quinta-feira, 28 de maio de 2020

Carta aberta a Ana Thomaz: meditação


Teresópolis, 28 de maio de 2020.

Querida Ana,

Hoje de manhã me sentei para meditar e coloquei, no início do período de meditação, a gravação da condução que você fez no último encontro da jornada da travessia. Depois da condução eu desliguei o vídeo e fiquei sozinho mantendo a prática.

Começamos com a contenção dada por você com a experiência dos metrônomos. Eles começam com ritmos diferentes. Os metrônomos são aparelhos que tem a função de manter o mesmo ritmo e isso orienta os músicos a marcar o tempo da música quando estão estudando. Só que no experimento os metrônomos são colocados juntos, um "ouve" o outro, e começam em tempos separados. O barulho fica confuso. Mas com o tempo algo extraordinário acontece. Eles começam a entrar em sincronia. Até que todos pulsam juntos em uma só "voz". Aqui um vídeo com esse experimento. E depois de um tempo, você ainda lembrou, eles voltam a pulsar em ritmos singulares, e depois voltam a se unir. Existe uma atração ao centro que é a união.

Com isso em mente fizemos de nossos corações, os metrônomos da nossa prática em conjunto. Observando as batidas do coração e, mesmo sem medirmos, saberíamos que em algum momento eles bateriam juntos. E depois bateriam em separado. Isso nos deu um contexto afetivo à prática... um vínculo entre os participantes... uma sinfonia de corações... e também nos dá um insight da verdade de inter-conexão de todos na teia da vida.

A condução foi mais ou menos assim (recomendo a quem for ler essa minha carta a você que pratique lentamente, dando um tempo entre uma frase e outra):

"Começamos sentindo a pulsação cardíaca. Atenção ao coração, ou a pulsação em alguma outra parte do corpo.

E então vai observando a sua imagem retrocedendo no tempo. A sua imagem o ano passado, o ano anterior...

E assim vai voltando ano a ano, rapidamente como num filme, ficando mais e mais jovem, de ano a ano, vai chegando à adolescência...

E a partir daí além de voltar no tempo e rejuvenescer, você vai ficando menor, uma estatura menor. Você vai ficando cada vez mais criança, diminuindo de tamanho até que se torna um bebê, retorna ao momento do nascimento, muito menor, muito mais jovem...

E depois vai voltando ainda mais, mês a mês no útero, o nono mês, o oitavo, o sétimo, o sexto, o quinto, o quarto e aí a gente já como feto, volta de semana a semana...

Vai voltando até que vira embrião, e aí a gente volta dia a dia, até que vira a primeira célula e volta minuto a minuto até chegar no pulsar.

E ali não tem mais célula, só tem um pulsar.

Você sai do útero e vai para a órbita da sua mãe. Dá uma volta inteira na órbita da sua mãe, o que vai durar 9 meses.

E sai da órbita da sua mãe e há como que um ponto gravitacional que vai puxando todos os pulsares singulares para um único campo. E agora tudo é um campo só, em um único pulsar. Todas as partes se uniram e se misturam e ficaram em um único pulsar. Não há nada mais que esse pulsar.

Mas esse próprio pulsar tem intervalos. E a gente vai alargar os intervalos. Entre um pulsar e outro, o intervalo, o silêncio vai ficando maior.

O pulsar não vai embora, é o silêncio que aumentou. Aumentou de tal maneira que a gente não ouve mais o pulsar. A gente sabe que o pulsar está lá, mas não ouve.

A gente ouve o silêncio, o intervalo. Vamos colocar a nossa atenção nesse silêncio, nesse intervalo.

E a nossa atenção não vai vir da nossa mente que ordena, que presta atenção. Quem vai dar atenção a esse silêncio é o nosso coração, a gente dá atenção a esse silêncio pela pulsação do nosso coração.

Escuta esse silêncio com o coração. E vamos reconhecer que sempre nesse silêncio surge uma pulsação. E é com essa atenção, com esse coração singular que faz parte de uma grande sinfonia, afinando a nossa orquestra, com esse intervalo ativo, a gente volta a conversa."

Com essa condução nós começamos o encontro de ontem.
E com ela iniciei minha prática de meditação de hoje de manhã.

É difícil falar sobre o que se passa quando estamos sentados. Porque estamos parados. Para quem vê de fora parece que nada acontece. Mas muita coisa acontece para que nada aconteça.

Fiquei sentado por uma hora. Antes de ouvir a sua condução, coloquei o relógio para despertar para daí a uma hora.

