sábado, 23 de maio de 2020

Transmutações à beira do mar


Eu venho contando a você um tanto do que estamos vivendo nessa jornada com a Ana.

E essa é mais uma das nossas conversas e para começar quero te sugerir a pensar que, apesar de estarmos no começo do texto, o final da conversa já está em você.

Não é que você vai pular todas as linhas, que vai dar uma passada de olhos e ler só o último parágrafo. Não, não. Quero dizer que vamos tecer aqui juntos umas ideias e que o final já está aí, dentro de você. Eu não sei o que é. Mas não é algo que venha de fora. É algo que já está dentro. 

Preciso também te dizer que o grupo todo da jornada está tão criativo que conversas como essas, em diferentes linguagens, já se espalham de uma forma incontável.
Então quero que você saiba que essa aqui é só uma pequena parte do todo.
E isso não diminui em nada o valor da nossa simples e boa conversa.
Afinal, a parte contém o todo.

Se você estiver aqui de uma forma inteiramente presente, vai conseguir, não sei bem como, ouvir também as outras histórias e saber das múltiplas criações que aconteceram ao longo desses encontros. 

Palavras alusivas...
Um dia escreverei um texto puramente alusivo, em alusão ao mistério.
Um texto puramente silencioso. 
É o sonho de todo escritor.
Cada palavra uma delimitação... cada não dito, uma expansão.
Palavras e silêncios... assim a vida se compõe no livro do universo.

Talvez se junto com a leitura, a gente conseguir perceber o silêncio. No silêncio talvez lhe venham as outras vozes, já que estamos quebrando paradigmas e fronteiras de tempo e espaço. Então lhe chegarão outras cores, sons, texturas, ritmos, risos, lágrimas, experiências... que irão compor com a sua própria experiência essa nossa jornada da qual somos todos a (p)arte e o todo.

Um só livro pode conter a biblioteca inteira. 
Mas isso depende mais do leitor do que do livro.
Um leitor que, assim que lê, começa também a escrever as páginas da sua própria vida, suas próprias histórias é, ele próprio, um livro.
Então já não sei se falo com uma pessoa, ou se com os diversos personagens de uma história de vida.

Além disso, nesse continuum de mudanças e influências mútuas... o que garante que quem trouxe esses pensamentos ao escritor não foi você mesmo quando saiu em busca de um pensamento?

Enquanto faço o que amo, escrever, sinto que estou simplesmente cumprindo o destino.

Um destino que gira como um carrossel.

Não é linear. É cíclico.

Você consegue levar sua imaginação ao passado, em algum momento da vida, e de um momento a outro, ligando os diferentes pontos, saber qual foi o momento inicial que fez com que essas palavras partissem em sua direção? Por que foi que você me fez escrever tudo isso? De onde você tirou essa ideia da Ana nos propor uma jornada? De qualquer forma, te agradeço por tudo isso. Você que é o início e o fim desse texto.

(às vezes me pergunto se converso com o leitor ou o próprio criador)

Vou te contar o que aconteceu no dia em que a Ana convidou todo o pessoal da jornada para fazermos nosso encontro na praia. O grupo se reuniu e a Renata conduziu uma prática de yoga. Ao final ela cantou uma música, de Troy Rossilho, chamada Inimaginável (clique aqui para ouvir a música). 

Então ficamos ouvindo a música sentados de frente para o mar. Ficamos olhando o ir e vir das ondas, ouvindo a música, o som do mar, sentindo o calor agradável do sol da manhã, fazendo uma viagem para dentro:

"Um dia eu vou me perder
Eu vou entrar fundo
Eu vou atravessar a fronteira
Mais escura do mundo
Um abismo nublado
Pode estar tramando algo
Inimaginável
Inimaginável
Eu vou fazer turismo
Dentro do próprio organismo
Eu vou me aventurar no meu centro
Não posso fugir de mim se só tenho saídas pra dentro"
Ana agradeceu pela aula e pela música e conduziu um exercício mais ou menos assim: (sugiro que você faça pausadamente, dando um tempo a cada frase)

"Chamei vocês aqui para observarmos os ciclos das ondas junto com os ciclos internos e os ciclos da  vida.        

Comece observando a sua respiração.

Em especial vamos perceber os ciclos.

Assim como o ciclo da nossa vida começa na primeira inspiração e termina na ultima expiração.

Ciclos dentro de ciclos.

Perceba o ciclo da respiração. A inspiração começa. A expiração conclui. E um novo ciclo se abre.

