terça-feira, 12 de maio de 2020

Interexistência


Quero convidar você a respirar.

É assim: observe a respiração. O ar que entra, o ar que sai.
E só depois de observar um pouco, continue a ler as linhas abaixo...
Deixa que o ar entre e saia. Não precisa sugar o ar.
O que muda se você faz isso?
Veja, a respiração não acontece pelo nariz, ele é só passagem.
Quantos padrões de emoções aflitivas quebramos pelo simples fato de parar de sugar o ar...
Perceba os músculos, a pele e a caixa de ossos que envolvem os pulmões... você pode tirar o foco do nariz e respirar por aí.
Que partes de cada pulmão você percebe que preenche?
Há quem diga que quanto mais para baixo respirarmos, mais natural e profunda...
Respire pelas costelas que se abrem para as laterais...
Respire pelo umbigo...
Respire pelos quadris...
Respire pelas mãos...
Respire pelos pés...

E aqui uma sugestão trazida pela Érica, uma meditação guiada da Roshi Joan Halifax que você pode praticar algumas vezes antes de prosseguir a leitura:

Uma meditação para soltar o medo...

"Na inalação, reúna sua atenção.
Na exalação, leve sua atenção à sensação de seus pés no chão.
Sinta a segurança e a estabilidade de estar aterrado.
Relembrando a verdade da impermanência
Repouse com abertura e destemor."

A terra é o que nos sustenta. Lembrou Ana no nosso último encontro da Jornada.
E lembrou dos outros dois elementos fontes de vida.
O ar... que estamos agora mais atentos ao seu fluxo e que nos conecta inevitavelmente a todos os seres da Terra.
O sol... que clareia e aquece, a todos indistinta e abundantemente: o grande mestre da equanimidade.

A partir desses elementos surge a água.
Com os três mais a água, os vegetais.
Com os três, mais a água, mais o vegetais, surgem os animais.
Com os três, mais a água, mais os vegetais, mais os animais, vem o ser humano.
Após o ser humano... o que virá?

De qualquer forma sabemos sobre nós. Quanto mais complexo, maior a potência, mas igualmente maior a dependência dos demais, maior a fragilidade e vulnerabilidade.

Aqui estamos no mar da vida, percebendo nossa vulnerabilidade.
O medo, a confusão nos desatinam e criamos mecanismos de proteção, defesa.
E, se de um lado, desejamos a abertura do amor e liberdade. De outro nos fechamos na solidão e visão acanhada.

Só há caminho na aceitação da vulnerabilidade. Que é a decorrência de vivermos sob a lei universal da impermanência.
Só há caminho na confiança da interconexão. "Relembrando a verdade da impermanência, repouse com abertura e destemor."

Por isso retomamos a conexão original com o três elementos. E estamos meditando com eles. E antes de sair fazendo coisas, procurando soluções aos problemas, estamos aprendendo a observar.

A Caroline disse assim: "sempre que não sei o que fazer paro na direção do sol e fico fazendo nada."

Um belo exercício, não é mesmo? É a arte de parar, de observar sem dar soluções, sem intelectualizar, sem buscar finalidades, sem seguir os impulsos... e assim mergulhar no mar de si, a profundidade que os conflitos podem nos trazer.

No Livro verdadeiro da fonte original, Yang Dschu diz:

"Quem faz o bem talvez não o faça visando a fama, no entanto esta o acompanhará. A fama nada tem a ver com o lucro, mas este seguirá seus passos. O lucro nada tem a ver com o conflito, mas este surgirá seja como for. Portanto, que o grande honorável os proteja de fazer o bem."

No automático estamos sempre dirigidos àquilo que acreditamos ser o melhor.
Mas já nos decepcionamos demais e também já ferimos demais.
Tem algo errado e a vida já nos sinalizou isso (os sintomas no corpo e os conflitos nas relações)
Antes do fazer no modo automático, a escuta, a observação de si mesmo.

A Silmara, uma amiga querida, que encontramos no meio do caminho aqui desses nossos passos da travessia, anda lendo junto com você esses nossos textos, disse que estava se lembrando do poema de Clarice Lispector que se chama "Se eu fosse eu" (clique aqui para ouvir o poema inteiro).

"Se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.

"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.

No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais."

Nos abrimos ao desconhecido e chegamos a experiência do mundo, a dor do mundo, agora que voltamos a sentir.

Sabe? Eu gostaria que a gente pudesse agora ouvir aquela música do Dorival Caymmi "Vamos chamar o vento" (clique aqui para ouvir a Canção de Dorival Caymmi)

Nessa canção ele mostra a interconexão, mundo natural e humano... o vento, a vela, o barco, a gente, o peixe... e a interconexão com as necessidades da subsistência econômica... peixe que dá dinheiro...
O curimã lambaio (taínha) peixe que dá dinheiro...
No entanto, na voz de Caymmi, a atmosfera da música ganha um ar solene, misterioso, sagrado... a evocação do vento... o assobio... o Curimã Lambaio parece uma entidade espiritual... uma divindade...

Com olhos de ver a interconexão das coisas, tudo leva-nos ao sagrado...
O Sagrado...
O Natural...
O verdadeiro segredo é o sagrado escondido no natural.
E aqui quando respiramos, sentimos a terra, também sentimos o vento, e o barco, e o pescador em sua jornada, e a todos os pescadores de outros mares em suas jornadas por dinheiro e em sua jornada por amor, diversão, paciência, entrega... Estamos juntos.

Como a menina da história de ninar que a Gabriela foi criando e contando ontem. A menina vinha remando o barco no mar. Até que ficou com muito sono. Resolveu parar para descansar, entrou numa concha que se fechou e a levou para o fundo. E o sono foi aumentando e ela começou a ouvir os sons do mar e de todos os seres do mar, ouviu o som do peixe, do tubarão, da baleia, do golfinho... e os sons foram se misturando em seus ouvidos, em seus sonhos...

Quando acordou do sono voltou a terra. Onde respirou profunda e sentidamente o ar. O dia estava ensolarado e percebeu um enorme campo de milho. E ali estava um camponês em seu trabalho, e o milho... ambos sob o sol. E ali, no meio deles, um pintor que pintava toda a cena. A menina chegou perto dele e perguntou... qual o seu nome? O que você está fazendo? Por que está pintando assim de uma forma tão diferente da realidade?

O jovem pintor respondeu:

Eu me chamo Alexandre. E o que estou fazendo é muito simples. Os campos que fazem o milho crescer, a água que corre pela ravina, o suco da uva e a vida de uma pessoa constituem uma só e a mesma coisa. A unidade exclusiva da vida é a unidade do ritmo. Um ritmo pelo qual todos dançamos, humanos, maçãs, ravinas, campos arados, carroças no milharal, casas, cavalos e o sol. O que existe em você, menina, passará por uma uva amanhã, porque você e uma uva são a mesma coisa. Quando pinto um camponês trabalhando no campo, quero que as pessoas sintam o camponês fluindo para o solo, assim como acontece com o milho. E da mesma forma como o solo flui para o camponês. Quero que sintam o sol se despejando sobre o camponês, o campo, o milho, o arado e os cavalos, assim como todos se despejam de volta no sol. Quando se começa a sentir o ritmo universal em que tudo na terra se move, começa-se a compreender a vida. (adaptado da conversa de Van Gogh para Gauguin).

2 comentários:

  1. Muito bonito. Faz- nós pensar sobre a interexistencia de uma forma poética.

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  2. Lindo, cheio de imagens e poesia!

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