sábado, 2 de maio de 2020

Sobre finalidades e conexões



Na última conversa sobre a Vila XI umas ideias ficaram aqui presentes em mim e fiquei pensando, pensando... observando... observando a mim mesmo... e a sentindo a validade dessas ideias. E aí fiquei com vontade de escrever. Primeiro porque amo escrever. E depois com a finalidade um pouco de tentar clarear para mim mesmo esses pensamentos e um tanto para trocar essas ideias com outras pessoas e ouvi-las.

Mas antes de falar sobre o que a Ana disse e sobre o que eu andei pensando, eu gostaria de convidar a você que está lendo essas palavras a não ler de qualquer jeito, a não ler com pressa. Mas a entender que essa leitura que nesse momento você faz é na verdade uma conversa que estamos tendo.

Eu sei que nos tempos atuais as leituras são rápidas, os textos são curtos, mal se lê, mal se entende, e menos ainda se tem tempo de deixar a leitura adentrar os poros do corpo e tocar as fibras do coração e as células todas da cabeça aos pés, e as emoções e os significados mais profundos das palavras e das ideias, dos sentimentos e das intuições que vão acontecendo durante a leitura. Por isso se você está nesse modo acelerado de ser, sugiro que pare aqui. Deixe o texto de lado. Deixe para outra hora.

Mas se você vai continuar, faça isso de forma a se dar esse tempo. E me dar esse tempo. Essa leitura é uma conversa entre nós. É como se estivéssemos sentados juntos tomando chá, sem hora para terminar. Então sente-se, respire, saboreie o seu chá e vamos conversar.

Vamos entender o que estamos fazendo. Enquanto você lê essas palavras é como se você me ouvisse dizendo-as. E ao mesmo tempo é como se você as estivesse pensando. Assim é que acontece a leitura: as ideias do escritor entram na mente de quem as lê como se o leitor fosse o próprio pensador delas.

Com o tempo a pessoa pode desenvolver um potencial de ler e discordar, ou ler e concordar, separando-se como se fossem duas pessoas separadas. Não concordo... essas ideias são "isso e aquilo", e eu penso diferente, eu penso "assim e assado". Ou sim, sim, essas ideias são claras, é assim mesmo que eu penso também, concordo inteiramente, e chegam a dizer: adorei essa pessoa que falou isso.

Outras pessoas conseguem ainda desenvolver uma habilidade toda especial de ler, incorporar as ideias como suas, pensar junto com o escritor e ainda recriar a seu modo o que foi escrito, aceitando partes, rejeitando outras e criando novas. Essas pessoas, como que por um milagre aparentemente confuso, se transformam em autoras do próprio texto que estão lendo. Em um certo ponto de vista foram elas mesmas que escreveram através do escritor que se tornou leitor.

E é assim que me sinto. Um leitor de mim que é outro e que agora é você. A conversa vai ficando boa e, seja pelo efeito do chá ou pro lugar onde as ideias nos levam, já não sabemos quem é você e quem sou eu... e então temos ao mesmo tempo um clarão na mente que diz que na verdade somos leitores de nós. E depois disso nosso coração dá um salto com a certeza de que já não há leitores ou escritores, nem texto, nem ideias, nem pensamentos. Nós simplesmente percebemos que há algo. Ou melhor, algo percebe que há algo. Que nenhum nome pode nomear. E a isso já chegamos no início da conversa. Imagina o que vem depois?

Já estamos aqui no fluir do chá, e das palavras e vamos então poder entender como tudo isso é diferente de quando estamos em um estado emocional de busca por finalidades. Esse foi o ponto que a Ana, ou na verdade eu, ou melhor nós, ou ainda algo trouxe na conversa sobre a Vila XI: quase tudo que fazemos na vida é para alcançar finalidades. Esse é nosso grande condicionamento. Um aprisionamento. Agimos sem que seja inteiro para nós, sem que estejamos inteiros, fazemos a partir de um cálculo. E na base disso tem a velha expectativa de ser legitimado, de ser aceito, de se adequar a uma auto-imagem e reforçar uma imagem positiva de nós mesmos.

Quando conseguimos parar essa atitude condicionada e olhar para ela, vemos como ela se faz presente em quase tudo o que fazemos. E se deixamos de alimentar os condicionamentos, em fração de segundos ganhamos espaços de liberdade. Espaços em que podemos partir de outro lugar. Esse lugar pode receber muitos nomes... mas o nome não resolve a coisa. Quando nos conectamos com esse lugar, com nós mesmos, as ações partem não com intenções mas com a fluidez, com naturalidade.

