.
Quando a cera se extingue a chama se apaga.

Lembro da Ana falar a uma participante que fez um processo desses no encontro: o grande risco de você se liberar dessas emoções que te colocam em conflito com o outro, o grande risco de todo esse processo é você amar o outro. Poderíamos dizer também: amar essa pessoa contra quem você vem sustentando tanto mal estar: você mesma.

Antes de terminar esse texto que escrevi relaxado e cansado, gostaria de te presentear com um papelzinho que a artista me deu antes de nos despedirmos. Ela tirou um pedaço de papel do bolso e antes de me entregar, leu para mim com sua leveza de alma.

Renda-se se for capaz

Quando o amor vos chamar, segui-o.
E quando ele vos falar, acreditai nele,
Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos
Como o vento devasta o jardim.

Todavia, se no vosso temor,
Procurardes somente a paz do amor e o gozo do amor,
Então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez
E abandonásseis a eira do amor,
Para entrar num mundo sem estações,
Onde rireis, mas não todos os vossos risos,
E chorareis, mas não todas as vossas lágrimas.

E não imagineis que possais dirigir o curso do amor,
Pois o amor, se vos achar dignos,
Determinará ele próprio o vosso curso.

Amor, amor, amor
Entregue-se
Entregue-se a simplesmente ser.

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