terça-feira, 19 de maio de 2020

Eu e...


Depois dos estudos dos cinco elementos, Ana voltou a lembrar da importância de estarmos livres das tipologias e mantermos a mente aberta aquilo que nos singulariza, que nos torna únicos. Se ficarmos buscando ideais, comparando, vamos entrar num desequilíbrio que, em todos os tipos, o resultado é o mesmo: o desvalor. Quando nos sentimos menos, além de arder na inveja, começamos uma busca para compensar e aí o desequilíbrio aumenta e ficamos ainda mais distantes do que somos. 

Então que a gente fique aberto a possibilidade de um ter sucesso e isso não me gerar a sensação de fracasso. Cada um pode ter sucesso no seu próprio modo de ser. E as relações nesse ambiente rico pode ser de ganha-ganha. E não é isso que significa amor? Estamos nessa arte de viver, subindo o monte da arte de amar. E quem sabe lá do alto do penhasco mergulhemos no mar daquilo que não se pode nomear. 

Essa conversa toda sobre comparação e sobre a natureza de cada um me lembrou de um poema de Chuang Tzu, chamado “Grande e pequeno”
“Quando olhamos as coisas à luz do Tao, nada é melhor, nada é pior.”
Cada coisa manifesta-se do seu próprio modo.
“Todo cosmo é um grão de arroz e a ponta do fio de cabelo é tão grande quanto a montanha – e conclui – Esta é a vida relativa”

No fim do poema ele fala do dragão que inveja a centopéia, que inveja a serpente, que inveja o vento, que inveja o olho, que inveja a mente que não inveja ninguém. Kui, o dragão perneta inveja a centopéia por ela movimentar suas cem pernas enquanto ele movimenta uma com dificuldade. Ela responde: “Não sou eu quem movimenta. Elas se espalham por toda parte como gotas de saliva.”
A centopéia inveja a serpente que se movimenta tão rápido sem nenhum perna. A serpente lhe diz que tem uma maneira natural de deslizar que não pode ser modificada, “para que necessito de pés?”
A serpente inveja o vento que, sem ossos, nem músculos, nem método, sopra desde o Mar do Norte ao Oceano Meridional. O vento lhe respondeu que conduz-se sem obstáculos nesse trajeto. Mas que cada olho que o observa é superior a ele, assim como cada asa que o utiliza, e ele os inveja por isso. Mas conclui: São superiores a mim, “mesmo se desenraízo as maiores árvores, ou se derrubo grandes edifícios. O verdadeiro conquistador é o que não se deixa conquistar pela multidão dos pequenos. A mente é este conquistador – mas só a mente do sábio.”
Não se deixe conquistar pela multidão.
Não se deixe determinar pelo que vem de fora. Nos lembra Ana, encontro após encontro, citando Benedito Espinosa.

Eu olho para mim... e ouço uma multidão! Estou percebendo como estou me deixando me determinar por isso tudo que me vem de fora. 

Que vozes são essas que aqui estão, que necessidades não atendidas estão aqui dentro, impulsionando reatividades, padrões, crenças, busca de intervenções no mundo para corrigi-lo?

Quero nesse momento de nossa conversa trazer um exemplo do que tenho vivido aqui. Peço licença para partilhar meus sentimentos e processos e peço, acima de tudo, seus ouvidos amigos para uma escuta de uma pessoa que tá quase morrendo afogada em sentimentos. Espero que essa conversa possa retornar ao começo e nos singularizar e abrir caminhos de novas integrações.

Nesses encontros com a Ana venho mergulhando nessas possibilidades, e me observado, e observando os conflitos que surgem aqui, a minha volta, fora e dentro.

Ela lembra que os conflitos revelam. Geram atrito, que intensificam as singularidades, que trazem transformações e um novo fluxo de acontecimentos, fora e dentro. Assim aconteceu aqui em casa um mergulho desses a partir de uma ação muito agressiva.