Então comecei a pensar em tudo isso que ouvi e que disse para mim mesmo. Ao ouvir a Ana falando dessa forma simples e verdadeira que vivemos para alcançar finalidades, que somos finalistas (amei o duplo sentido), e que, se antes, esperarmos o estabelecimento da conexão consigo mesmo, as ações surgirão como naturais e não forçadas, tudo me pareceu fazer muito sentido. Imagino que o sentido vem não das palavras mas como transmissão da pessoa que fala. Então a primeira conclusão foi: sim, faz sentido. A Ana como que mergulhou no lago e disse vem, pode entrar, é só entrar. Parece simples pra ela, mas pra mim... bom, eu comecei a ver que as buscas por finalidade também fazem sentido.

O primeiro exemplo que pensei foi assim: percebo que estou muito distante de um familiar meu.  E surge um sentimento, uma vontade de estar junto, estar mais próximo, mais presente em sua vida. Então decido convidá-lo para fazermos um programa juntos. Agi em busca de finalidade. Sim. Não vejo problema. O programa que fizemos juntos não é algo dos meus sonhos, sozinho eu não faria, mas fez sentido fazer com ele. E nos divertimos. E pudemos nos aproximar. Claro que eu tive oportunidade de me entregar na atividade. Acho na verdade que esse foi o segredo. Mas o passo inicial partiu de uma certa intencionalidade.

Por que eu me lembrei desse familiar? Não sei. O que me moveu convidá-lo? Não sei. Mas funcionou. O que eu poderia me lembrar agora que seria importante fazer? O que estou esquecendo, negligenciando?

Outros casos: quando tenho sede, bebo água. Não bebo água como um movimento natural, um fluxo natural que me leva até o filtro a buscar água. Tive a intenção de ir até lá, beber água com a finalidade de matar a sede. Qual seria o problema de buscar a finalidade de saciar a sede? E quando o filtro entope preciso consertá-lo. Não faço isso com toda a vocação da minha vida. Faço porque sei que preciso beber água no futuro.

Então, você que lê esses pensamentos há de concordar que tem vezes que a busca por finalidades é uma forma de corromper-se. Em outros casos é uma forma de simplesmente atender a certas necessidades.

Lembro de uma vez que estava procurando emprego e um amigo ia me indicar um amigo de uma empresa para que eu fosse trabalhar lá. Nesse dia ele ligou para seu amigo que lhe disse que iria a um boliche. Então meu amigo perguntou se podia ir junto e levar um amigo para apresentar. O moço disse que sim. Quando meu amigo me falou: vamos ao boliche? Eu disse: pode ser. E quando ele explicou: vai ter um amigo meu lá que quero te apresentar, acho que ele te consegue um emprego. Eu disse: não. Não posso ir a um lugar com segundas intenções. Esse seria um caso que, para mim, a busca por finalidades te corrompe. Meu amigo me chamou de radical.

Há outras corrupções mais simples, mas igualmente corruptoras. Só que eu tenho a impressão que enquanto não entrarmos no lago... vamos seguir sujos com essa poeira da confusão.

Então sentei para meditar.

Qual a finalidade da meditação? Estou sentado para alcançar algo?

Certamente. Se fosse para ter um momento agradável eu não meditaria. Ficaria comendo doces ao sol. Não me disciplinaria. Tem um esforço envolvido, passo por momentos difíceis e meu professor diz: fique na mesma posição, observe as sensações, se é prazer, observe o prazer, se é dor, olhe para a dor, veja como vai mudando, como é impermanente. Observe a impermanência... e assim... fico... mas não é nada fácil, há momentos que é fácil, há momentos que é difícil e isso também é impermanente.

Fui conversar com o Matheus que é um amigo nesse caminho de meditação e ele me disse: sentamos com aspiração sim, mas a questão é: com apego ou sem apego?