Não consigo ficar quase nada de tempo observando só o silêncio, o intervalo entre a pulsação. Mas era assim, estavam presentes ao mesmo tempo a pulsação, a pulsação do meu coração e o silêncio. Ora um, ora outro, ora ambos, ora a dispersão em pensamentos, imagens... isso é parte do exercício, creio eu.

E o corpo estando presente... volta e meia chamava a atenção para outras partes. Uma coceira no rosto por exemplo. Um pontinho na maçã do rosto coçando. Uma sensação de ar. E aí vem a vontade de coçar. Lembro do que você chama de inibir a ação. Então não mexi o braço. Mas senti o ombro, de uma forma muito sutil, criar uma tensão (como a dizer: vou me mexer) e no momento seguinte ele relaxar.

Depois veio uma percepção que me pareceu mais profunda. Anterior mesmo ao estímulo a me mexer, um pensamento. Um pensamento que reconhece a coceira. Então comecei a entrar num zigue zague entre o pensamento e o retorno ao coração e o espaço foi alargando, o espaço entre o pensamento e o silêncio da mesma maneira que você havia conduzido o espaço entre um pulsar e outro. Estava mais claro para mim os momentos em que o foco saía do coração e ia para os pensamentos.

E ficou nítido que variava a frequência mental. Quando surgiam os pensamentos, eles eram frutos de uma certa dispersão, uma oscilação maior da frequência. Quando voltava ao coração, havia uma outra frequência, mais concentrada, mais aqui, mais presente (não sei bem que palavra usar).

E assim o tempo foi transcorrendo. Idas e vindas, vindas e idas. Admirado desta vez de estar mais afiado, mais astuto, a perceber a hora em que os pensamentos começam, as alterações na respiração, uma sensação e outra... E eu acho, não lembro bem, que até comecei a dar atenção a alguns pensamentos, não do lugar da dispersão, mas do lugar do coração. De qualquer forma, estava ali sem nenhuma busca por êxtase, sem nenhuma busca por algo em especial. O simples observar. O reconhecer o que é, aqui e agora.

Num determinado momento, quis experimentar a possibilidade de sentir o corpo, parte por parte (tal como venho fazendo em minha prática pessoal de vipassana), mas mantendo o centro nesse lugar do coração. Fiquei na dúvida se faria sentido essa mistura, essa junção de técnicas... Porque em minha prática de vipassana não é um simples passar a atenção, mas uma investigação da impermanência, da mudança nas sensações.

Investigação...

Quando a investigação vem da frequência da mente que analisa?
Quando a investigação vem da frequência da mente que só sente?

Nos textos que ensina vipassana, Buda fala: observe a sensação na sensação, o corpo no corpo, a mente na mente, os conteúdos mentais nos conteúdos mentais...

Então não é a mente que observa o corpo... é o corpo que observa o corpo!!!

Como fazer isso?

É porque é muito sutil e é difícil falar disso aqui fora. Mas lá no interior da gruta do corpo, onde há silêncios e ecos de silêncios... faz sentido.

Estamos falando da qualidade da observação. Uma observação que reconhece mas não entra em elaborações, não nomeia, só sente. E vez ou outra se dá conta da mudança, da impermanência, da vacuidade, do campo todo, da parte, do todo, da vontade, do amor, do surgir dos pensamentos, do desaparecer dos pensamentos, das memórias, das polaridades e de uma realidade além das polaridades...

Tomei a decisão fiz uma passagem da atenção pelas partes do corpo... e fui experimentando essa possibilidade. Cada parte do corpo sendo vista ora pelo coração/gruta/silêncio/pulsar, ora da mente/superfície/pensante/avaliativa. Oscilando e trabalhando...  Me lembro de quando retornei àquela coceirinha e ia aprofundar as percepções ali...
O despertador tocou.

A manhã foi passando, tivemos outro encontro da Vila XI, e ao final fiquei relembrando isso e fui conversar com a Gabriela sobre os nossos próximos passos. Como estamos vendo nossa ligação com a Vila XI e nossos processos pessoais.

Contei pra ela que mudou muita coisa nas minhas expectativas com relação a vida, trabalho, local de moradia... para nada disso tenho planos definidos. Mas que eu gostaria de pedir ajuda a você nesse meu processo de aprendizado da meditação.

E aí ouvi também a Gabriela falar da vontade dela em aprender a meditar e que ela via em você uma pessoa que poderia ajudar. Uma bela sincronia de corações, não é mesmo?

Conversando aqui... vai ficando claro que são muitas ferramentas, muitos processos que transbordam e ressoam, e que existe um lugar que é anterior a tudo isso.

Anterior, do anterior, do anterior...
Interior, do interior, do interior...

Gostaria de aprender a meditar.

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