Eu gritei com um menino de 5 anos! Foi assim: Ele estava com as outras crianças brincando na casinha da árvore. Aí, lá em cima, ele estava cuspindo. Por um lado era um cuspe inocente, ele vinha apresentando sinusite, salivando muito e estava ali, nos seus cinco anos de idade, aflito sem saber o que fazer, então andava cuspindo nos últimos dias, enjoado com o cheiro do catarro. Mas eu não sabia de nada disso. Eu estava ali embaixo e ouvi as outras crianças dizendo: para de cuspir! Eu não sabia exatamente o que estava se passando até que de repente um dos cuspes veio em mim.
Me senti muito mal veio aquela fúria, velha conhecida, tomando conta de mim. Reagi com raiva, me senti ofendido, e gritei com ele. Gritei o nome dele em voz alta. Me levantei e questionei: "o que é isso, cara?" Nesse momento parecia que estava confuso em mim se se tratava de uma criança ou de um adulto. Todo um universo de projeções simbolizadas no ato de cuspir como algo ofensivo, um jogo de poder, um ato de submeter o outro a sua força, a sua violência. O menino não teve nenhuma intenção, eu sabia. Mas nessa hora, tomado pela raiva e inundado de uma memória de dor, e com todas as ideologias em mente, eu gritei. Assim como os professores que sentem que precisam educar. Ele ficou paralisado. Certamente impactado com a minha reação. Para ele, não havia nenhuma má intenção e ele, certamente, não podia imaginar que o cuspe pudesse representar tanta coisa para uma pessoa. Um pouco me segurando consegui dizer algumas palavras menos condenatórias e me satisfiz em dizer: “eu não gosto que cuspam em mim”. E saí de lá. Outros adultos ficaram por lá e conseguiram cuidar das crianças, em algum nível, diante dessa explosão.

Então fui beber água e pensar em tudo aquilo. E olhar para dentro de mim o que era tudo aquilo que estava acontecendo. A vergonha de ter explodido com uma criança, o arrependimento. Claro que eu poderia ter agido diferente. Poderia ter a calma suficiente para explicar a ele para tomar cuidado onde cuspir, essas coisas... Para onde a raiva me levou? De onde veio tudo isso? Inevitavelmente fui fazendo esses mergulhos e buscando ampliar as dimensões do fato.

Mergulhando nos conteúdos da minha mente vi como o cuspe era um gesto carregado de sentimento de violência, de agressão, isso é muito ancestral. Um símbolo do exercício de poder, condenação, esconjuro. E daí me dei conta de que isso, em minha mente, é parte de um universo típico do masculino, das imagens que trago do que é ser homem, desde a minha infância.

Vinha na minha mente, com muita aversão, a imagem do homem, em rodinhas com outros homens, bebendo cerveja, cuspindo, coçando o saco uns olhando para os outros, contando vantagens de como são seus casos com as amantes e, ainda, da alegria de ser o todo poderoso em casa e bater na mulher. São cenas que presenciei e entendi desde menino que não queria fazer parte desse grupo, desse universo que depois ganhou, para mim, o nome de cultura machista. Percebi como era difícil ser homem. Você não cabe no grupo. E de outro lado não é por isso vai deixar de receber toda a carga das dores das mulheres que se sentem vítimas desse mesmo machismo. Então os machos te chamam de gay e as mulheres te chamam de macho, diante de suas atitudes machistas que você acaba reproduzindo. E você não se encaixa, e permanece um menino assustado no meio da guerra.

Pensei na guerra dos sexos e me perguntei se no meu grito contra um menino, não estava também a raiva das nossas mulheres contra os homens... as mulheres espectadoras da cena, em algum nível fazem parte dela, mesmo que perplexas diante do que viam. Daí me lembrei de um mini documentário que vi sobre uma aldeia matriarcal, que habita uma ilha africana. E lá a divisão do trabalho é muito semelhante a todas as outras aldeias de povos originários: Os homens caçavam e pescavam; as mulheres fazia a cestaria e preparavam a comida. Mas as decisões coletivas, a política, estava na mão das mulheres. As pessoas entrevistadas, homens e mulheres, eram unânimes em dizer: “os homens são o sexo frágil, não conseguem dar conta de tanta coisa, ter a sabedoria, a visão do todo.”

E aí me peguei olhando para nossa cultura ocidental, e em que cilada estamos, já que vivemos com nossa política nas mãos do sexo frágil, que se constrói culturalmente como sexo forte, num regime de submissão da mulher. Lá na aldeia o poder decisório estava nas mãos delas: o sexo forte, quem gera a vida. Elas que são líderes capazes de acolher, cuidar, e empoderar os homens, seus liderados, para que possam fazer o seu melhor.