Se nossa aspiração é com apego ficamos a elaborar imaginações de como seria maravilhoso ter paz, amar as pessoas, ter a mente calma todo o tempo. Mas não trabalhamos seriamente. Ficamos felizes quando tudo é calmo e sentimos amor mas nos desesperamos quando nos damos conta da agitação e ódio em que estamos. Não observamos as sensações, só ficamos idealizando, gerando mais e mais apego.
Se nossa aspiração é sem apego, faço o trabalho que tem que ser feito agora. Observo. Observo. Mudou. Mudou. Veja, a sensação aqui já não está mais, surgiu outra. E fico ali, mente alerta. Não medito por meditar, claro que tem um objetivo, uma aspiração, mas faço o trabalho como deve ser feito. Momento a momento.

Se quero alcançar algo, e ao longo da vida temos muitos objetivos, e inclinamos nossa mente na concretização de algo, nos dedicamos àquilo. Mas não vamos com rigidez, imaginando que as coisas vão ser do jeito que visualizamos, presos a uma ideia, distantes da realidade como ela vai se  apresentando, vamos sim abertos a perceber momento a momento, e perceber a si ao longo do caminho e ir processando tudo isso isso passo a passo. Assim o caminho vai se fazendo e o trabalho é constante.

Isso trouxe uma nova luz. O objetivo está lá. Alcançar o nibanna.
De onde vem essa vontade de liberdade, de paz, de amor?
Das profundezas.
Um anseio que nos dirige. Quase que com a força de um destino.
É o destino.

O que fazer com essa vontade de nibbana?

Trabalhar aqui. "Sem fantasias, porque da noite pro dia você não vai crescer". Camadas e mais camadas de condicionamento vão emergindo e você vai lidar com elas. Conflitos e mais conflitos vão surgir externamente. E tudo isso vai ser bem vindo: insumos para o processo contínuo de atualização.

Essa nossa conversa está indo longe demais.
Talvez você esteja se dando conta de que estamos aqui nessa mesa de chá falando sobre a possibilidade da co-existência do futuro e do presente, estamos pondo em diálogo o Tao e o Nibbana e tantas outras coisas além da nossa amizade que se cultiva aqui.

Estamos no começo do mês de maio: quando se lembra da iluminação de Gautama, o Buddha.

É dito que buscar a iluminação é fugir dela.
Mas não sou eu quem a busco. Nem você. Nem nós. É algo. O que fazemos é dar espaço para algo em nossa vida. E algo nos faz meditar, algo nos faz ouvir a Ana, algo nos faz conversar e algo nos fez tomar esse chá aqui, enquanto tememos que a água do lago esteja muito fria para um mergulho.

Nossa! Por falar nisso, o chá esfriou. Espera um pouco que vou aquecer mais um pouco de água. Quer de outro sabor?

3 comentários:

  1. Oi André. Seu texto, nosso texto é de uma profundidade ainda insondável pra mim, ou melhor, reflete a nossa busca por uma liberdade da qual ainda não sentimos o sabor e a qual só expericiaremos quando não tememos a água fria do lago e mergulharmos nos tornando o próprio lago. Nosso texto me fez ver minhas incoerências nessa busca por não finalidade, que agora percebo, refletindo a partir do nosso texto, encontro quando brinco com o Bernardo, nosso netinho, que se diverte correndo atrás de mim e a minha criança aflora e torna-se felicidade. Gratidão por essa oportunidade de quase tomar um chá com você.

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  2. Meu chá teve sabor de frutas vermelhas e o que o tempo naturalmente esfriou meu coração aqueceu. Gratidão por compartilhar!

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  3. Publiquei no seu blog: André, o que você aqui escreveu me fez pensar em algo para o que não encontro respostas, mas move algumas de minhas questões nessa existência: a que exatamente pertencemos e em que medida a particularidade, a singularidade de cada um de nós cumpre algum sentido dentro desse algo? O sentido se faz no próprio caminho de entrega. Seu texto me leva a crer nisso. É preciso ceder, abrir-se, permitir-se. Não, não é fácil, pois há uma necessidade de controle, de saber, de fixar apenas o prazer e nunca a dor. A cabeça fica confusa... É preciso respirar, viver simplesmente, e... esperar. A espera já implica muita paciência, determinação, coragem. Ao esperar, também trabalhamos a suspensão interior da quebra das etapas. Há o tempo das coisas na vida que requer esperar o seu despertar. André, também me chamou atenção você dizer do leitor-escritor, o mesmo e o outro, e algo entre. Quem sabe, além? Chá ainda quentinho pra mim... Tomei chá hoje antes do meu costumeiro café. Mudança! Grande abraço. Silmara

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