Quando ela chegou, eu estava na cozinha externa, sentado no banco comprido do mesão.
- Oi.
- Oi, bom dia!
- Bom dia. Dormiu bem?
- Sim... estou bem descansada. Fazia tempo que não dormia bem assim. E
você?
- Não sei bem. Tive muitos sonhos, não me lembro direito.
- Mas como você tá agora?
- Pois é. Não sei, tô meio estranho, tá tudo meio esquisito.
- A jornada né?
- Acho que sim. Estamos vivendo uma travessia. E o processo está muito
intenso.
E sentou-se do outro lado da mesa.
- Sim, tá muito intenso pra mim também. Pra todo mundo.
- Nossa! Não imaginava que poderia ser tão intenso. Não é um simples aprender
alguma técnica ou um conhecimento novo... remexe em coisas internas e aí desestabiliza,
tudo parece virar de cabeça para baixo.
- Sim. Uma coisa que me ajudou bastante foi a sessão de estudos de
astrologia com a Lívia. Olhando para a mandala ela foi trazendo os símbolos de cada
casa e eu fui me vendo, me descortinando. Estou vendo essa coisa da raiva ser minha primeira reação às contrariedades e lá ela falou de uma coisa escondida (talvez no inconsciente)
de uma necessidade de ser valorizado... então estou
vendo essas coisas como uma polaridade, de um lado eu busco valor, de outro sinto raiva pois desvalorizo o outro (e na verdade a mim mesma) e esses dois polos fazem triângulo com uma vontade de amar
e cuidar que acabam me levando a querer resolver as coisas, implementar as soluções justas, sem dar chance aos outros encontrarem por si mesmos seus caminhos.
- Uau! Quanto material para se olhar.
- É... mas isso é tudo muito intuitivo, não dá pra ficar só
racionalizando. Ela mesma falou: ouve isso e deixa todo esse material ir
decantando em você... tenho a impressão que isso vai se integrar nas minhas
ações e eu mesma nem vou precisar fazer nada.
Ficamos um pouco em silêncio. Daí eu falei:
- Eu tenho uma sensação estranha: parece que eu nunca te vejo. Esse tempo
todo juntos... eu olho pra você, mas... sem te ver. Sem te ver de verdade,
sabe? Ver quem você é.
- Como assim? O que você vê então?
- Não sei bem... parece que é uma imagem turva, às vezes parece que há um
véu que distorce seu corpo, suas expressões faciais. Isso vai parecer uma loucura...
não sei bem como explicar. No último encontro com a Ana, enquanto ela falava de
biomagnetismo, liberação de emoções, eu fui te olhar e parecia que a imagem
ficava turva, como se duas imagens diferentes se sobrepunham, e havia um
pequeno deslocamento para lá e para cá, como se eu visse duas: uma, a pessoa
que eu costumo ver... e outra... uma pessoa nova, que quase nunca vejo, mas que
às vezes aparece, que parece ser a verdadeira.
- Fala mais.
- Não é que você seja duas... é que meu olhar primeiro, vem totalmente
antecipado por uma emoção minha. Que pinta você das cores
da minha emoção. Sempre estou achando que você pode estar zangada, querendo mandar em mim.
- Sim, sim, são projeções.
- Pois é, eu projeto o filme e você é uma personagem, mas... eu sei que tá
errado, mas não consigo sair disso.
- Eu sinto a mesma coisa. É difícil interpretar
suas expressões. Às vezes você está só calado eu acho que você está triste ou
com raiva, e logo acho que é comigo. E aí já vem uma enxurrada de pensamentos
para contra argumentar coisas que você nem falou.
- Loucura, né? Eu às vezes olho para você e você parece estar brava. E você
está bem, mas eu não consigo perceber assim. Ouras vezes é assim: quando você vem
e pergunta se eu estou bem. Pronto. Eu já sei que você não está bem, porque
você deve estar achando que eu estou mal, mas eu estou bem, mas você está vendo
tudo com cores do seu mal estar... nossa! Isso é uma embolação! Então qualquer
coisa que eu responda você já leva a mal... você já percebeu isso?
Silêncio
- Ah... eu prefiro não responder agora. Senão pode vir uma resposta muito
do mental.
- Verdade. E essa confusão toda não é só da vida de relação. Isso é da
própria mente. Quantas vezes a gente tá nesse estado, cheio de pensamentos, com as marcas emocionais na superfície da mente. As estrelas
estão no céu e não vemos. O céu tá azul e a gente não percebe. Então é uma
mente inferior mesmo. Essa é a nossa mente. Acho que a gente vai evoluir, mas
preciso reconhecer que minha mente é muito assim. Aí junta uma pessoa de mente
inferior com uma pessoa de mente inferior... e o cotidiano da relação fica
assim...