Mulheres empoderadas são aquelas que tem a força de superar as dores da cultura hegemônica e empoderar seus homens naquilo que de melhor eles podem oferecer. Como podemos criar ambientes em que esse mútuo empoderamento floresça?, me perguntei.

Continuei minha pesquisa interna, para não ficar só intelectualizando, e vi como em minha mente os ditos homens fortes aparecem como violentos. Quando eu era criança havia um homem na minha família, eu o encontrava só de vez em quando... era sogro de um tio... eu ia brincar atrás da casa dos meus avós, perto de uma pequena horta e, de repente, ele aparecia sozinho. Ficávamos só nós dois. Ele estendia a mão e era meio que uma regra que você precisa apertar a mão quando um homem estende a mão. Ele apertava com força e machucava minha mão. Me olhava nos olhos e eu sentia medo. Ele dizia: eu vou matar teu pai.

Isso era muito forte para mim. Eu morria de medo dele. Quando ia para a casa dos meus avós já ia com medo se ele estaria lá. Às vezes ele me constrangia e olhava com esse olhar firme e dominador mesmo na frente dos meus pais e outros adultos e eu não entendia como ninguém fazia nada para detê-lo. Se achavam aquilo tudo um simples brincadeira, “cumprimenta o tio”, eles diziam nesse ímpeto de que criança educada cumprimenta as pessoas. Mas eu tinha razões para não querer apertar aquela mão. Um lado meu sabia que era brincadeira dele (uma brincadeira muito sem graça para mim). Mas o meu corpo inteiro morria de medo de tudo aquilo. Era o arquétipo do homem mau. Com o tempo meu tio se separou da mulher, e aquela família sumiu da minha vida. Lembro de uma vez ir numa casa de praia onde ele estava com a família dele e descobri que ele tinha um neto com uma grave deficiência, uma má-formação do corpo que permanecia um corpo de criança. E me lembro dele sendo muito carinhoso com o menino, ali na frente de todos, beijando todo o seu corpo com muito amor, na piscina, inclusive o pênis. Aquilo tudo era muito confuso na minha mente... e até hoje acho o ser humano, em sua diversidade, um grande mistério. Na outra polaridade, a referência de homem que não era violento, o homem bom, era “um banana”. Não era tão forte e perderia uma briga com o homem mau... (essas fantasias de crianças)... além disso, era submisso à esposa de temperamento forte que era quem, na verdade, mandava em casa, mas que longe estava do empoderamento feminino de acolhimento e liderança sábia das mulheres africanas.

Então ali estava eu, que não quero ser nem banana nem mau, intervindo no caminho de um outro menino.(Esse o problema, a desconexão... não querer ser isso nem aquilo o que faz de mim isso e aquilo) Trazendo a ele um universo que eu não gostaria de passar adiante. Mas que parasse em mim. Mas não consegui. Na minha irritação com seu cuspe inocente, havia toda essa história em meu gesto. Assim vemos uma criança ferida ferindo outra criança.

E aí volto aqui a esse trabalho com a Ana e, com a mente cheia de tudo isso, começa o encontro e ela sugere começarmos com uma prática. Vou contar pra você como é essa prática e se você quiser pode aproveitar e praticar comigo, agora que as nossas emoções estão tão à flor da pele e estamos pensando mil coisas sobre tudo isso. Vamos fazer essa prática e ver o que nos surge depois.

Comece observando a respiração. O ar entrando e saindo naturalmente, sem a necessidade de controlar. Simplesmente observe. E a partir de agora, vá dedicando alguns ciclos respiratórios para cada parte que vamos fazer.

Inspira imaginando o alto da cabeça, expira visualizando o assoalho pélvico. O ar vai para os pulmões, mas leve sua atenção para esses pontos do corpo. Inspirando: o alto da cabeça, expirando: a base da coluna, o assoalho pélvico. Feche os olhos... faça umas cinco respirações assim.

Agora muda... inspire e visualize o umbigo, expire percebendo os ombros.

E assim vai trocando... respiração natural, visualizando diferentes partes do corpo, fazendo essa conexão, inspira em uma parte, expire em outra.

Depois de um tempo, perceba o cérebro, há o hemisfério direito e o esquerdo. Que são diferentes, tem funções bem diferentes. Mas aqui procure perceber que é um e o outro. E não um ou o outro. O direito "e" o esquerdo.