E ao mesmo tempo a pulsação do coração também está aí.

E mesmo a inspiração tem um começo, uma duração e um fim. 

E a expiração também tem seu começo, seu meio e o seu fim.

Perceba todos esses ciclos. O ciclo da inspiração, o ciclo da expiração... e o ciclo que se inicia quando o ar entra e expira quando o ar sai.

E assim temos um número de batimentos cardíacos por minuto, uma quantidade de vezes que respiramos por minuto. Temos o ciclo dos minutos. Um minuto, outro minuto e assim por diante.

E dos minutos, sentindo o a respiração e a pulsação do coração, lembre-se que há o ciclo das horas. 

E depois os ciclos dos períodos do dia: manhã, tarde e noite. Perceba como são cada um desses períodos para você. E o ciclo do dia e da noite.

E aí com sua respiração e pulsação, lembre-se do ciclo dos dias da semana, de segunda a sexta, as atividades que transcorrem do início da semana até o final da semana.

O sábado e domingo tem seus ritmos próprios também, para muitas pessoas.

Temos os ciclos da lua que é um pouco mais do que os 7 dias para cada uma das suas quatro fases.

Os ciclos dos meses. E as estações do ano. E a passagem dos anos.

Para alguns aqui do grupo é comum perceber os ciclos por setênio, de 7 em 7 anos... reveja sua passagem no tempo de 0 a 7, de 7 a 14, e assim por diante...

Existe o ciclo de 10 em 10 anos...

Ou ainda um ciclo mais amplo: a infância, a adolescência, a fase adulta, a velhice...

Existe o ciclo de 100 em 100 anos...

Os ciclos das gerações...

E assim, um círculo dentro do outro.

Perceba todos esses círculos... da respiração, às gerações, passando pelas fases da vida, pelas fases do ano, do dia...

Agora que internalizamos os ciclos, vamos olhar as ondas do mar.

A cada vez que você expira, a onda vai até a areia da praia.

A cada vez que inspira, as águas retornam ao mar.

Na sua respiração, as ondas do mar.

Agora imagine-se dentro da água, boiando no fundo, sentindo a passagem das ondas que te elevam a cada onda.

Então você faz como um surfista. Que numa prancha, vai junto com a onda... e quando entra na onda, não há movimento, ele consegue ficar em pé. E assim ele vai até a areia...

Eu trouxe vocês aqui hoje para dizer essencialmente uma coisa: não subestimem o poder da observação. É isso que temos falado a cada encontro.

Para mim, o que chamamos de inibir as ações, no significado que é dado na técnica Alexander. Não é ficar inibido, tímido. É inibir a primeira reação que vem a mente. E observar. Um caminho de observação. E agir depois dessa percepção. Ao invés de agir no automático.

Assim como o surfista, ir com a onda, estando parado. Ficar parado sobre o prancha enquanto a onda o leva é a grande aventura. Observar é a grande aventura. Um caminhar para dentro, a aventura de ir para o próprio centro, se despindo das marcas emocionais que aprisionam nosso olhar, e por isso só temos saída para dentro.

É isso que estamos chamando de amor. 

Entrar em relação sem um pensamento e uma ação pré-determinados, sem reatividades.

Sem escudos. Sem velhos condicionamentos.

E isso gera uma transformação pessoal.

Só então acontece o amor.

Amar é se transformar."

Depois de ter dito isso, Ana ficou em silêncio e o grupo ficou um pouco em silêncio também. 

E aos pouquinhos cada um foi fazendo seu movimento. E ainda juntos, algumas pessoas cantaram umas músicas. Foi um momento artístico muito sensível. A Jaqueline trouxe um poema. Nesse momento já estávamos em um círculo. Ela foi até o centro e disse:

Ciclos do encontro

a relação.

da relação,
o conflito.
do conflito,
a potência.
da potência,
a ação.
da ação,
o não.
do não,
o sim.
do sim,
a vida.
da vida,
a morte.
da morte,
o novo:
ENCONTRO

Só há verdadeiro encontro, e portanto verdadeiro amor, quando se permite viver o fluxo desses processos todos. Que geram a morte de tudo aquilo que sustenta a identidade fixa. E essas mortes dos condicionamentos, esse ficar pobre de crenças que vai permitir a chegada do novo. 

Repletos de vida e coragem, cada um foi seguindo um caminho, tínhamos o dia inteiro para integrar tudo aquilo que estava sendo sentido na relação com o mar...