- Projeção em cima de projeção em cima de projeção... sintoma sobre
sintoma sobre sintoma. E às vezes tem um campo a nossa volta, né? Então por
vezes eu sinto emoções que parecem que não são minhas, mas das outras pessoas
que convivem com a gente.
- Sim, às vezes eu me pego com um gestual e um sentimento que acho que
são de um amigo. Esse é o nosso mundo. A Ana quando falou do biomagnetismo
estava dizendo que pode acontecer de uma bactéria patogênica se alimentar de um
vírus estruturante. Depois vem um fungo e se alimenta dessa bactéria. Isso gera
um equilíbrio. Mas um equilíbrio no adoecimento.
- A gente se acostuma com o que tá ruim. E se esquece do que somos quando
conectados com a fonte original.
- Então nosso trabalho não é simplesmente tomar um remédio para eliminar
o fungo e eliminar a bactéria... ou atuar com os pares de ímãs seguindo o
protocolo do Dr Goiz, ou seja lá qual técnica de cura poderíamos usar. Mas mudar o
comportamento. Acolher os sinais que os sintomas trazem, para uma mudança de
comportamento, de relação... ir mais profundamente nas causas... que estão em
nossa busca por controle, garantia, segurança, aceitação... para lidar com algo
que ficou marcado lá atrás, em geral na primeira infância, um sentimento de
rejeição, um medo, um desamparo. Passamos a vida nos protegendo... e não
aprendemos o que é verdadeiramente cuidar.
- Proteger e cuidar. Interessante isso. Me protejo e deixo de viver. E
chamo isso de cuidar. Um belo engano.
- E integrando tudo isso, controle e desproteção, rejeição e necessidade
de legitimidade, nos abrimos à vida, às relações... e entramos num equilíbrio que
é dinâmico.
Ela se levantou, pegou o copo e se sentou do meu lado, no mesmo banco, virada para mim. Servi o suco de uva, e comemos juntos umas castanhas caramelizadas que preparei. Ficamos
um pouco em silêncio. Eu me virei me sentando em sua direção. Entrelaçamos nossas pernas. Nos abraçamos. E
ficamos assim por um tempo. Pude inibir os óbvios pensamentos sensuais que surgem em momentos como esse e me abri para sentir, sem fazer nada, simplesmente estar ali. E uma das coisas que fiz foi falar. Isso foi uma grande novidade porque em geral evito falar para não perder a conexão que é só corporal. Abri mão do controle de controlar... fiquei muito a vontade para falar e conversamos assim, pertinho um do outro.
- Nossa, me veio um insight nesse abraço!
- Sim, parece que tudo mudou. Tudo que estava aqui agora se desfez.
Ficamos nos olhando, olhos nos olhos. Depois de um tempo sentindo esse esvaziamento que nos chegou, perguntei:
- O que você sente?
- Amor.
Depois de um silêncio que acolheu a grandeza do momento:
- Tem uma coisa estranha.
- O quê?
- Eu olho nos seus olhos e vejo o desconhecido. Quero dizer: eu vejo sua
pele, sua forma e é como se isso fosse uma casca. Uma casca que reveste algo
que é desconhecido. Eu não conheço você. E essa angústia de não conhecer é também amor. É até estranho dizer “eu
te amo” porque eu não sei o que quer dizer esse “te”.
- Sim, mas quando eu digo que sinto amor não quero dizer que amo você
como pessoa. Eu amo. Percebo o amor como algo universal, pelos vizinhos, por
todos, um amor que está aqui, e o sinto por você também.
- Abraça mais um pouco.
Ficamos assim abraçados. E ela disse:
- Esse abraço parece como um chá quente que desce para a alma e a energia
sai da cabeça que estava aqui cheia de pensamentos. Isso dá uma paz.
- E eu sinto que o amor no relacionamento não é um fim para se alcançar.
Sabe? Esse desejo de ser feliz num relacionamento... não... o relacionamento é
um meio para a gente ir mais fundo na gente mesmo.
- É um meio e um fim, né? Bem no caminho do zen. É o meio e é o fim.
Deitei-me com a cabeça em sua coxa e fiquei. Ela me fez um carinho bom. E
me disse:
- E isso que a gente faz aqui também influencia o campo a nossa volta.
Estarmos aqui em amor... leva algo até os outros.
- Sim.
- Seria bom se a gente fizesse isso sempre, né? Quando algo não vai bem a nossa volta a gente se conectar assim...
- Pois é, mas a gente não consegue controlar isso tudo...
E perguntei:
- Posso incluir essa nossa conversa no livro?
- Sempre que você estiver sem inspiração para escrever pode me chamar, ela disse se insinuando.
- Só se tiver abraço.
- Seria ótimo!
- Acho que a gente tá entrando na Era de Aquário.
- Aquário para mim é muito limitado. Eu quero a Era do Oceano.
fiquei sorrindo aqui. que bom viver num mundo em que essa conversa é possível.
ResponderExcluirGente!!! Que lindo!
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