Perceba os pulmões. E da mesma forma enfatize que são os dois. O esquerdo "e" o direito.

Assim também os rins. O esquerdo e o direito.

Veja agora o ambiente onde você está... perceba que é você "e" o ambiente.

Então amplie e perceba as pessoas que estão perto de você. É você e essas pessoas. E amplie para as pessoas que interagem no dia a dia com você.

Amplie e inclua seus pais, avós, e perceba que é você e esse círculo de pessoas.

Amplie mais e perceba os animais que fazem parte do seu dia a dia. Animais domésticos ou não, alguns até indesejáveis como barata, ratos, formigas. É você e esses animais.

Amplie e inclua outro animais que não estão aí mas você sabe que existem.

Então agora amplie incluindo os vegetais que vivem aí...
E perceba todos os vegetais...

Perceba as águas que estão aí perto, a torneira, o poço, o rio, o que for..

Amplie para todas as águas do planeta.

Perceba todo o planeta com seus diferentes ambientes... Você "e" o planeta.
Agora perceba todo o ar... e o sol...
E agora o universo infinito.
Assim vamos levando esse mantra... "E"

Eu e...

Fique um pouco em silêncio fazendo as suas conexões... eu e... aquilo que te vier...

E assim, depois que você fizer o seu exercício, venha ler o meu.

Comecei a perceber que as coisas não estão separadas. Eu posso nomeá-las, e elas parecem fora, mas estamos em composição.

Eu e as memórias... todas essas memórias aqui que te trouxe nessa conversa aberta
Eu e as violências... não só as que eu sofri ou cometi... mas as que vi em filmes, as que soube pelos livros, as que nem soube...
Eu e os violentos... os agressores... os maus... eu e todos eles. Estamos em composição. Eles estão em mim... 
Eu e os que coçam, os que cospem, os que batem, os que traem... estamos juntos.
Eu e as vítimas... os que sofrem...

Não separação... composição...

O que vem?

A sensação que me vem é uma comoção... que pervade, permeia o meu corpo...
Choro... choro por mim, por você, por todas as vítimas e por todos os agressores.

Eu e meu tio, eu e sua ex-mulher, eu e o sogro do meu tipo, e o neto dele...

Estamos todos aqui, na pulsação que sinto no corpo, na superfície da pele, na umidade dos olhos, no embrulho na barriga, na fraqueza dos joelhos... eu e...

Eu e o menino com quem gritei...

Eu e a minha vontade de pedir perdão...

Eu e o pedido de desculpas que fiz a ele. E as conversas que todos pudemos ter aqui entre crianças e entre adultos.

Eu e os textos de Chuang Tzu ensinando a não ser, e assim, ser... a não fazer, e assim fazer.

Eu e a bola de futebol que ainda poderemos jogar nesse dia de sol.

“O mundo não está pronto para que eu me posicione nele, mas ele vai se constituindo..." disse a Ana.

Eu e o mundo em constituição... 

Eu e o processo de emergir... de co-emergir... da Vida em suas diferentes composições.

Tudo que passou, tudo o que acontece... nada disso poderá jamais ficar de fora.

Ninguém que passou, que feriu, que marcou, ou até mesmo que fugiu... ninguém ficará de fora.

Mas perceber essa conexão com tudo não significa que seremos determinados por essas coisas.

Eu e os homens... nem maus nem bananas...
Eu e as mulheres... nem fortes nem fracas...

Pessoas... e os bichos... e as plantas... e a água... e a Terra inteira... e o ar... e o sol...


“Quando olhamos as coisas à luz do Tao, nada é melhor, nada é pior.”

"Uma coisa E outra
Vida é unidade
No pulsar da existência
Todas as possibilidades

Separação em composição
Alinha, transborda e testemunha a Criação
O eu referencial
Não existe de fato
Não passa de mero boato
Pois se atualiza a cada ato
O Eu nunca é
Está sempre surgindo
Se auto-cria e co-emerge
Na diferenciação

Nada fixo
Nada de-terminado
Resiliência
Não há mundo pronto
No final, não tem um ponto
Reticências" (poema de Helô Akbal, participante da jornada)

(num texto futuro te conto a continuidade dessa historia entre eu e o menino, tem uma historia bonita pra contar, mas fica para outro dia)

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