Eu fiquei me observando, mas ao mesmo tempo, estava muito curioso para ver o que aconteceria com as pessoas ali. Acho que pela vontade de vir aqui te contar tudo isso, fiquei com vontade de registrar o que se passava com cada um. 

Não deu para acompanhar todos mas posso te dizer que uma moça, que tinha grande paixão pela música, foi caminhando até a água, molhou os pés e estava encantada com o som das ondas, seu ritmo, sua profundidade... e ali naquele ambiente de abertura e criatividade ela ficou curiosa para ouvir o som de dentro do mar. 

Mergulhou. E nadou para um pouco mais fundo. Debaixo d'água foi ouvindo, ouvindo e aprendeu a discernir as canções das baleias, que se comunicam umas com as outras a centenas de quilômetros de distância. Nossa amiga ficou tão encantada com a sonoridade e percepção das baleias que se desencantou inteiramente com os limites da mente humana. E naquele misto de encanto e desencanto, cantou uma canção triste... que foi se transformando num êxtase de vida a tal ponto que sua pele foi se transformando... e passo a passo a moça se tornou uma baleia e seguiu junto com as outras da espécie que vivem no fundo dos oceanos. E as amou.

E assim o grupo conduzido pela Ana na jornada da travessia foi, um a um, se transmutando.

Um amante das ideias ganhou asas e seguiu com as gaivotas, e viu como estava cansado dos pensamentos rasteiros a que se dedicava ao longo de toda a vida. Voou feliz. Uma amante dos ciclos mais longos, cansada da ansiedade humana em sua busca por finalidades facilmente substituíveis, pode sintonizar e ouvir as histórias que as pedras contavam umas às outras na beira do mar e ficou ali parada, reconhecendo ter nascido para contemplar. Floresceu pedra. Outros foram seguindo e se transformando guiados pelo encanto e pela redescoberta de si mesmos. Teve gente que virou areia. Vento. Peixe. Palmeira. Um outro virou formiga, encantado pelas miudezas. Uma menina queria virar bambu mas fazia tanta questão de começar broto que surpreendeu-se bambuzal, e descobriu a origem da paz, palavra tão procurada e jamais atingida. Ficou sem palavras e a alcançou. Um outro floresceu no cacto e desvendou o segredo do amor. Teve gente que se iluminou vaga-lume. E um ardoroso comunicador,após a meditação guiada, silenciou tão profundamente que pode adentrar o mundo dos ecos e começou um diálogo no universo dos morcegos e, assim, já não pode voltar atrás. Uma amiga foi ao mar, nadou até a chegada do rio e descobriu na subida seu caminho: virou rio ou montanha, não se sabe. E teve um que virou sal e mergulhou feliz no mar da dissolução.  

Eu via aquilo tudo e não conseguia acreditar. Não tinha ideia até onde essa observação dos ciclos poderia nos levar. Estavam todos felizes com tamanho acontecimento. E ninguém ansioso querendo ir atrás um do outro. Cada um, cada uma, em sua escuta, sentia quando era seu momento de seguir e transmutar. Sem competições, sem comparações. Apenas um reconhecimento. Um destino. E ninguém sofria com a ideia que estaríamos perdendo nossos amigos para sempre... uma estranha intuição nos dava a confiança que entraríamos num outro tipo de vínculo. 

De repente, ao meu lado, um menino sentado na areia, começou a dedilhar o violão.
Cheguei perto, me sentei ao seu lado, e ficamos ali aquecidos pela fogueira.
O som do violão me levou a um estado muito relaxado de paz.
Começou a cantar uma música que começava assim:
"O sol Manhã de flor e sal E areia no batom" (Para ouvir a música inteira clique aqui)

Naquela mesma hora não acompanhei mais a letra da música exatamente, mas fui embalando um voo na direção do sol...
Percorri toda a superfície da água do mar...
E quando parecia que eu ia chegar ao sol que se punha no horizonte
Ou a um país além do mar
Percebi que eu já não sentia o frio do entardecer.
Mas um calor.
Percebi que voltei à barriga de minha mãe.
Pude nos ver construindo em parceria a placenta.
Eu e minha mãe.
Dela, de seu dentro, e depois de seus braços, seu colo, seus peitos, seus beijos
recebi abrigo quente
Suficiente
Para hoje estar aqui
Pleno de carinho e calor
Sorrindo amor
Ternura, compaixão
Renconciliação

E meu amigo, enquanto terminava a música
cantou o último verso: "Todo homem, precisa de uma mãe."
deixou de lado o violão
e virou mãe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário